quinta-feira, 31 de março de 2011

Nocturno

Informação chegada ao De Rerum Natura

Na próxima 3.ª feira, dia 5 de Abril, pelas 18h00, Cristina Carvalho, estará no Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho, em Coimbra, para apresentar o seu livro Nocturno – o romance de Chopin, publicado pela Sextante Editora

Sobre a obra: Como num piano solitário em que o artista desenha os quadros musicais de melodias e harmonias com timbres, ritmos e tempos diversos, assim foi desenhado este romance polícromo, tecido de amores e paixões, que conta a vida de Fryderyk Chopin, desde o seu nascimento a 1 de Março de 1810, na Polónia, até à sua morte, a 17 de Outubro de 1849, em Paris. Uma história feita de subtilezas, paixões intensas, escuras intrigas, vivências e amizades sinceras, presenças e saudades.

Sobre a autora: Nasceu em Lisboa, em 10 de Novembro de 1949. Durante a sua atividade profissional, contactou com milhares de pessoas e visitou inúmeros países sendo a Escandinávia e o Oeste português as regiões que mais ama e que mais influência exercem sobre o seu imaginário e personalidade enquanto transitório ser humano do sexo feminino, habitante do planeta Terra e, por acaso, escritora. Publicou o seu primeiro livro, Até Já Não É Adeus, em 1989. É filha do professor e poeta Rómulo de Carvalho (António Gedeão) e da escritora Natália Nunes. Publicou contos em várias revistas e jornais. Publicou em Março de 2009 o romance O Gato de Uppsala, que foi seleccionado para o Plano Nacional de Leitura e nomeado para o prémio Sociedade Portugues de Autores, em Fevereiro de 2010.

Vergonha Nacional


Já escrevi sobre isto.

Volto ao assunto para dizer que os casos BPN e BPP são uma VERGONHA IMENSA que CUSTA um agravamento de 0.8% do PIB no deficit nacional (2010). Se juntarmos a isso 0.5% do PIB para contabilizar os prejuízos da REFER, Metro de Lisboa e Metro do Porto, obtém-se um deslize de 1.3% do PIB para o deficit de 2010.

O Ministro da Finanças e o Primeiro-Ministro diziam que "o deficit ia ficar claramente abaixo dos 7%". Pois. Ficou claramente acima dos 8%, bem perto dos 9%.

E isso põe em dúvida o objectivo de um deficit de 4.6% do PIB para 2011? Naaah!, diz o fabuloso Ministro das Finanças. Isto em nada afecta esse objectivo.

Por isso as agências de rating estão a fustigar Portugal. Estes senhores não têm a mínima credibilidade. Tudo o que GARANTEM sai exactamente ao contrário.

Ah! e a dívida pública já vai em 92.4% do PIB, inscrevendo o INE o valor de 97.3% do PIB no final de 2011.

Nota: O PIB nacional foi fixado pelo INE em 172.5 mil milhões de Euros.

Isto é uma ENORME VERGONHA.
Portugal está na iminência de renegociar a dívida, pagando só uma parte, ou alargando os prazos de maturidade. Em qualquer dos casos isso será um RUDE golpe na nossa credibilidade e reputação: coisas que demoram décadas a conquistar mas que se destroem em poucos dias.

