"Achais estas páginas cruéis? Achais que não nos dói tanto escrevê-las como a vós dói lê-las?” (Eça de Queiroz, 1845-1900).
No meu último post, “Duas perspectivas diferentes sobre a génese de 25 de Abril”, aqui publicado anteontem , para não deslustrar, com a opacidade da minha prosa, o brilhantismo do verbo de Fernando Pessoa, obriguei-me a só agora me pronunciar sobre um exército que não pode ser representado, apenas, por aqueles que se arrependem tardiamente do 25 de Abril ou por aqueles que dizem continuar a orgulharem-se de terem sido personagens dessa data. Mas por mais que Otelo e Vasco Lourenço queiram fazer passar essa mensagem do seu papel , eles foram apenas simples figurantes de um secular teatro militar de altas e valorosas personagens da nossa epopeia de actos de bravura em combate ou de impoluta dignidade em tempo de paz.
Por ter tido uma vivência das fileiras militares anterior ao ano de 74, retenho na lembrança o meu falecido sogro, tenente-coronel médico em idos de 50, com vários louvores e condecorações, e outros oficiais de carreira que durante a minha passagem pelas fileiras do exército como oficial miliciano me mereceram grande e justo respeito. E continuam a merecer!
Falemos agora daqueles oficiais do Quadro Permanente (QP) que tiveram a sua formação académica e profissional na então Escola do Exército, actual Academia Militar. Vivia-se então um tempo em que as vagas para aquela escola não chegavam, nem de perto nem de longe, para a mole imensa dos inúmeros candidatos que lhe batiam à porta de armas para usufruírem, sem qualquer despesa para as magras, ou mesmo gordas, bolsas familiares, para além dos estudos, cama, mesa e roupa lavada dispondo ainda de um pré para o tabaco e outras pequenas extravagâncias.
Em 61 tem início a "Guerra do Ultramar" em terras de Angola e que se iria espalhar por Moçambique e Guiné. Inverteu-se totalmente a situação: os candidatos ao oficialato do QP deixaram as camaratas da Escola do Exército quase desertas com aquele ar de abandono de quando a terra começa a tremer e a população foge assustada. Com a falta de oficiais do QP, houve o recurso a oficiais milicianos, depois de cumprido o seu dever para com a Pátria, muitos deles em retorno a um início de vida civil, uns tantos já casados e com filhos, sendo chamados novamente às fileiras para frequentarem um curso de capitães com as malas aviadas para uma guerrilha em inóspitas terras africanas sem aquela vocação que seria de esperar, apenas, de jovens que tivessem escolhido a vida militar como meio de vida.
Com a sua entrada para o QP, foram estes capitães milicianos regressados à Metrópole, com cursos superiores interrompidos e perante o espectro do desemprego, a génese do “Movimento dos Capitães”. Isto porque, segundo Otelo Saraiva de Carvalho, “os militares de carreira viram-se de repente ultrapassados nas suas promoções por antigos militares” (“SOL”, 13/04/2011). A reacção de Vasco Lourenço, outro militar de Abril, surgiu no dia seguinte naquele mesmo semanário, para dizer “que as declarações de Otelo são ‘incompreensíveis’”. Estamos, assim, em presença de duas versões opostas sobre os antecedentes de 25 de Abril por parte de dois capitães, hoje coronéis, que viveram a passagem e a crisma do “Movimento dos Capitães” para “Revolução dos Cravos”. Desta forma, começava, abruptamente, sem honra nem glória, a "Descolonização Portuguesa" que um homem incontornável da Cultura, António José Saraiva, para uns um perigoso "esquerdalho", para outros um perigoso “fascista”, apelidou de “a maior vergonha de que há memória desde Alcácer-Quibir” ("Crónicas de António José Saraiva”, “QuidNovi”, p. 1037).
O devir se encarregará de clarificar este diferendo inter-pares, Otelo e Vasco Lourenço, em que o primeiro se revê em questões corporativistas e o segundo na missão de libertar Portugal de “uma ditadura de 41 anos” , sem a confissão de um silêncio cúmplice que só teve voz depois do exército estar farto de 14 anos de "Guerra do Ultramar", das suas exigências e dos seus perigos de se morrer em combate ou em terrenos minados das picadas africanas.
Mas porque a História projecta o presente para o futuro, um futuro libertado de paixões que toldam o discernimento de quem viveu esse presente, qual o papel que nela estará destinado ao General António de Spínola e ao seu livro “Portugal e o Futuro”? O Portugal do Futuro se encarregará dessa função numa "feira das vaidades" em que muitos não se cansam de se porem em bicos de pés!
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