segunda-feira, 18 de abril de 2011

CAROLINA, STORCK E CAMÕES


Este ano passa um século que entrou na Universidade portuguesa a primeira professora. Tinha vindo da Alemanha, fixando-se em Portugal, mais precisamente no Porto, pelo casamento com o portuense Joaquim de Vasconcelos. O seu nome é Carolina Michaelis de Vasconcelos (Berlim 1854 - Porto 1925). Em 1911 um decreto do novo governo republicano criava as Universidades de Lisboa e do Porto, a primeira com uma Faculdade de Letras que vinha substituir o antigo Curso Superior de Letras (só em 1918 haveria de ser criada no Porto, por Leonardo Coimbra, uma Faculdade de Letras, que não duraria mais do que nove anos e que só nos anos 60 seria ressuscitada).

O facto de Carolina Michaelis não ter completado nenhum curso superior não impediu a Universidade de Lisboa de a convidar para Professora na nova Faculdade lisboeta, convite que ela prontamente aceitou. No entanto, nunca chegou a lá dar aulas, pois quase imediatamente pediu para ser transferida para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, então também nova pois acabava de herdar a história e o património da antiga Faculdade de Teologia. A cidade do Mondego estava, de facto, bem mais perto da sua cidade adoptiva do Porto. E, para dar aulas alguns dias por semana, alojava-se num hotel da baixa coimbrã, depois de chegar por caminho de ferro a Coimbra B vinda da estação de S. Bento. Já tinha havido alunas na Universidade de Coimbra, mas era a primeira vez que havia uma professora. Na Alemanha, ainda se havia de esperar algum tempo antes que fosse permitido às mulheres ensinar no ensino superior. O grande matemático alemão David Hilbert tentou em 1915 que, na Universidade de Goettingen, entrasse uma mulher de excepcionais dotes matemáticos, Emmy Noether. A resposta negativa dos seus colegas levou-o a exclamar: “Isto é uma Universidade, não é um balneário!”. Só em 1919 essa entrada se concretizou, tendo antes Noether dado aulas em substituição e sob a responsabilidade de Hilbert.

A reputação de Carolina já era, quando começou a dar aulas em Coimbra, extraordinária. Os seus conhecimentos de línguas e de filologia, tanto germânicas como românicas, eram admirados por todos. Tanto assim era que tinha obtido, em 1893, um grau honorário de doutora pela Universidade de Freiburg, na Alemanha (em 1916, era a Universidade de Coimbra que lhe concedia semelhante distinção). Os seus contactos com o seu futuro marido deveram-se a correspondência trocada sobre um assunto literário: a questão do Fausto de Castilho, isto é, a tradução que o poeta que suscitou a questão Coimbrã fez do poema de Goethe sem conhecer a língua alemã... Joaquim de Vasconcelos insurgiu-se e Carolina deu-lhe razão. Casaram-se em Berlim em 1876, vindo logo a seguir a fixar-se em Portugal, o que significa que, quando começa a ensinar em Coimbra, já vivia há longas décadas entre nós, sendo uma profunda conhecedora da língua e da cultura portuguesa. Tinha, em particular estudado a literatura galaico-portuguesa, não sendo por isso por acaso que a Universidade de Santiago de Compostela tem, por estes dias, em exibição, na sua Faculdade de Filologia, uma mostra, antes patente na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, e comissariada pela germanista Maria Manuela Delille, sobre a sua vida e obra.

Em 1897 saiu entre nós a primeira edição de uma sua cuidada tradução do livro de um grande estudioso alemão da literatura portuguesa, Wilhelm Storck, sobre a vida e a obra do nosso maior poeta, Luís Vaz de Camões. O original tinha saído em Paderborn, em 1890. Sobre a qualidade desse livro, intitulado em português Vida e Obras de Luís de Camões, fala o simples facto de ter agora saído uma terceira edição (depois de ter havido uma segunda edição em 1980) pela editora Bonecos Rebeldes, que se tem especializado na divulgação de obras sobre históricas e clássicos da banda desenhada. Trata-se de um volume enorme, com mais de 600 páginas, que revela bem a erudição do autor, e que vale também pela quase centena de páginas de notas da autoria de Carolina. Storck nasceu em Genna, em Iserlohn, no estado de Nordrhein - Westphal, em 1829, tendo falecido em Muenster, no mesmo estado, em cuja Universidade deu aulas durante largos anos, em 1905. Conhecedor profundo, tal como Carolina, de várias línguas e literaturas, foi, no século XIX, o maior autor germânico a interessar-se por literatura portuguesa. A sua atenção dirigiu-se sobretudo para Camões, cuja obra poética traduziu para a língua de Goethe em seis volumes (saídos em 1880-1885), contribuindo enormemente para a sua divulgação no estrangeiro. Não admira por isso que o reino de Portugal o tenha distinguido, em 1885, com a Ordem de Santiago e, em 1887, com a Ordem de Cristo. Para o breve apontamento biográfico sobre Storck ficar completo falta acrescentar que traduziu também poemas do seu contemporâneo Antero de Quental, que lhe enviou uma notável carta que ajuda a entender a alma do poeta.

