domingo, 3 de abril de 2011

Educar a razão

Em finais do século passado, o jornal El País promoveu uma série de debates centrados na educação. O título – A educação que queremos – marca, voluntariamente, a responsabilidade que todos, sem excepção, temos nas escolhas que fazemos nesta matéria, escolhas que traçam o rumo que, como humanidade, tomaremos num futuro mais próximo ou mais distante. Fernando Savater foi um dos convidados desse jornal, tendo a sua conferência sido pronunciada a 1 de Dezembro de 1998. Aqui apresentamos um extracto, em tradução de A. R. Gomes, onde se salienta a necessidade absoluta de educar a razão, essa capacidade que os iluministas tinham como inata e igualmente distribuída entre os homens (omitiam-se as mulheres) e que os pós-modernos tendem a relativizar, quando não a negar. Não existindo razão sem qualquer forma de educação, mas podendo a tarefa educativa fazê-la existir e evoluir, é fundamental que a Escola, no seu sentido mais lato, o reconheça e trabalhe nesse sentido. Eis o extracto da referida conferência onde o filósofo espanhol explica devidamente esta ideia.

"... eu creio que a educação é, entre outras coisas, mas muito principalmente, educação para a razão: educar é formar seres humanos, e nós os seres humanos somos antes de mais seres racionais. A razão não é uma tendência puramente automática, mas um resultado social, possibilitado por umas capacidades naturais, evolutivas, etc. De modo que gostaria de começar por falar da importância de potenciar a razão por meio da educação (...).

A razão – repito – não é simplesmente uma espécie de tendência automática. A razão está em boa medida baseada no confronto com os outros, quer dizer, raciocinar é uma tendência natural baseada, ou para nós fundada, no uso da palavra, no uso da linguagem; e o uso da linguagem é o que nos obriga a interiorizar o nosso papel social. A linguagem é sociedade interiorizada, e é curioso que alguns filósofos e outras pessoas ao longo dos séculos se tenham perguntado (por exemplo, o "penso, logo existo" de Descartes no famoso início do Discurso do Método, a que volta novamente nas suas Meditações): Estou aqui?, duvido de tudo, Estarei sozinho no mundo?, Existe este mundo?, É tudo uma ficção inventada por um deus maligno?.

De facto, a postura solipsista, quer dizer, a postura dos pensadores que duvidaram da existência de qualquer coisa e de qualquer outro ser humano que não fosse eles próprios, apesar de ser uma teoria de algum modo, digamos, bastante peregrina, foi muito avalizada e teve muitos seguidores. Bertrand Russell conta que um dia recebeu uma carta de um solipsista que dizia: "considero o solipsismo tão óbvio e tão provado racionalmente que estranho que não haja mais pessoas solipsistas".

Na verdade o primeiro argumento que há contra esse solipsismo, ou contra formas menos toscas de nos considerarmos de alguma forma como que caídos de não se sabe onde, é precisamente o facto de que somos seres linguísticos. Somos seres linguísticos e manejamos uma linguagem que não inventámos, de que não somos donos, cujos registos não estão na nossa mão. O uso da nossa razão está condicionado precisamente por essa função da própria linguagem.

Portanto, na educação, do que se pode tratar, do que se deve tratar, é de desenvolver o que é uma capacidade em princípio quase inevitável da vida em sociedade e da vida em comum; quer dizer, todos temos que raciocinar permanentemente para poder sobreviver. O elemento racional está em todos os nossos comportamentos, faz parte das nossas mais elementares funções mentais. Se alguém nos disser que ao meio-dia comeu uma feijoada e que a paella estava muito boa, imediatamente dizemos: "não pode ser; ou feijoada ou paella". O próprio acto de nos darmos conta de que há coisas incompatíveis, de que as coisas não podem ser e não ser ao mesmo tempo, ou que as coisas contraditórias não podem afirmar-se simultaneamente, ou que tudo deve ter alguma causa, supõe exercícios de racionalidade. Esse tipo de mecanismos elementares estão em todos nós e não poderíamos sobreviver sem eles.