:-(

quarta-feira, 30 de março de 2011

O primeiro projecto de investigação pedagógica em Portugal

Como se sabe, nos Jardins-Escola João de Deus, que agora comemoram um século de história escolar, para se ensinar as crianças a ler usa-se um livrinho que se chama Cartilha Maternal ou a Arte de Ler. Este livrinho que João de Deus começou a redigir em 1870, que cinco anos mais tarde já era usado em versão provisória para alfabetizar mais novos e mais velhos, e que apareceu publicado em 1987 (apesar de a 1.ª edição ter no frontispício a data do ano anterior), cedo se percebeu ser “uma das obras mais notáveis da pedagogia portuguesa” (Rómulo de Carvalho 1996, 607). E logo desencadeou acesas críticas: “umas calmas, serenas e objectivas; outras talvez exageradamente laudatórias; e outras ainda apaixonadas e virulentas em demasia” (Joaquim Ferreira Gomes, 1976, 17). Assim, quando a Cartilha já estava a ser usada em cerca de 600 escolas, foi solicitada à Câmara dos Deputados a realização de um teste experimental, que permitisse afirmar, de uma vez por todas, a sua eficácia ou a sua ineficácia. Por portaria do Diário do Governo de 12 de Dezembro de logo 1879 foi determinado que esse teste seja realizado:
“Convindo verificar, por meio de uma rigorosa e imparcial confrontação, se o método de aprender a ler de João de Deus tem reconhecida vantagem e superioridade sobre os métodos anteriormente seguidos nas escolas primárias:
Atendendo a que a aludido método tem sido posto em prática por diferentes professores em diversas escolas e favoravelmente apreciado pelo público, subsidiado pelas municipalidades e recomendado por algumas juntas gerais de distrito em vista dos resultados da sua aplicação;
Atendendo a que muito importa promover e auxiliar todos os dês cobrimentos úteis, principalmente os que têm por fim o primeiro de todos os interesses sociais, que é o da instrução e educação da mocidade;
Atendendo a que, para ser sincera e demonstrativa, a confrontação entre os indicados métodos deve efectuar-se de modo que experimentalmente, e sob a inspecção do Estado, se possa reconhecer qual desses métodos merecem preferência:
Há por bem Sua Majestade El-Rei determinar o seguinte:
1. Serão escolhidas na capital 60 crianças que tenham a idade de seis a 14 anos completos, e que sejam analfabetas. Essas crianças serão divididas em três classes: a primeira de seis a nove anos, a segunda de dez anos até 12, e a terceira de 13 até 14 anos; e depois distribuídas por dois grupos de 30 cada um, tiradas à sorte e de modo que em cada grupo haja igual número de crianças de cada classe. A cada criança será abonada a retribuição de 40 réis por dia de frequência. Em cada dia de falta ser-lhe-á descontada a retribuição correspondente a dois dias;
2. Um dos grupos de 30 crianças será ensinado pelo método João de Deus, e o outro pelo método usual num edifício apropriado e próximo do centro da cidade;
3. Os cursos dos dois grupos começarão no mesmo dia, e a aulas serão no mesmo local, à mesma hora e com a mesma duração. As casas das aulas deverão ter quanto possível iguais condições de capacidade, de luz e de comodidade;
4. Os cursos serão regidos por professores designados pelo governo dentre os melhores mestres tanto públicos ou particulares que em Lisboa ensinarem pelos dois métodos Para este fim o comissário dos estudos de Lisboa e o autor do novo método enviarão ao governo uma lista tríplice dos professores que julgarem mais aptos para a regência dos referidos cursos. Os cursos serão diurnos e duração por tempo de três a seis meses.
5. Uma comissão especial, nomeada pelo governo, será encarregada de seguir paralelamente os dois cursos e de os inspeccionar com o maior rigor, mantendo perfeita igualdade nas condições das duas escolas;
6. Os professores nomeados para dirigir as duas escolas, sendo públicos, receberão uma gratificação além do respectivo ordenado, e sendo particulares, e sendo particulares uma remuneração igual e condigna;
7. Expiados os primeiros três meses dos cursos, proceder-se-á a um exame nas duas escolas consecutivamente. A este exame presidirá uma comissão especial inspectora, a qual poderá dirigir aos alunos todas as interrogações que julgar convenientes e ordenar todos os exercícios que lhe parecer;
8. Se em resultado do exame do 1.º trimestre não se puder ajuizar da preeminência de qualquer dos métodos renovar-se-ão os cursos experimentados por mais três meses. Findo o 2,º trimestre, proceder-se-á a 2.º exame, guardando-se nele as disposições do número antecedente;
9. Depois de realizado o 2.º exame, a comissão especial redigirá um relatório minucioso com o seu juízo comparativo sobre os dois métodos: Este relatório será enviado ao governo. Cada criança interveniente na experiência receberia.”
Joaquim Ferreira Gomes (1976) afirma estar delineado neste documento o primeiro projecto português de investigação experimental em pedagogia. Infelizmente falhou o passo seguinte, que era o da sua concretização, e não por falta de João de Deus, que prontamente indicou, como lhe tinha sido solicitado, o nome dos três professores. É ele mesmo que explica o que aconteceu (in A Cartilha Maternal e a Crítica, ps. 240-241 e Cartilha Maternal, 5.ª ed., Apêndice, p. 16):
“Tendo-se passado meio ano sem ainda se proceder ao confronto do meu método de leitura com o chamado método usual (…) e tendo-se nessa expectativa deixado de tomar, em câmaras e juntas de distrito (…) deliberações favoráveis à propagação do meu método, com prejuízo meu, da desgraçada infância e de todo este país, onde os analfabetos constituem os noventa e cinco por cento dos habitantes – graças ao método oficial (se assim se pode chamar ao das Escolas Normais) e outros semelhantes; não sendo justo que eu conserve por mais tempo obrigadas às suas promessas as pessoas se me prestaram a reger o curso pelo método da Cartilha Maternal, pondo-as assim em embaraços no governo da sua vida, como já sucedeu com a professora que rejeitou um excelente partido para fora do reino; tenho a honra de participar que retiro os três nomes que dei em meu ofício de vinte e três de Dezembro e me declaro estranho a todo o estudo particular ou confronto a que por acaso se haja de proceder oficialmente."
Referências: - Carvalho, R. (1996, 2.ª edição). História do ensino em Portugal: desde a fundação até ao regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. - Ferreira Gomes, J. (1976). Algumas reacções em torno da “Cartilha Maternal” de João de Deus. Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano X, 3-57.

O CORTEJO DE DOUTORAMENTO DE LULA DA SILVA HOJE EM COIMBRA

O PROBLEMA DOS TRÊS CORPOS E O CAOS


Meu artigo no número da "Gazeta de Matemática" que acaba de sair (n.º 163):

A obra maior do físico inglês Isaac Newton intitula-se Princípios Matemáticos de Filosofia Natural (1687) pois nela a matemática está omnipresente. Surgiu aí a expressão matemática da força da gravitação universal, uma força inversamente proporcional ao quadrado da distância entre dois corpos, com a qual se consegue descrever o movimento da Lua em volta da Terra ou o movimento da Terra em volta do Sol. Mas, embora o génio de Newton tivesse intuído a universalidade da força gravitacional (é com base nessa universalidade que, por exemplo, simulamos hoje choques de galáxias num supercomputador), e embora as poderosas ferramentas do cálculo infinitesimal tivessem ficado disponíveis, muitos problemas da chamada “mecânica celeste”, o estudo do movimento dos corpos celestes, ficaram em aberto. Desde logo o movimento conjunto do Sol, da Terra e da Lua, um exemplo do chamado “problema dos três corpos”. Essa questão tem desafiado os matemáticos e os físicos até à actualidade e está, de certo modo, na base da moderna teoria do caos. A aparente regularidade do movimento dos três corpos esconde uma insuspeita complexidade, que se manifesta quando se quer conhecer o futuro com precisão.

O poder da teoria newtoniana era enorme: ela conseguia descrever e explicar tanto a órbita aproximadamente circular da Lua em torno da Terra como a órbita, também aproximadamente circular, da Terra em volta do Sol, com base apenas na fórmula da força e na indicação das condições iniciais, isto é, a posição e a velocidade da Terra e da Lua. Cada um desses problemas diz-se um “problema de dois corpos”. De facto, pode mostrar-se que esses problemas de dois corpos se reduzem com facilidade ao problema de um só corpo: por exemplo, o sistema Terra-Sol pode ser substituído pelo movimento de um astro com a massa reduzida da Terra e do Sol (que é praticamente a massa da Terra, tal é a desproporção entre as duas) em torno do centro de massa (que coincide praticamente com o centro do Sol, pela mesma razão). Na mecânica de Newton, o problema de um corpo tem solução analítica, isto é, a equação diferencial de segunda ordem no tempo que descreve o movimento pode ser integrada para dar uma função conhecida, a função que descreve uma órbita elíptica.

