Tal como provavelmente acontece noutras áreas, na pedagogia usam-se, em determinados momentos, expressões que pouco ou nada significam. E mais do que isto: polarizam equívocos, não permitindo conduzir qualquer discussão a nenhum destino razoável. "Reflexão", aplicada ao ensino e à formação de professores, constitui um bom exemplo dessas expressões.
Não obstante, é manifesta a sua aceitação entre académicos, decisores de políticas e medidas educativas e profissionais, circunstância a que não será alheio o entusiasmo com que tem sido apresentada pelos seus teorizadores nem o carácter inovador que se lhe atribui, retraindo-se o debate sobre o seu sentido e fundamentos, bem como a investigação sobre a sua eficácia.
O texto que se segue - publicado em dois posts - pretende explicar esta afirmação. Vejamos...
1. A noção de reflexão e outras a ela ligadas – como prática reflexiva, desempenho reflexivo, formação reflexiva, acção reflexiva, métodos reflexivos, atitude reflexiva… – são, desde a década de 1980, uma constante, tanto nos discursos pedagógicos, como na investigação que se faz sobre o ensino e a formação de professores, tornando-se incontornáveis e, até certo ponto, inquestionáveis (Zeichner (1993).
Ancorada em diversas abordagens teóricas (nomeadamente, as que se designam por crítico-sociais, emancipatórias, construtivistas e de orientação para a investigação) tais noções afirmam a capacidade que supostamente o professor terá para indagar o seu desempenho nas circunstâncias concretas em que ocorre e, em função disso, “elaborar saberes autónomos” (Estrela, 1999, 16).
Este profissional não deverá, pois, continuar a ser visto apenas nem principalmente como consumidor de conhecimento produzido pelos investigadores e especialistas mas, antes e essencialmente, como produtor de conhecimento. Nesta conformidade, ensinar será, “antes de mais, fabricar artesanalmente os saberes, tornando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de (…) um sistema de comunicação e trabalho” (Perrenoud, 1993, 25).
Ainda que, numa primeira abordagem, este esclarecimento se afigure claro e ponderado, na opinião de Zeichner (1993, 15), a noção de reflexão rodeia-se de grande confusão pelo facto de ter sido apropriada por inúmeras perspectivas e iniciativas pedagógicas, de modo que “assim, por si só, (…) perdeu virtualmente qualquer significado”.
2. Tentemos, então, perceber o seu sucesso, destacando, entre as várias razões que se têm apontado para tanto, uma que se afigura da maior importância. Trata-se de uma profunda e enérgica reacção que, desde a sua origem, corporizou em relação às perspectivas behavioristas que, colhendo grande aceitação nos anos sessenta e setenta do século XX, tendiam a encarar os professores como técnicos cumpridores de instruções pedagógicas fornecidas por quem se encontrava distante das salas de aula (Zeichner, 1993).
Face ao desinteresse de centros universitários e de instâncias políticas que recorriam às orientações desses centros para decidir o rumo do ensino e da formação de professores, impunha-se afirmar a reflexão, processo a que, com discernimento, os professores submetem as suas próprias práticas, fazendo emergir saberes com dignidade equivalente à científica.
Assim, estes profissionais poderiam libertar-se de lógicas de poder que lhe eram estranhas e, sobretudo, da imposição para seguirem critérios de qualidade de ensino descontextualizados, em nada contribuindo para essa mesma qualidade. Efectivamente, defendia-se que quanto mais envolvidos estivessem os professores na determinação das suas práticas, maior seria a possibilidade de as controlarem e de as ajustarem a vicissitudes concretas.
Estamos, segundo Zeichner (1993, 16) perante uma verdadeira reivindicação pragmática que se corporizou numa máxima bem conhecida: “o ensino deve voltar às mãos dos professores”, o mesmo se podendo dizer do seu próprio desenvolvimento profissional.
3. Apesar do amplo reconhecimento que a perspectiva reflexiva tem granjeado nas décadas mais recentes, as suas raízes são mais antigas, remontando pelo menos a 1910, ano da publicação da obra How we think, de John Dewey. Aqui este filósofo e pedagogo, defendia a necessidade de se fundar uma teoria de ensino sustentada em experiências docentes de qualidade, derivadas da inteligência pragmática, as quais admitiriam dois tipos de actos docentes: os rotineiros e os reflexivos.