Há em todos os lados, em todas as culturas e em todos os tempos, algumas disposições naturais para o desenvolvimento de modelos racionais. Gombricht, num dos seus livros, diz que há povos que não conhecem a perspectiva pictórica, como os egípcios, por exemplo. Efectivamente há povos que não conhecem a perspectiva, mas não há nenhum povo em que qualquer dos seus membros, quando quer fugir ou esconder-se do seu inimigo, se ponha à frente da árvore e não atrás. Portanto é evidente que a função racional está constantemente em nós. O que acontece é que o ser humano actual, o ser humano que queremos desenvolver, o ser humano civilizado que faz parte do final de um século e da passagem ao outro, que vai ter que se entender com máquinas muito complexas que vai ter que usar registos muito diferentes, que talvez não vá gozar da mesma estabilidade no seu próprio desempenho laboral e corporativo mas vai ter que mudar de postos de trabalho, etc., tem que desenvolver uma capacidade racional que, evidentemente, não é algo puramente instintivo nem automático, e que também se não confunde com a mera informação.

O pressuposto de que ser racional é estar bem informado é um dos problemas da nossa época, em que se considera que ter acesso a muita informação desenvolverá a razão. A informação é útil precisamente para quem tem uma razão desenvolvida. Não é o mesmo, e Giovanni Sartori e outros doutores insistiram nisto, informação e conhecimento. Eu penso que há uma distinção importante entre ambos os conceitos. O conhecimento é reflexão sobre a informação, é capacidade de discernimento e de discriminação relativamente à informação que se possui, é capacidade de hierarquizar, de ordenar, de generalizar, etc., a informação que se recebe. E essa capacidade não se recebe como informação. Quer dizer, tudo é informação excepto o conhecimento que nos permite aproveitar a informação.

A educação não pode ser simplesmente transmissão de informação, entre outras razões porque a informação é tão ampla, muda tanto, existem tantas formas de aceder a ela, e cada vez mais, de uma maneira on-line, permanente, que seria absurdo que a função educativa consistisse simplesmente em transmitir conteúdos informativos. O que faz falta é transmitir modelos de comportamento que permitam utilizar e rentabilizar ao máximo a informação que se possui. Esse é um dos pontos fortes das finalidades da educação em geral e de qualquer disciplina em particular.

Considero que qualquer disciplina..., e aqui entroncamos nesta disputa, que tanta tinta tem feito verter aqui e noutros países, em torno do humanismo opondo as disciplinas humanísticas às científicas. Disseram-se por vezes coisas muito disparatadas, como se realmente a ciência não fosse humana, ou não desenvolvesse a humanidade… O característico do humanismo é haver um modo humanístico de ensinar qualquer disciplina. Mais do que o facto de umas disciplinas serem humanistas e outras não, é o modo como se ensinam as disciplinas que pode ser humanista ou não humanista. Pode ser um modo meramente informativo, meramente descritivo, ou pode ser um modo que, através de qualquer disciplina, procure desenvolver a capacidade de conhecimento, quer dizer, a capacidade de ordenar, de relacionar, de criticar, de discernir, etc., dentro de uma linha determinada, dentro de um tema determinado. Todas as disciplinas deveriam estar orientadas à potenciação, no seu campo, da capacidade de conhecimento, da capacidade de continuar por se próprio a aprendizagem, contra a pura tendência para assumir informação.

Uma das características da razão é que serve para ser autónomo, quer dizer, os seres racionais são mais autónomos que as pessoas que não desenvolveram a sua capacidade racional. É evidente que autonomia não quer dizer isolamento, falta de solidariedade, solipsismo, mas serve pelo menos para cada qual se autocontrolar, se autodirigir, optar entre opções diferentes, proteger as coisas que se consideram importantes, empreender empreendimentos, etc. Creio que a autonomia é fundamental, e essa autonomia é exactamente o que a razão permite. O não desenvolvimento da razão faz-nos dependentes. De facto, as crianças muito pequenas e as pessoas que, por qualquer desgraça, perderam alguma das faculdades racionais a primeira coisa de que sofrem é uma dependência dos outros. De maneira que educar para a razão é educar para a autonomia, para a independência.