Os matemáticos apreciam o maior grau de generalidade possível, pelo que alguns preferem tratar, em vez do problema de três corpos, o problema de n corpos e depois fazer n = 3. Em geral, o problema de n corpos consiste na resolução do seguinte conjunto de equações diferenciais:



em que m_j é a massa de cada um dos corpos (partículas), q_j são os seus vectores posicionais (os dois pontos por cima de q_j no primeiro membro significam segunda derivada em ordem ao tempo) e G é a constante de gravitação universal, uma vez dadas as posições iniciais e as velocidades iniciais dos n corpos (j = 1,..., n).

No entanto, o problema de três corpos celestes (Eq. (1) com n = 3), que interagem por meio da força de gravitação universal, cedo se revelou muito mais complicado do que o problema de dois corpos. Foi resistindo aos vários ataques que os sucessivos desenvolvimentos do cálculo infinitesimal permitiam. Métodos habilidosos, que apesar do seu engenho conduziam a resultados apenas aproximados, conduziram à descrição dos movimentos dos planetas do sistema solar tendo em conta não apenas a interacção com o astro-rei, mas também as suas interacções recíprocas: a coroa de glória da mecânica de Newton foi, sem dúvida, a descoberta do planeta Neptuno efectuada apenas com “a ponta do lápis”: os cálculos, na altura apenas manuais, necessários para descrever a órbita conhecida do planeta Urano implicavam a perturbação por um planeta então desconhecido, precisamente Neptuno. O astrónomo alemão Johann Galle que olhou pelo telescópio em 1846 para o sítio que tinha sido indicado, independentemente, pelo inglês John Adams e pelo francês Urbain Le Verrier (há alguma controvérsia sobre a primazia da descoberta), limitou-se a confirmar a previsão teórica.

O sucesso só foi possível porque a perturbação planetária era pequena. Casos mais intrincados estavam longe de ser simples. Um dos grandes herdeiros da mecânica de Newton, o matemático suíço Leonard Euler, mostrou em 1760 o seu génio ao propor certas soluções particulares para um modelo simplificado do problema de três corpos, chamado problema de três corpos restrito: nesse modelo, dois dos corpos, de maior massa, consideram-se fixos enquanto o terceiro corpo está móvel. O modelo, que admite algumas soluções analíticas, é, em boa verdade, um problema de um corpo no campo criado por dois centros de força. Apesar de ser interessante do ponto de vista matemático (o matemático italiano Joseph-Louis Lagrange deu, logo a seguir a Euler, uma outra importante contribuição), não tem correspondência física exacta: é impossível, na prática, “congelar” as posições e as velocidades dos dois astros de maior massa, por estes estarem sujeitos a atracção mútua.

O problema de três corpos tornou-se foco das atenções. Como os grandes problemas atraem os maiores génios, não admira que o grande matemático francês Henri Poincaré tenha, no final do século XIX, trabalhado nele. Em 1887, respondeu a um concurso do reino da Suécia e da Noruega que atribuía um prémio chorudo por ocasião da comemoração dos 60 anos do rei Óscar II. Pedia-se uma resposta à questão de encontrar uma solução na forma de uma série convergente para o problema de três corpos, o que seria um importante passo para conhecer a estabilidade a longo prazo do sistema solar. Poincaré não resolveu completamente o problema proposto, mas o seu trabalho sobre o problema de três corpos restrito foi distinguido. Um dos membros do júri, o matemático alemão Karl Weierstrass, afirmou: “Este trabalho não pode ser considerado realmente como fornecedor da solução completa para a questão proposta, mas o que de mais importante tem esta publicação é que ela inaugura uma nova era na história da mecânica celeste“. Com efeito, Poincaré, ao embrenhar-se na complexidade do problema considerado, tornou-se, sem ter consciência disso, o pai da moderna teoria do caos...

Vendo bem, não admira que o problema geral de três corpos não tenha solução analítica. Os físicos sabem que os problemas de mecânica se podem simplificar quando há quantidades físicas que se conservam. O problema gravitacional de dois corpos reduz-se ao problema de um corpo e este tem solução analítica graças à conservação de um certo número de grandezas, como a posição e o momento linear do centro de massa, o momento angular e a energia. É fácil verificar que o problema geral de três corpos tem muito mais variáveis do que grandezas que se mantenham constantes: provou-se um teorema segundo o qual só há dez grandezas que se conservam, as grandezas indicadas, ao passo que o problema de três corpos no espaço tridimensional tem 3 x 3 x 2 = 18 variáveis. Hoje em dia, depois do advento dos modernos computadores, problemas sem solução analítica têm solução numérica graças a técnicas de integração numérica. Dadas apenas as forças e as condições iniciais dos corpos em causa, podem conhecer-se todas as trajectórias em qualquer momento. Dizemos que o sistema é determinista, no sentido de que é possível conhecer o futuro a partir do passado: consegue-se calcular todas órbitas dos astros intervenientes a partir das suas posições e velocidades.

No entanto, tanto os físicos como, principalmente, os matemáticos gostam de dispor de soluções analíticas. Os métodos numéricos são eficazes, mas o resultado não é mais do que uma longa tabela de números, que, apesar de se poderem representar sob a forma gráfica, não fornecem necessariamente uma compreensão geral da dinâmica. E foi assim que o problema de n corpos, incluindo o caso n = 3, continuou até aos nossos dias a ser objecto de investigação dos que preferem teoremas e expressões analíticas a listas de números ou desenhos de curvas. Os tratamentos analíticos são dificultados por existirem na mecânica celeste as chamadas singularidades, correspondentes a aproximações mútuas muito grandes, choques mesmo, de dois corpos quaisquer, quando a distância é muito pequena e a força gravitacional é, por isso, muito alta. Um teorema notável a respeito do problema gravitacional de três corpos foi provado em 1912 pelo matemático finlandês Karl Sundman: ele mostrou que, excluindo as singularidades, existe uma solução na forma de uma série de potências da raiz cúbica do tempo, t^1 / 3 , série essa que é convergente para todos os valores reais de t. O problema geral acabou também por não resistir aos porfiados esforços dos matemáticos. Em 1991, o matemático norte-americano de origem chinesa Qiudong Wang generalizou o resultado de Sundman para valores arbitrários de n.