Nos primeiros, os professores negligenciam a especificidade da situação, guiando-se pelo impulso, tradição ou autoridade; nos segundos consciencializam a especificidade da situação, estabelecendo deliberadamente objectivos e guiando-se por eles. Ambos os tipos de actos são fundamentais na condução do ensino, na medida em que os professores não podem constantemente questionar tudo o que fazem, precisando de “uma certa dose de rotina” (Zeichner, 1993, 20). No caso dos actos baseados na reflexão, Dewey advertia para o facto de eles não se poderem resumir a um conjunto de passos ou procedimentos técnicos, susceptível de ser “empacotado e ensinado aos professores” para seu uso futuro, mas, antes, constituírem “um processo que implica mais do que a busca de soluções lógicas e racionais para os problemas”, em suma, “uma maneira de encarar e responder aos problemas” (Zeichner, 1993, 18).
4. Vivamente interessado na teorização de Dewey, Donald Schön tornou-se um dos autores mais emblemáticos da perspectiva reflexiva. Na sua marcante obra de 1983, The reflective practitioner, este filósofo de formação, depois de estudar a preparação de diversos profissionais que as universidades disponibilizavam, declarou-a insuficiente e inadequada, por assentar no “racionalismo técnico”, herdado do positivismo, e estar eminentemente vocacionada para a aquisição de saberes apurados por especialistas. No caso da preparação dos professores a sua apreensão acentuou-se pelo facto de, no seu entender, os investigadores se manterem, em geral, afastados da prática escolares e de sala de aula.
Salientando não ser sua intenção desvalorizar o saber teórico, o referido autor defendeu que a realidade na qual os professores laboram é mais complexa, instável e enigmática do que aquilo que os esquemas produzidos sobre ela, sugerem. Assim, quando estes profissionais, em especial os mais jovens, se confrontam com problemas de contornos pouco claros ou, mesmo, ambíguos tendem a recorrer às fórmulas genéricas e abstractas de que dispõem, ficando impedidos de os compreender e, em sequência, de os resolver adequadamente, com efeitos nocivos para quem deveria beneficiar da intervenção educativa e para si próprios, pelos sentimentos de incapacidade e de desorientação que ocorrem.
Os profissionais que revelam habilidade para resolver tais problemas recorrem a um “saber tácito” que não se pode imputar directa e exclusivamente à formação académica recebida pois, além do domínio apurado de técnicas, denota inteligência, talento, sagacidade, intuição e, ainda, emoção e paixão (Schön, 1987). Trata-se de um saber que permite arquitectar cenários diversos com recurso a um conjunto de pressupostos, valores e estratégias concretas de acção, facultando “conversas reflexivas com as situações”, centradas no que fazem e, sobretudo, no como fazem (Zeichner, 1993, 20).
Dessas conversas extraem os professores significados que sustentam a revisão da sua competência profissional num interminável, contínuo e dialéctico ciclo reflexivo, onde os referenciais teóricos apoiam a prática, sendo esta, por sua vez, fonte de interrogação e de reconstrução da teoria.
Vejamos, mais concretamente, como é que esse ciclo se concretiza, seguindo quatro sentidos de reflexão, que correspondem a outros tantos momentos do trabalho do professor e que, com base em Dewey, foram retomados por Schön (1983):
(1) conhecimento na acção, que diz respeito a um saber-fazer (know-how) que se requer para resolver problemas concretos e se consolida ou se reformula após a acção. Apesar da facilidade com que os profissionais, sobretudo os mais experientes, recorrem a tal competência, quando se lhes pede para a identificarem, descreverem e justificarem, denotam, não raras vezes, dificuldades em a descreverem e em explicarem como a aprenderam, dado que ela fica, com frequência, inconsciente, não no sentido psicanalítico do termo, mas no do “inconsciente económico” (Perrenoud, 1993, 38);
(2) reflexão na acção, que ocorre paralelamente ao desempenho, sem que este seja interrompido. Quer dizer, se o professor, enquanto age na situação, detecta que as suas técnicas intuitivas têm resultados inesperados – positivos ou negativos – investiga-os e decide entre várias alternativas: continuar a utilizá-las ou recorrer a outras conhecidas.
(3) reflexão sobre a acção, traduzindo-se numa retrospectiva sobre uma determinada situação, depende da reconstrução mnésica e centra-se em dimensões que durante a acção o professor não conseguiu identificar e/ou esclarecer mas que o ajudam a percepcionar o seu desempenho sob outra perspectiva sendo, assim, possível reformulá-lo.
(4) reflexão sobre a reflexão na e sobre a acção, que diz respeito à análise que o professor faz do próprio processo de reflexão na e sobre a acção, sobretudo daquilo que nele se revelou surpresa ou perplexidade, configurando uma “meta-reflexão”, susceptível de tornar as reflexões futuras mais consistentes.
Continua em post seguinte. As referências bibliográficas serão referidas nesse post.
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1 comentário:
E fica assim como aquelas disciplinas de MPOA
de observação e análise mistura-se muita coisa num texto
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