segunda-feira, 18 de abril de 2011

DAR E RECEBER EM FRANKFURT


Texto com que contribuí para um livro de vários autores cujas receitas revertem a favor de acções de solidariedade social e que acaba de sair em edição do Instituto Justiça e Paz de Coimbra:

Entre os anos de 1979 e 1982, entre os meus 23 e 26 anos, estive emigrado na Europa Central, mais precisamente na Alemanha, em Frankfurt am Main, a preparar o meu doutoramento em Física Teórica. Foi uma experiência de vida, tanto pela oportunidade de enriquecimento científico como, e talvez sobretudo, pela oportunidade de enriquecimento humano. Conheci o modo de vida e a cultura alemã e conheci também, imersos nesse ambiente, o modo de vida e a cultura portuguesas.

Embora o pico da emigração lusa para a Alemanha já estivesse nessa altura para trás, havia ainda uma grande comunidade de portugueses em solo germânico, muitos dos quais se concentravam na terra de Johann Wolfgang Goethe, nas margens do rio Meno. Foi a essa terra que eu cheguei depois de uma aprendizagem acelerada da língua alemã, uma vez que a entrada na Universidade local, que tinha o nome do poeta, exigia um exame linguístico. Existia, em Frankfurt, uma Missão Portuguesa, que apoiava as famílias portuguesas que viviam na cidade e arredores. Receberam-me como se eu fosse um deles, o que não admira nada porque eu era. Quer dizer, não era bem um emigrante normal, um trabalhador que tinha sido obrigado a procurar meios de subsistência noutras paragens, mas sim um emigrante especial, que, depois de concluída a licenciatura em Coimbra, que só dava direito a um Dr. se tinha “estrangeirado” para tentar ser doutor com as letras todas. Num dia de Camões e das Comunidades, numa festa portuguesa onde fui apresentado como “Doutor” ao Embaixador de Portugal na Alemanha, esclareci que ainda não o era uma vez que me encontrava a efectuar um trabalho de doutoramento. O diplomata foi lesto a recusar a explicação: “Ó homem, não nos envergonhe, Doutores somos todos os licenciados!” Portanto, era lá considerado pelos portugueses, e logo ao mais alto nível, um Doutor sem o ser verdadeiramente...

Os emigrantes portugueses que conheci ajudaram-me muito, o meu tempo de “exílio” teria sido penoso sem o seu apoio, sem os seus permanentes gestos de solidariedade. Convidavam-me amiúde para sua casa, em geral ao fim de semana quando folgavam dos seus duros labores. E, à boa maneira portuguesa, ofereciam-me lugar à sua mesa. A dádiva era neles um modo de ser natural e espontâneo. Podiam ter, no seu trabalho, adquirido a organização dos alemães, por exemplo cumprindo escrupulosamente os seus horários e as obrigações (em alemão, emigrante diz-se Gastarbeiter, à letra trabalhador convidado), mas, em casa, ajudados pelo bacalhau bem regado com azeite ou pela chanfana bem assada no forno, eram muito portugueses. Apreciei não apenas a comida caseira que partilhavam comigo, mas acima de tudo o seu convívio. Na terra de Goethe falávamos na língua de Camões. Fiz amigos que ainda hoje perduram. De facto, só se pode reconhecer o valor da terra natal quando se está longe dela e, no coração da Europa, não havia grande diferença, no grau de saudade, entre os trabalhadores com a antiga 4.ª classe e um jovem candidato a doutor que alguns queriam doutorar antes de tempo.

Dar é um gesto que só pode partir de dentro de nós. E o dar partia bem de dentro deles, era o que neles, numa situação de desenraizamento, era mais autêntico. Não que os alemães não soubessem também ser solidários – tive bastantes provas disso, contrariando a ideia feita de que eles são frios e distantes - mas senti naquelas circunstâncias, da parte dos emigrantes portugueses, um extraordinário calor humano que me aqueceu.