Os métodos analíticos e numéricos são complementares, já que iluminam o problema de maneira diferente. No caso do problema de n corpos, o cálculo de numerosos termos de séries (séries de convergência muito lenta) não é mais fácil do que a integração numérica directa, que hoje se faz trivialmente, se se dispuser de um computador pessoal e de um algoritmo adequado (um dos algoritmos mais simples de integração de equações diferenciais tem o nome de Euler: o método de Euler é demasiado grosseiro, mas uma sua modificação simples tem grande valor pedagógico, dando resultados muito razoáveis).

O que revelaram os computadores, de uma maneira muito mais clara e directa do que os métodos analíticos? Pois revelaram que o sistema de três corpos celestes, apesar de ser determinista (as equações são bem conhecidas, não havendo nenhum elemento de acaso), mostra um comportamento caótico, no sentido em que duas condições iniciais muito próximas conduzem a órbitas que se tornam rapidamente muito diferentes. A palavra “caos”, que é de uso corrente, tem em física e matemática um significado preciso: extrema sensibilidade às condições iniciais, quer dizer, divergência de soluções inicialmente próximas. A teoria do caos surgiu, muitos anos após o caos ter sido entrevisto por Poincaré quando, em 1963, um meteorologista do MIT, o norte-americano Edward Lorenz, estudava numericamente as soluções de um problema de três equações diferenciais não lineares de primeira ordem que descreve um fluxo de uma camada de fluido sujeita a um aquecimento por baixo. Não foi sem surpresa que verificou que duas entradas de dados muito próximas correspondiam a resultados que a prazo eram muito afastados. O interesse pelo caos explodiu com a democratização dos computadores que se verificou no início dos anos 80 do século passado. Pode mesmo dizer-se que o novo instrumento possibilitou o aparecimento de uma “ciência nova”. Aproximações numéricas e analíticas fertilizaram-se mutuamente, seja em questões de meteorologia (uma tempestade no Brasil pode ser provocada por um bater de asas de uma borboleta na China, o chamado “efeito borboleta”), seja em questões de vários outros domínios. A descoberta do caos na mecânica celeste é, de certo modo, paradoxal: pois não é a descrição do sistema solar que hoje possuímos um triunfo dos métodos analíticos devidos a Newton e uma confirmação da extraordinária capacidade de previsão da física-matemática? Sim, mas, há quase cinco mil milhões de anos, no início do sistema solar, este, em vez de ser essencialmente ordenado como hoje, era caótico e só uma “selecção natural” das órbitas “mais aptas” levou à situação de ordem actual (e, já agora, esse “darwinismo cósmico” esteve na base da selecção natural que se seguiu ao aparecimento da vida no terceiro planeta a contar do Sol). Os choques cósmicos levaram à perda de muitos corpos celestes. E, mesmo hoje, de posse de computadores muito sofisticados que permitem cálculos astronómicos a muito longo prazo, sabemos que o sistema solar exibe um comportamento caótico. O físico-matemático francês contemporâneo Jacques Laskar verificou mesmo que, a longo prazo, a órbita do nosso planeta não é tão estável como esperamos.

Pois os céus que eram, no tempo de Newton, o reino da ordem, são, no tempo de Laskar, o reino da desordem. Como que a prová-lo, aparecem inesperadamente asteróides, alguns dos quais podem constituir um perigo para a Terra (ou, mais propriamente, para a vida na Terra). Poincaré permanece actual, pois alguns dos problemas que estudou continuam nos nossos dias, agora aligeirados por progressos substanciais de compreensão: o matemático francês não conseguiu progredir mais apenas porque lhe faltava na época o computador digital. Hoje, esse é um instrumento para observar o céu tão importante como o telescópio. O telescópio permite observar o céu o presente, ou melhor, o passado, pois a luz, com velocidade constante, demora tempos diferentes a vir de astros a distâncias diferentes. Mas o computador permite “observar” tanto o futuro como o passado, é uma verdadeira máquina de viajar no tempo. Porém, com a incerteza intrinsecamente associada à noção de caos, estamos condenados a desconhecer com precisão o futuro astronómico, mesmo que conheçamos muito bem as condições actuais dos astros à nossa volta. O nosso futuro, mesmo do ponto de vista astronómico, é incerto!

Halley, 2250 anos de encontros.

cometa Halley (1986)

Terá sido neste dia mas do ano 239 a.C. que os astrónomos chineses Shih Chi e Wen Hsien Thung Khao registaram a primeira aparição do mais famoso dos cometas - o Halley. Foi o primeiro cometa devidamente conhecido ao nível da previsão das suas aparições (em cada 75 ou 76 anos). Visitou-nos no ano da nossa República (1910), em 1986 e, se o Halley ainda estiver "por aí" (e nós também), vamos, de novo, apreciá-lo a 28 de Julho de 2061! Até lá, ele continuará a sua viagem por entre os planetas gigantes do sistema solar exterior e os rochosos planetas mais próximas da Terra, no sistema solar interior.

terça-feira, 29 de março de 2011

Esperança (II)



Uma poderosa mensagem de esperança dita por 50 pessoas.

A Nave dos Loucos

Lembram-se de um filme de 1965, de Stanley Kramer a partir de um romance de Katherine Ane Porter, com Lee Marvin, Vivien Leigh, Sigmone Signoret e José Ferrer intitulado A Nave dos Loucos?

