Novo artigo do historiador António Mota Aguiar:
O cientista que faz uma descoberta serve-se do capital científico acumulado em períodos anteriores por outros cientistas.
A descoberta da expansão do Universo é um bom exemplo da contribuição de várias gerações de cientistas, cujo início se pode fixar a metade do século XIX com a introdução das técnicas espectroscópicas, investigações que continuaram até que os trabalhos de cosmologia nos anos 20 do século XX modificaram o nosso conhecimento do Universo: Edwin Hubble (1889-1953), astrónomo do Observatório de Monte Wilson, na Califórnia, descobriu, em 1929, a expansão do Universo.
Antes da descoberta de Hubble, Einstein tinha apresentado, em 1915, uma nova teoria – a relatividade geral - que substituía a descrição clássica da gravitação feita por Newton. A característica principal da nova teoria é que o espaço-tempo deixava de ser indiferente ao seu conteúdo energético-material para se tornar um espaço-tempo curvo a quatro dimensões. Para resolver as equações da relatividade geral foi necessário usar, em vez da geometria clássica, as geometrias não-euclidianas, desenvolvidas no século XIX por Nicolai Lobachesvski, Janos Bolyai e Bernhard Riemann.
Em 1917 Einstein aplicou a sua teoria da relatividade ao conjunto do cosmos. Acrescentou, todavia, nas suas equações, um novo termo, uma constante cosmológica, que originava um universo estático. Por outras palavras, o Universo teria existido sempre no passado e iria existir sempre, mais ou menos da mesma maneira, no futuro.
Entretanto, Hubble, em 1928, partindo do modelo do Universo que o cosmólogo Willen de Sitter tinha proposto em 1917, baseado na cosmologia relativista de Einstein, e apoiando-se em modelos cosmológicos de outros cientistas, principalmente o modelo do norte-americano Vesto Slipher (1875-1969), determinou a distância à Via Láctea de várias galáxias espirais. Esse modelo previa a deslocação para o vermelho da radiação vinda das galáxias, mostrando uma relação entre a velocidade das galáxias e as suas distâncias à nossa.
A descoberta de Hubble continha uma ideia verdadeiramente original: não era necessária nenhuma constante cosmológica pois as galáxias se afastavam umas das outras com uma velocidade tanto maior quanto mais longe se encontrassem. Portanto, o Universo estava em expansão, tendo um passado em que foi diferente do que é hoje.
Hubble mediu o desvio para o vermelho de 41 galáxias (na altura conhecidas como nebulosas), aperfeiçoou as observações feitas por Slipher e, fazendo a sua própria síntese, publicou um artigo nos Proceedings of the National Academy of Science, em 1929, contendo o resultado das suas. investigações. Ficou com a glória de ter descoberto a expansão do Universo!
Todavia, a descoberta de Hubble continha uma mancha: em 1927, isto é, dois anos antes de Hubble, o físico-matemático belga Georges Lemaître tinha chegado à mesma descoberta. Na tradução para inglês publicada nas Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, em Março de 1931, perderam-se, porém, alguns parágrafos do texto original em francês, em particular aquele em que Lemaître descrevia o que hoje se chama constante de Hubble e da qual derivou a taxa de expansão cósmica.
Desde então, os historiadores de ciência têm perguntado o que se teria passado com os trabalhos de Lemaître: teriam esses parágrafos sido omitidos por mão maldosa? Teria Hubble sido responsável, directa ou indirectamente, pelo apagamento dos parágrafos que continham as equações da expansão do Universo, de forma a tornar-se o único descobridor da expansão?
Mario Lívio, astrónomo do Space Telescope Science Institute, Baltimore, Maryland, publicou os resultados de uma sua investigação sobre esse tema na Nature de 9 de Novembro passado. Escreve Livio que, dois anos antes, em 1927, o padre Georges Lemaître, da Universidade Católica de Louvain na Bélgica (sim, Lemaître era sacerdote católico), publicou em francês, numa pouca conhecida revista belga, o Anuário da Sociedade Científica Belga, um artigo intitulado Um universo homogéneo de massa constante e raio crescente que dá conta da velocidade radial de nebulosas extra-galácticas. Neste artigo, Lemaître, citando Lívio:
“reported his discovery of dynamic solutions to Einstein’s general relativity equations, from which he derived what is now known as Hubble’s law – that the velocity at which a galaxy appears to recede is proportional to its distance from us. But Lemaître went beyond theoretical calculations in the paper. He determined the rate of expansion of the Universe using the velocities of the galaxies measured by Slipher (...), and the distances to them as determined from brightness measurements published by Hubble in 1926. For the value of that rate, today called the Hubble constant, Lemaître obtained 625 km per second per megaparsec. (...)”Dois anos após o escrito de Lemaître, Hubble, assistido por Milton Humason, publicou a sua descoberta num artigo intitulado A relation between distance and radial velocity among extra-galatic nebulae. Nesse paper, Hubble “used improved distances (in part based on better stellar distance indicators, such as Cepheid variables and novae) and velocities taken mainly from Slipher, to establish the esistence of Hubble’s law, and to determine a value for the Hubble constant of 500 km per second per megaparsec”. Parece claro que Lemaître foi o primeiro a descobrir a expansão do Universo, pelo que a glória da descoberta deveria ser sua.
Acontece que Lemaître, escreveu Lívio, não pareceu interessado a assegurar prioridade da sua descoberta, pois, quando enviou os seus trabalhos para o mundo anglo-saxónico, erradicou do texto os parágrafos que lhe podiam ter dado glória. Lívio verificou que foi o próprio Lemaître que se auto-censurou. Eis o trecho de uma carta publicada em 1931 por Lemaître que Lívio encontrou, e que põe fim ao debate, pondo de parte qualquer suspeita sobre Hubble ou terceiras pessoas:
Dear Dr. SmartFoi precisamente a parte do seu trabalho de 1927, publicada na Bélgica, omitida pelo próprio quando enviou as suas descobertas para o mundo de língua inglesa, que lhe teria dado a fama de ter sido o primeiro a descobrir a expansão do Universo. Lemaître não recebeu os louros, mas tudo aponta ter sido ele o pioneiro deste grande marco científico.
I highly appreciate the honour for me and for our society to have my 1927 paper reprinted by the Royal Astronomical Society. I send you a translation of the paper. I did no find advisible to reprint the provisional discussion of radial velocities which is clearly of no actual interest, and also the geometrical note, which could be replaced by a small bibliography of ancient and new papers on the subject. I join a French text with indication of the passages omitted in the translation. I made this translation as exact as I can (…).
Lemaître não recolheu frutos da sua descoberta, uma vez que, aparte um pequeno asteróide com o seu nome, hoje quase não se fala dele. Na minha opinião, a descoberta da expansão do Universo devia, pelo menos, ser repartida pelos dois cientistas, já que hoje ninguém consegue tirar a Hubble a fama deste feito. A comunidade científica deveria, pelos menos, baptizar uma estação espacial, uma nave ou um telescópio com o nome de George Lemaître.
António Mota de Aguiar
1 comentário:
pequena inprecisão, paragrafos 5 e 7 : slipher e sipher
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