Como poderia eu aquecê-los? Que poderia eu dar que lhes fosse útil? Pois podia ajudá-los em pequenas coisas que me solicitavam e estavam ao meu fácil alcance, por vezes apenas ler – ou melhor, interpretar – uma carta ou um documento oficial que tinham recebido. Apercebi-me rapidamente que a ajuda maior que podia dar não era tanto a eles, mas mais aos seus filhos, a chamada “segunda geração” de emigrantes, em princípio menos desenraizada que a geração dos pais, pois, educada lá fora, falava melhor alemão e integrava-se melhor na cultura em redor. Contudo, esses jovens estavam, de facto, divididos entre dois países: o país da escola, que os acolhia, e o país das férias, para onde os pais planeavam um dia voltar e onde projectavam, certa ou erradamente, o futuro dos seus filhos. Os filhos dos emigrantes na Alemanha tinham, regra geral e por razões compreensíveis, dificuldades na escola. O sistema escolar era exigente, com uma diferenciação positiva bem nítida e desde bastante cedo para quem mostrasse mais aptidões académicas (os outros dispunham de uma vasta gama de cursos profissionais, de lenhador, cozinheiro, electricista, cabeleireiro, etc., quando, no nosso país, após a extinção do ensino técnico-comercial, todos se achavam no direito de ser doutores). Na Alemanha, os estudos secundários terminavam com um exame difícil – o Abitur – que era a porta de entrada na Universidade. Era mais do que o nosso antigo exame do 7.º ano dos liceus, até porque o liceu alemão demorava mais tempo e cobria mais matérias. Alguns pais de jovens portugueses que chegavam ao Liceu (Gymnasium) pediram-me ajuda: eu era afinal um dos poucos possuidores de um curso superior que conheciam nas redondezas e os filhos precisavam de explicações de um ou outro assunto. Mas esses eram relativamente poucos. A maior parte dos jovens queria antes preparar-se para os exames portugueses do 7.º ano, levados pelos pais a pensar no regresso. A Missão Portuguesa ajudava no que podiam, fornecendo por exemplo espaços e alguns meios. Assim me vi, nos tempos livres do trabalho de doutoramento, a dar aulas de matérias variadas aos filhos de emigrantes. Gostei de as dar, senti que estava a ser útil. E foi para mim uma enorme aprendizagem sócio-cultural.

Quando se dá também, em geral, se recebe. Os pais e os filhos poderão ter pensado que estavam a receber de alguém que possuía uma preparação maior do que a deles. Em parte era verdade. Mas, de facto, eu tive de me preparar para a nova situação, pois me vi obrigado a ensinar de tudo, não só ciências mas também humanidades, da literatura à filosofia. Havia uma grande biblioteca da Universidade que me valeu, embora tivesse tido de encomendar uns volumes de literatura portuguesa (lembro-me que mandei vir de Coimbra a história da literatura do António José Saraiva e Óscar Lopes). Era um desafio que me dispus a enfrentar... Os meus discípulos desse tempo não imaginam que eu também recebia. Não era apenas a hospitalidade das famílias, que de tão repetida se tornou uma constante. É que ensinar começa por ser aprender. E eu, que tinha feito anos antes o 7.º ano de ciências, aprendi quase tanto de humanidades naqueles anos como de física, que era a minha disciplina de doutoramento. Aprendi também, e sobretudo, humanidade. Aos emigrantes que conheci, pais e filhos, que três décadas volvidas já devem ser respectivamente avós e pais, estou profundamente grato!

3 comentários:

Onésimo disse...

Gostei de ler. É sempre benéfica essa passagem pela diáspora, sobretudo para quem sabe aproveitá-la. Aprecio o facto de se ter misturado e de ter procurado retribuir. E valeu porque aprendeu imenso no processo.
Houvesse mais gente que sabe tirar assim partido das situações e reconhecendo que há que dar também. Ao fim e ao cabo, altruísmo recíproco sem ter que ser pesado e medido.
Guardei o texto para futura referência. O tom nada paternalista ajudou o meu gostar.
Abraço.
onésimo

Anónimo disse...

Receber e saber dar
sem ser por obrigação
é bonito e, se calhar,
só nos traz satisfação"

JCN

Anónimo disse...

Parabéns pela humildade e grandeza de alma que demonstra, para além dos conhecimentos de Física.

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