É a ideia que Portugal dá: uma nau de loucos, no meio da tempestade, com o leme partido e as velas rotas. O Presidente faz um discurso incendiário, quando a atmosfera estava ao rubro e o calor era sufocante. Um bombeiro pirómano em dia de greve. O Governo (por falta de jeito ou premeditadamente?), como se não tivesse que dar contas a ninguém, nem soubesse da fragilidade política em que estava, pareceu um elefante desorientado por uma loja de louças. Quanto às oposições, sempre o mesmo; não têm emenda. Uns, à direita, com uma ânsia de poder que chega a ser impúdica; outros, à esquerda, sempre cantando de fora, perderam a razão e a realidade. No que respeita à direita, lembramo-nos bem da sua ave canora, à frente d’ O Independente, anunciando escândalos todas as semanas. Muitos sem consistência, simples fogos de palha, mas impiedosos e sistemáticos até à destruição do governo de Cavaco Silva, a quem agora tecem loas e canta hossanas. Os da esquerda esquecem-se que sempre foram contra todos os acordos, todos os orçamentos, todas as concertações sociais, todas as coligações, todos os entendimentos, enfim tudo o que fosse resolução de problemas.

Nem à esquerda nem à direita há pois autoridade moral. E que falta ela faz! Mas continuam. À direita, a invocar princípios e coerências, e à esquerda a apregoar coerências e princípios. Uns, mudam de princípios como de camisa, embora digam, em relação a tudo, que “sempre têm dito”, etc. Outros, com duas ou três ideias mais secas e espalmadas que arenque fumado; sempre de facto disseram (dizem e dirão) o mesmo.

Mas a massa não política não está melhor. Uns, em jornais, blogs, entrevistas de rua para as televisões e antenas abertas, com comentários tolos ou furiosos, mostram como nos falta bom senso, informação e espírito democrático. Outros, muitos, cada vez mais, achando que “todos” são iguais, ajudam a afastar os competentes e alimentam a praga dos carreiristas, que dão cabo do país.

E quanto à crise atual, também temos muitas culpas. Andámos, durante anos, endividando-nos euforicamente, como se fôssemos ricos. Continuávamos pobres e pouco produtivos, mas, levados pela indústria do consumo, chegamos a isto. E os bancos - com o Banco de Portugal à cabeça, dormindo um sono profundo - a empurrarem-nos para crédito em massa e para o consumo alegre e desenfreado. E não explicando que, para nos emprestar, se endividavam nos bancos estrangeiros. Ninguém alertava: nem Governo, nem Presidente, nem Oposição, nem Comunicação Social; só um ou outro medina-carreira ou ferreira-leite, que ninguém quis ouvir. E agora reclamamos e fazemos greves. Para melhorar a situação e facilitar a vida aos mais pobres, claro. A desonestidade, a estupidez e a velhacaria é que deviam pagar imposto.

João Boavida

O 1º Jardim-Escola João de Deus de Coimbra: Coisas de Ciência em 1912.


No próximo dia 2 de Abril comemorar-se-á o centenário do primeiro estabelecimento de ensino pré-escolar em Portugal: 1º Jardim-Escola João de Deus de Coimbra. A propósito, escrevi, em altura oportuna, um texto que a seguir transcrevo, que retrata o ensino das ciências nessa escola em 1912. Este artigo foi publicado no número 32 da revista Rua Larga da Universidade de Coimbra.

"Era o dia 2 de Abril de 1912. O sorriso sereno de António irradiava a felicidade que partilhava, de mão dada, com o seu avô paterno João. Participavam na comemoração do primeiro aniversário do primeiro Jardim-Escola João de Deus, debruado com árvores centenárias que pareciam ainda ressonantes com a festa da inauguração. Contudo, já tinha decorrido um ano desde que, em Coimbra, se inaugurava o primeiro estabelecimento fixo de educação pré-escolar em Portugal, sucedâneo das Escolas Móveis (estas criadas em 1882 por um conjunto de intelectuais portugueses liderados por Casimiro Freire) segundo o Método de João de Deus.

Enquanto os elementos da Banda Militar da Infantaria 23 se colocavam a preceito na partitura de A Portuguesa, hino da República Portuguesa proclamada havia pouco mais de ano e meio, em 1910, os colegas do António e seus familiares aconchegavam-se, sem distinções de classes, géneros e sexos, no amplo jardim, espaço de escola e lugar de todas as estações e pensamentos livres, agora sobrelotado pela multidão festejante.

Como se chamado pelas afinações musicais, o eléctrico com a indicação Jardim-Escola João de Deus passou ao largo, também ele aniversariante, uma vez que circulara todo o ano pela cidade a transportar de manhã e de tarde António e os seus colegas.

Recordava as viagens matutinas, demoradas pela ansiedade de chegar ao espaço de dignidade igual entre colegas, mas alegradas pelos cantares com que se uniam em coro de vontades propulsoras.

Um sobrolho carregado trouxe-lhe a recordação dos regressos a casa, ao fim da tarde depois das cinco, em que o choro de quererem ficar para sempre no Jardim-Escola abafava o chiar metálico dos carris até aconchego do lar. Mas, persistente, cada alvorada trazia de novo o eléctrico no trilho do Jardim-Escola, lavado das tristezas vespertinas, confiante do rumo certo a conquistar dia após dia.


Naquele primeiro ano, 80 crianças entre os três e os oito anos, tinham convivido entre o Jardim, o Salão, as Salas de Aula e a Cantina, agrupados consoante a idade, por três secções. A primeira aninhava os mais pequenos com três a cinco anos de idade, 30 na totalidade. Na segunda secção, 26 crianças, de entre cinco a seis anos. O António e restantes 23 colegas com até oito anos de idade constituíam a terceira secção. Naquele primeiro ano, as professoras Guilhermina Pereira d’Eça de Figueiredo, Maria do Céo Rio e Maria Serrão da Veiga tinham guiado a aprendizagem simultaneamente racional, livre e adequada às idades em cada uma das secções.


Em cada dia útil, todos se reuniam pelas nove horas matutinas no Salão, lugar amplo de partilha de conhecimento onde, com disciplina e respeito, se desfaziam as dúvidas e se lavravam os terrenos férteis e genuínos da infância com o inovador Método de João de Deus. Em Janeiro, tinham iniciado as lições de leitura e escrita, seguidas pelas Lições de Cousas (por Saffray, traduzido por M. C. Mesquita Portugal, 1895) e trabalhos manuais diversos. Sem esquecer os primeiros seis Dons de Froëbel o Cuisenaire, o Calculador Multi-básico, as Palhinhas, os Tangrams, o Geoplano e os Blocos Lógicos, companheiros inseparáveis, entre outros jogos, da Arte das Contas (começada por João de Deus e completada pelo seu discípulo Frederico Caldeira, 1914) com que os números, a álgebra, a geometria e os volumes se aprendiam divertidamente.