E aqui há um ponto nuclear da verdadeira educação, e é que, nós os que nos dedicamos ao ensino, educamos para que as pessoas a quem educamos, os nossos alunos, possam prescindir de nós. Não há pior mestre do que aquele que se torna imprescindível toda a vida. O mestre que, de alguma forma, continua a ser sempre mestre, já não por uma veneração à sua pessoa, ao seu saber, mas porque se faz imprescindível, quer dizer, porque a matéria que explica ou a matéria que procurou oferecer aos outros está tão vinculada à sua pessoa que não se pode ele separar dela de nenhum modo nem os outros podem jamais aceder ao conhecimento sem ter essa pessoa para os guiar e iluminar, numa palavra, o guru, é o contrário do mestre. O mestre, ou os pais quando educam os seus filhos, educam-nos para que se ponham a andar, educam-nos para que prescindam deles. Na verdadeira profissão do ensino há uma certa dimensão suicida, porque educamos para que os outros possam prescindir de nós, e nós os pais também devemos educar para o mesmo, o que às vezes é duro. Todos os pais, por um lado queremos reforçar a autonomia dos filhos, mas, por outro lado, preferiríamos que continuassem a manter connosco qualquer tipo de vínculo, de dependência. Isto é, do ponto de vista educativo malsão, porque há que educar para a autonomia, quer dizer, para a razão.

Precaver-se contra explicações racionais, guardar chaves da capacidade racional é a melhor maneira de manter independência nos outros. E o facto de hoje os conhecimentos humanos serem tão amplos e tão complexos, e estarem tão dispersos, a todos nos obriga a estar dependentes de razões alheias, quer dizer, verdadeiramente ninguém pode saber de tudo. Se, em qualquer época, era raro um Aristóteles que provavelmente sabia de tudo o que se podia saber na sua época (evidentemente nem sequer Aristóteles abarcava todo o saber da época), hoje seria impensável, porque o tipo de conhecimentos actuais exclui a possibilidade de alguém com um saber tão 'omniabarcante'. Então, todos dependemos de outras razões e isso é o que nos dá às vezes a sensação de estar angustiados, de que todo o conhecimento é ínfimo, é desinteressante, porque há tanto que saber… Por isso há que procurar potenciar a capacidade racional de assumir inclusive as limitações do nosso próprio conhecimento. Uma das características da razão é assumir os limites do conhecimento e não acreditar que, por mera acumulação, se pode estender até ao infinito. Às vezes, aos racionalistas censura-se-lhes o facto de acreditarem na omnipotência da razão; não conheço nenhum racionalista que acredite numa coisa tão irracional como a omnipotência da razão, quer dizer, a gente pode acreditar na razão e na importância da razão e conhecer os seus limites (...).

Com certeza que a razão tem os seus limites. O que não há é outras vias alternativas de conhecimento, não há é outro tipo de conhecimento que não seja racional mas que seja muito melhor que a razão. Evidentemente, a razão não pode dar conta de tudo. Com certeza que a razão tem os seus limites. O que não há é outras vias alternativas de conhecimento, não há é outro tipo de conhecimento que não seja racional, mas que seja muito melhor que a razão. Evidentemente, a razão não pode dar conta. Mas, de qualquer modo, o facto de que possamos entender realmente algo é complexo, mas é assim. O que seria mais absurdo seria supor que há outro tipo de conhecimento que, sendo conhecimento, não tenha nada que ver com a razão. Devemos afirmar isto, apesar do predomínio que há na nossa época do entusiasmo pelos milagres e pelas coisas paranormais. No fundo o que há é uma busca de algo que alivie a necessidade de pensar e de raciocinar, que evidentemente é algo cansativo porque a razão não dá saltos, não tem atalhos, quer dizer, a razão desenvolve-se sempre a partir do trabalho, do estudo, da reflexão, da reiteração, dos controlos, nunca tem essa espécie de visão intuitiva e mágica da realidade das coisas. E, no entanto, há uma espécie digamos de sonho permanente de conhecer a realidade fantástica como a verdade enquanto, por outro lado, a razão se dedica sempre a inferiores mesteres intelectuais."

2 comentários:

Cisfranco disse...

Muito bem. Gostei muito.

Esse tipo de educação é que será o verdadeiro desafio de todo o sistema educativo, que, se assim for, formará cada vez menos doutores analfabetos.

Anónimo disse...

Doutores analfabetos... não há; o que poderá haver... é analfabetos doutores ou engenheiros! JCN

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