A biografia de Camões saída da pena de Storck é uma peça fundamental dos estudos camonianos, embora estes se tenham alargado e aprofundado desde então. Pode hoje ser ainda lida com proveito. Eu, por exemplo, detive-me a examinar o modo como Storck defende a cidade de Coimbra como local de nascimento de Luís de Camões, por volta de 1524 (o local e data de nascimento o autor de Os Lusíadas ainda hoje são discutidas!). O livro é aliás dedicado à “cidade de Coimbra (onde o poeta nasceu e se criou) no sexto centenário da Universidade”. Para o autor, Camões não só nasceu em Coimbra como frequentou aí a Universidade, onde terá sorvido muitos dos prolixos conhecimentos amplamente evidenciados na sua obra, antes de, sem acabar qualquer curso, se ter mudado para Lisboa. Afirma na página 150 (como sempre, entrecortado por oportunas notas de Carolina):

“Luís Vaz frequentou durante algum tempo a Universidade de Coimbra; aprendeu línguas, leu assídua e proficuamente obras em grego, em latim antigo e moderno, em português, espanhol e italiano, escolhendo em especial produções poéticas, adquiriu conhecimentos sólidos de história geral e pátria, seguiu em suas primeiras poesias a escola clássica de Miranda, apesar de ser muito afeiçoada à musa popular e conheceu contos, lendas, provérbios, cantigas e romances nacionais. Conheceu uma terna paixão; desaveio-se com seu tio D. Bento; despediu-se da Universidade sem haver tomado graus e sem ter em perspectiva um modo de vida seguro. Reconciliou-se, contudo, com mo seu antigo, generoso e influente fautor, e saiu de Coimbra, entre tristezas e esperanças, cedendo ao impulso juvenil de correr por esse mundo fora, peregrinando!”.

Camões foi o que se chamaria hoje um drop out. Mas o livro é muito mais do que isso. Espero que este pequeno passo desperte a curiosidade e a atenção do leitor...

- Wilhelm Storck, “Vida e Obras de Luís de Camões”, Bonecos Rebeldes, 2011.

4 comentários:

Anónimo disse...

Nunca em Coimbra, na Universidade,
mulher tão sábia como Carolina
à altura se mostrou de sem vaidade
sob o capelo usar capa e batina!

JCN

Anónimo disse...

São personagens assim
que nos servem de padrão
sem nenhuma precisão
de bombos ou cornetim!

JCN

Alfarelense Camonista disse...

A Wilhelm Storck deve muito a Camonologia, não tanto pelo seu estudo hermenêutico sobre a Vida e Obra de Luís de Camões, que historicamente é a mais longo exercício de hermenêutica biobibliográfica elaborado até nossos dias, ano de 2015, sobre Camões, mas relevantemente pelo fato de o polímato professor da Universidade de Münster ter traduzido a obra completa de Camões para o alemão: Lusíadas, toda a obra lírica, cartas e os três autos teatrais. Além dele, só conheço a tradução de Richard Burton para o inglês da obra completa de Camões. Não tenho certeza se o mesmo ocorreu em tradução para o castelhano, para o francês e italiano, línguas mais próximas do nosso português. Loas ao prof. Guilherme Storck e ao editor que se interessou por republicar um livro muito específico da Camonologia e que tem um grande valor histórico.
Saudações camonianas.
Ademar F de Araujo
Alfarelense camonista que vive em Sete Lagoas/MG - Brasil

Editor disse...

Bom dia, caríssimo Ademar!
Gostava de entrar em contacto consigo, mas só encontro este meio.
Talvez uma possível colaboração lusobrasileira no blogue - https://camoniana.blogspot.pt/
Interessado?
Deixo aqui o meu contacto:
josecanoa@gmail.com

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