Assim, prosseguiam a natural e espontânea habilidade em observar a natureza com os sentidos guiados pela curiosidade crítica e formular os porquês cardiais da explicação com as ferramentas do intelecto. Desta forma, fortalecia-se a assimilação do método científico imprescindível, a par com a alfabetização, para uma melhor formação de pessoas úteis à sociedade em transformação.


Afagado pela segurança do saber do avô João, António lembrava-se do seu maravilhamento quando, numa manhã, a professora lhes tinha mostrado como funcionava a máquina a vapor, através de um brinquedo que João de Deus Ramos provavelmente encomendara da casa de material escolar e didáctico francesa Les Fils D’Émile Deyrolle (46, Rue du Bac, Paris), e com que todos puderam brincar. Ou daquela outra manhã em que a professora tinha feito “desaparecer” um punhado de sal num vaso com água, para a seguir o fazer “reaparecer” após o ter deixado durante um dia ao Sol no Jardim! A água evaporara-se com o calor do Sol, mas o sal não. E este era o princípio do trabalho nas salinas, explicara-lhes a professora.

Um ramo de folhas bailava ao som do vento e a luz folheada iluminou outra manhã na recordação do António. Aquela em que tinham brincado com um pião de disco pintado radialmente com as cores do arco-íris (disco de Newton). Ao girar, as cores mesclavam-se todas como se de branco estivesse o disco pintado. À medida que o giro desacelerava, imergiam do branco as cores primeiras, para ficarem de novo “puras” quando o pião parava. A professora disse-lhes então que o mesmo acontecia com a luz do Sol: ela era o resultado da sobreposição de luzes de todas as cores visíveis. E ensinou que só as poderiam ver distintas e separadas se cada uma delas abrandasse em proporção diferente em relação às restantes. É isso que acontece sempre que a luz do Sol atravessa e é refractada e reflectida pelas gotas da chuva, expondo o arco-íris para nosso encanto, ou quando atravessa um prisma de vidro ou cristal como também lhes tinha mostrado a professora, reproduzindo, sem o dizer, a famosa experiência de Newton.


Um mar de gente emprestava cor ao Jardim-Escola e avivava com elevado respeito a obra materializada por João de Deus Ramos, após o seu périplo no início do século XX por diversas instituições de ensino pré-escolar por essa Europa fora, mas sintonizado com a pedagogia e didáctica inclusa na Cartilha Maternal que seu pai, o poeta João de Deus, tinha publicado em 1876. Uma toada de felicitações acarinhava toda a gente num assentimento da utilidade da educação infantil como sólida fundadora de uma sociedade com os ideais da República. “A cada novo ideal da humanidade corresponde um novo ponto de vista pedagógico”, tinha escrito João de Barros. E o do João de Deus apropriava-se oportunamente aos da República."

António Piedade

Esperança (I)


Todas as grandes coisas são simples. E muitas podem ser expressas numa só palavra: liberdade; justiça; honra; dever; piedade; esperança."
Winston Churchill

GRANDES ERROS: NUVEM RADIOACTIVA CHEGA A PORTUGAL


O "Correio da Manhã" de hoje titula hoje na primeira página "Nuvem radioactiva chega a Portugal", afirmando que "foram detectadas" partículas radioactivas nos céus dos Açores. A notícia tem um pequeno problema: não foram detectadas nenhumas partículas! A nova "onda de medo" foi criada a partir de uma informação de um investigador da Universidade dos Açores, que fez um cálculo - uma modelação computacional com uma enorme margem de incerteza - do espalhamento de partículas do ar do Japão dizendo aquilo que ele e toda a gente minimamente informada já sabia: que há circulação do ar no planeta. Portanto, é possível e até provável que uma ou outra partícula radioactiva apareça na alta atmosfera em qualquer sítio do mundo. Podem vir de Fukushima, ou podem vir de testes nucleares, ou podem até ser absolutamente naturais. Do mesmo modo, é não só possível como provável que eu esteja a respirar neste preciso momento uma molécula de dióxido de carbono do último bafo de Júlio César depois de dizer, na versão de Shakespeare, "Et tu Brute?" (sim, já alguém fez as contas, que são muito mais simples e precisas que as do modelo açoriano!). E depois?

Hoje de manhã bebi leite dos Açores e comi torradas com manteiga açoriana a vou continuar a fazê-lo tranquilamente. As notícias sobre a nuvem radioactiva nos Açores são um completo disparate: os comentários feitos on-line por alguns leitores sobre o brilho de Pauleta no escuro não passam de piadas de humor negro, ou, se quisermos. de mau gosto, pois Pauleta brilha mesmo sem ser no escuro.

A FÍSICA NUCLEAR, O AMBIENTE E O KOSOVO


Agora que chegou a Portugal o medo da "nuvem de Fukushima" recupero um texto meu de há dez anos (a Física Nuclear faz agora cem anos e não 90, mas não emendei) que vinha a propósito do medo do urânio empobrecido do Kosovo (estas ondas de medo são recorrentes!). O texto saiu no meu livro "A Coisa mais Preciosa que temos", da Gradiva, que está esgotado:

Em finais do século XIX, mais precisamente em 1896, o francês Henri Becquerel foi testemunha, ainda que involuntária, da primeira manifestação reconhecida do núcleo atómico. Tinha deixado um minério de urânio numa gaveta juntamente com uma placa fotográfica e verificou, algo atónito, que a placa, apesar do escuro da gaveta, ficou impressionada.

