quinta-feira, 28 de abril de 2011

BIBLIOTECA JOANINA por Cristina Carvalho


Crónica de Cristina Carvalho (autora, entre outros, de "O Gato de Uppsala") escrita após visita à BIBLIOTECA JOANINA - Universidade de Coimbra - em 5 de Abril de 2011

Sempre que um comboio pára em cima duma ponte e por debaixo dessa ponte existe a água, fica-se como suspenso entre o céu e a terra.

No meio, a água. E por essa água dum rio, neste caso dum certo rio Mondego, não consigo evitar de me perder, de conter-me sem abraço, de encontrar-me ali parada, a balançar na carruagem a caminho de Coimbra, os olhos a percorrer este leito esverdeado, cama lânguida, língua húmida, ninho de passarada, de medos e esperas sem fim. O comboio parou. E aqui estou eu muito sossegada, já me passaram as quatro estações, já olhei, já esfriei, já me foi noite e já me foi dia.
Espero. Ao segundo solavanco o comboio, subtilmente, avança, mas é como se continuasse parado de tão suave, tão imperceptível movimento. Deixou de estar parado. E agora, depois da água, depois da vida, do lado esquerdo, Coimbra existe.

Cheguei numa tarde muito quente. Por volta das três, a cidade está quase adormecida sob essa estrela de fogo que num alto só de altura, num vislumbre e em tremura, faz com que a vida se atrase. Desci do comboio e parei a olhar à volta. Não conheço aqui nada nem ninguém. Sou uma visitante. No fim da linha atravesso, no fim da linha vislumbro, para já, um bom começo. Quero ir lá ao fundo, lá ao cimo, conhecer de perto essa miragem de pedra, desaparecer-me na História onde avanço e onde recuo trezentos anos seguidos.

Sumi-me por umas ruas estreitas, fui escorregando no tempo, fui alcançando a memória. E ao virar duma esquina, já no alto, no profundo, uma cidade correndo tonalidades de verde em garantidos repousos, o rio ao fundo, tranquilíssimo, e o hálito do calor que se vai desvanecendo ali na tarde que chega.

No terreiro, um edifício. No edifício, a porta entreaberta. Entrei por essa porta entreaberta. Percorri, silenciosamente as notas de música que ia ouvindo no interior deste interior, cada livro, cada tecla, cada passo, cada som, e ouvi vozes e senti os espíritos dos incontáveis artistas que aqui trabalharam, que aqui se criaram e viveram e amaram e sofreram, dezenas e dezenas de artistas e artesãos que, numa atitude conjunta fizeram brilhar num firmamento magnânimo a mais extraordinária biblioteca universitária do mundo: a Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra.

Admirei a frescura do interior, o esmagamento barroco, as chinoiseries que ornamentam as laterais das altíssimas estantes de carvalho carregadas de preciosidades encadernadas; apreciei o engenho da dissimulação das escadas de madeira em aberturas discretas ao comprimento das próprias estantes, desci às masmorras, perdi-me nas masmorras, sofri, pensei e pasmei nas masmorras. E caminhei por estreitíssimos, secretos e escuros corredores; desci pelo abismo dos degraus, equilibrei-me nalgum musgo das paredes, aspirei a humidade de outros tempos. Elevei-me ao maravilhoso quando percorri com passos curtos os varandins que bordam todo um espaço aéreo, circundante.

Mas duas reais surpresas prenderam a minha mais certeira atenção e é por elas que escrevo esta crónica: mesas e morcegos.

Seis sumptuosas mesas de leitura estão espalhadas por todo o espaço da biblioteca. Cada uma tem, pelo menos, quatro metros! Quando o dia chega ao fim e não há mais visitantes, nem turistas nem estudantes, as mesas são tapadas por amplas e largas composições de peles curtidas e unidas para o efeito. Nos séculos XVIII e XIX, eram peles de urso, vindas doutras paragens, cosidas umas às outras de forma a compor um vastíssimo manto protector dessa madeira preciosa em que as mesas foram concebidas. É que os dejectos das colónias de morcegos que habitam e se alimentam ali, na realíssima Joanina, dão cabo de tudo!

No alto das alturas das paredes inteiramente decoradas por estantes com milhares e milhares de riquíssimas lombadas de pele e oiro e prata e mais que se não sabe, estes magníficos livros, quase todos dedicados a uma só matéria – a religiosa - escapam à voracidade dos insectos comedores de papel unicamente por via desses feiíssimos mamíferos: os úteis morcegos. No alto das alturas, estando eu no varandim, pude apreciar sem olhar à sua função, os secretos esconderijos destes animais especiais que durante a noite, ao arrepio das preciosidades presentes, esvoaçam tranquilamente rentes aos belos livros, poisam nos belos livros, chafurdam e pastam por ali, comendo todos os insectos que por sua vez, se não fossem comidos, comiam as tenras folhas do antiquíssimo papel. Comem e dejectam. Dejectam porque comem. E por isso, as seis enormes e maravilhosas mesas de leitura têm de ser tapadas todas as noites de todos os dias porque todas as noites de todos os dias os morcegos se alimentam.

Saí. Saí tarde. Saí ao pôr-do-sol desse dia tão quente e percebi a aproximação da noite em mais um dia da vida. Saudei, mentalmente, esta “casa de livros”, construída, decorada e vivida durante onze intensos anos. Saudei, mentalmente, as dezenas de Antónios, Manueis, Carlos e Luíses que foram seus bronzistas, latoeiros, vidraceiros, pedreiros e marceneiros. Saudei, mentalmente, uma das jóias mais valiosas que Portugal tem para mostrar e para dedicar ao mundo inteiro. A Biblioteca Joanina.

Cristina Carvalho
Abril 2011

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Em homenagem ao Arco de Almedina e por conseguinte ao peso do saber, Biblioteca Joanina, Universidade de Coimbra.



Arco

Mas, do caminho a pedra,
Sabido era...
Que tudo houvera escrito.

E, quando escrito estava,
Lascavam monólitos.
Sedimentos em doses,
Pensamentos e vozes,
Prantos, benditos!

Erguiam-se fados, ritos...
Em palavras, suspensas no ar.
O que move?
O que sente?
Este desejar!

Soubera a pedra,
Não mais no caminho.
Soubera...

Extraída, medida,
Sustentam pilastras e pontes.
Lapidadas, esculturas e gárgulas são fontes,
De tantos horizontes,
Suspensos no ar...

Heis o que deve retesar!
Sonhos de mármore.

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