Era caso para se ficar impressionado e ele ficou. Os núcleos atómicos tinham permanecido anónimos desde que existiam, isto é, quase desde o início do Big Bang, mas a radioactividade – os raios invisíveis provenientes do núcleo – eram um seu sinal inequívoco. Mas, apesar da evidência experimental das radiações (a que se deu o nome, seguindo o alfabeto grego, de alfa, beta e gama, conforme se desviavam para um lado, para outro, ou não se desviavam sob a acção de um campo eléctrico), não se reconheceu logo o lugar de onde vinham. Tal só aconteceu em 1911, mais precisamente a 7 de Março (fez agora 90 anos!), quando o físico britânico (nascido na Nova Zelândia e, por isso, a maior contribuição que a Oceânia deu à Física) Ernert Rutherford leu, perante a Sociedade Filosófica e Literária de Manchester, uma curta comunicação onde anunciava que a deflexão de raios alfa por uma fina folha de ouro só podia ser explicada admitindo que, no centro do átomo - essa peça mais pequeno de uma substância - existia um ponto com carga eléctrica positiva, que produzia, ele próprio, um campo eléctrico intenso. Uma fotografia famosa de 1911 mostra a nata dos físicos de então, onde não falta o jovem Rutherford, de bigode, e a única mulher, Marie Curie, a discípula de Becquerel que tinha descoberto o elemento rádio e explorado a radioactividade com prejuízo da própria saúde (viria a falecer em consequência da exposição demasiada à radiação).

O átomo é quase só espaço vazio. Se o núcleo tivesse o tamanho de um caroço de fruta colocado no centro do Estádio da Luz, os electrões mais exteriores circulariam bem longe, por volta do terceiro anel. O núcleo domina, com mão de ferro, os electrões, a orbitar à volta dele. Mas o núcleo atómico não é bem um ponto: ocupa espaço, tem estrutura interior. Apesar de ser ditatorial para a população atómica, é ele mesmo uma democracia. É formada por dois tipos de partículas, os protões e os neutrões, parecidas em tudo excepto na carga eléctrica. Pouco depois da descoberta de Rutherford identificaram-se os protões, cuja carga positiva total equilibra a carga negativa total dos electrões do átomo, e, em 1933, os neutrões, partículas sem carga. Hoje sabemos que tanto protões como neutrões são feitos de quarks, um nome que foi “roubado” por Gell-Mann ao romance “Finnegan’s Wake” de James Joyce, mas ainda não conseguimos desacorrentar os quarks (que estão condenados a permanecer juntos, em pequenos grupos, tal como alguns coitados de um programa televisivo recente).

Há na Natureza 92 átomos diferentes, desde o hidrogénio – o mais leve – ao urânio – o mais pesado - mas cada um desses átomos pode existir tendo no centro núcleos um pouco diferentes (a bem dizer, há mais do que 92, uma vez que o homem já fabricou alguns elementos transuranianos). O hidrogénio pode ter um núcleo com um só protão (é o normal), pode ter um protão e um neutrão (tem-se então o chamado deutério), ou pode ainda ter um protão e dois neutrões (o trítio). Só o hidrogénio normal é estável. Os outros dois núcleos têm neutrões a mais e são radioactivos. O neutrão decai mudando-se basicamente em protão e em electrão, conservando-se a carga total nula. Os electrões saem do núcleo, em consequência do decaimento do neutrão, constituindo os raios beta. Os raios que originam as imagens num ecrã de TV são feixes de electrões tal qual os raios beta provenientes dos núcleos. O segundo átomo mais leve é o hélio. Também o seu núcleo existe em várias modalidades. A normal ou estável é o hélio 4, com 2 protões e 2 neutrões (total 4). Os raios alfa não passam de núcleos de hélio. Uma outra forma de hélio é o hélio 3, com dois protões e um neutrão (total 3). O hélio é um ingrediente abundante no Sol, que mais não é do que uma fábrica de hélio a partir da matéria-prima hidrogénio. No Sol, quatro núcleos de hidrogénio dão origem a um núcleo de hélio 4, libertando grande energia, tal como acontece na terra numa bomba de hidrogénio ou num reactor experimental de fusão nuclear.

E, para abreviar uma história longa, chegamos ao núcleo mais pesado da Natureza – o urânio. O urânio existe em várias formas todas elas radioactivas: urânio 238, 237, 236, 235, etc. (o número é o total de protões e neutrões). O urânio está agora nas bocas do mundo por causa do Kosovo. O urânio empobrecido é quase só urânio 238, ao passo que o urânio enriquecido é o urânio 235, utilizado para cisão em centrais nucleares. O urânio 238, com mais 3 neutrões que o anterior, no fim de um complicado processo de decaimentos radioactivos (com raios alfa, beta e gama), acaba num dos maiores núcleos estáveis, o chumbo.

Desde o tempo de Becquerel e Curie que se sabe que a radioactividade excessiva é prejudicial aos seres biológicos: os raios alfa, mais pesados, são os mais nefastos. Tal acontecem porque deslocam electrões do átomo, prejudicando o desenrolar normal dos processos biológicos. Mas o urânio existe na Terra, em particular nas regiões graníticas. De resto, muitos outros núcleos radioactivos, embora em quantidades pequenas, existem também na Terra. O nosso ambiente está cheio de átomos com núcleos radioactivos, emissores de radiações alfa, beta e gama. Desde que o homem existe sobre a Terra – e já lá vai mais de um milhão de anos - se habituou a viver com isso; portanto, desde muito antes de saber que os núcleos existem, que o homem vive num ambiente de radiação, num “banho” nuclear, embora pouco intenso. Por exemplo, o carbono faz parte da vida, mas há formas radioactivas de carbono que entram dentro do nosso corpo assim como entraram dentro do corpo do homem pré-histórico (servindo esse facto para datações arqueológicas). Também o potássio dos nossos ossos é em parte radioactivo (sim, somos emissores radioactivos e parte da radioactividade a que estamos sujeitos não vem do ambiente mas sim do interior de nós próprios!). Mas de onde vieram os núcleos mais pesados que o berílio, como o carbono, o cálcio e o urânio? De dentro de uma estrela, tal como o hélio que é feito no Sol. O nosso ambiente foi “cozinhado”, e a matéria dos seres humanos com ele, no interior de uma grande estrela, que explodiu espalhando as suas entranhas no espaço em volta.

Desde pouco antes da Segunda Guerra Mundial que o homem sabe fazer núcleos novos, instáveis. Sabe, portanto, criar radioactividade artificial (foi uma filha de Madame Curie, Irène, quem primeiro a produziu). As duas bombas atómicas de 1945 lançaram radioactividade para o ambiente, assim como a central nuclear de Chernobyl, ao explodir acidentalmente em 1986. Mas, como foi dito, a radioactividade do ambiente só em pequena parte é artificial. A maior parte da radioactividade a que estamos sujeitos é natural, vinda quer do manto terrestre (a manifestação mais perigosa é o radão, um gás radioactivo que gosta de ocupar as caves em regiões graníticas) quer do espaço extraterrestre (os raios cósmicos, que resultaram de estrelas longínquas que explodiram, e que bombardeiam continuamente o nosso planeta). Quanto à radiação artificial, decerto que a há, mas a dose maior recebemo-la num normal exame de raios X ou de TAC, onde também são emitidos raios X. Num tratamento de tumores cancerígenos, a dose é enorme: o paciente sujeita-se a ela para destruir as células em proliferação descontrolada. Estes são casos evidentes da utilidade da radiação.

E o Kosovo? Não se trata de uma zona com maior radioactividade natural do que outras. A radioactividade artificial, devida ao urânio empobrecido na constituição dos obuses, é também minúscula. Se há síndrome do Kosovo, ela poder-se-á dever mais à química do que à física... Respirar ou ingerir partículas de urânio ou de qualquer outro metal pesado não é propriamente saudável. O autor destas linhas suspeita que, a haver algum patologia generalizada anormal (o que não está provado), poder-se-á tratar mais de substâncias químicas poluentes libertadas de instalações industriais bombardeadas do que do tão temido urânio empobrecido. Temos, depois de Hiroshima e Chernobyl, tanto medo da física que até nos esquecemos que é preciso ter medo da química. E, acima de tudo, é preciso saber avaliar e controlar os nossos medos.

LIVROS PARA SABER MAIS

- Rómulo de Carvalho, “História dos Isótopos”, Atlântida, 1962. Livro a reeditar pela editora Relógio d´Água e que explica, com exemplar clareza, o que são os núcleos radioactivos. Isótopos são núcleos do mesmo átomo (com o mesmo número de protões e electrões), mas com diferentes números de neutrões.

- Jaime Oliveira e Eduardo Martinho, “Energia Nuclear. Mitos e Realidades”, O Mirante, 2000. Obra pedagógica da autoria de dois físicos nucleares que se recomenda vivamente como introdução às questões do nuclear. Particularmente recomendável é o prefácio desse grande divulgador de ciência que é António Manuel Baptista. Ele insurge-se – e com razão – contra a actual fobia anti-nuclear.

Na figura: tratamento médico com radiação nuclear.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Grandes erros? Uma estrada japonesa

Enviou-nos uma leitora as duas imagens que se seguem com o comentário que abaixo reproduzimos:

"Uma estrada japonesa, depois do sismo: A mesma estrada seis dias após o sismo: Eles não são assim por serem ricos, eles são ricos porque são assim!"

O nariz como força de bloqueio

A caixa original onde estão guardadas as amostras da experiência de 1958 realizada por Stanley Miller

Eis a minha crónica semanal no jornal i; de novo, Stanley Miller.


Há umas semanas atrás, apresentei aqui a famosa experiência da década de 50 de Stanley Miller e Harold Urey: misturando água, alguns gases e faíscas eléctricas, ou seja, simulando as condições da Terra primitiva, obtemos como resultado o aparecimento de alguns aminoácidos, os blocos da vida. Eis que se abriu o armário da experiência (literalmente) e novo espanto! Entre 1953 e 1958, Miller procurou sempre aperfeiçoar a sua experiência, tentando simular quimicamente uma Terra primitiva cada vez mais realista. Numa dessas experiências acrescentou algo: sulfeto de hidrogénio, o gás proveniente da intensa actividade vulcânica desses tempos! Curiosamente, Miller guardou as amostras com os resultados e nem sequer as analisou! Até que, em 2008, uma equipa de investigadores encontrou-as, analisou-as com um instrumento mil milhões de vezes mais preciso que o de Miller e publicou os resultados na semana passada. Mais de 50 anos após a experiência, detectaram 22 aminoácidos, 10 dos quais nunca descobertos nas experiências anteriores, realçando a importância dos vulcões no processo do aparecimento e desenvolvimento da vida! Por que razão Miller arrumou num armário esta valiosa experiência? Ainda ninguém sabe! Mas há uma desconfiança aromática: Miller terá confidenciado a alguns alunos que odiava o cheiro do sulfeto de hidrogénio (a ovos podres) e que o mesmo o deixava doente! Eis, então, a curiosidade científica vencida por um... nariz!

domingo, 27 de março de 2011

MINHA ENTREVISTA AO PROGRAMA "INOVADORES" DA TVI24

Ver aqui entrevista que dei recentemente na Biblioteca Joanina sobre ciência, incluindo investigação, comunicação e ensino (a partir do minuto 5).

ENCONTROS FÉ E CULTURA

Informação recebida do Centro Universitário Manuel da Nóbrega (clicar no cartaz para ver melhor):

"O ACTOR" de HERBERTO HELDER


No Dia Mundial do Teatro mão amiga mandou-nos o poema "O Actor" de Herberto Hélder:

O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

Herberto Hélder

OS REPUBLICANOS E O AQUECIMENTO GLOBAL


Habitual destaque semanal para a coluna "What's New" do físico norte-americano Robert Park:

IGNORANCE: HOUSE COMMITTEE VOTES TO OVERTURN NATURAL LAW.

"The price of gasoline at the pump is at the highest level ever for this time of year. That’s not all bad; raising the price is the only effective way to reduce consumption, thereby improving the environment and delaying the dreaded Hubbert peak. There are, however, two ways to raise the price to the consumer: increase the profit margin of the oil industry, or levy a large consumption tax. The revenue from a heavy consumption tax would help to pay the crushing costs of the Bush economy. You will not be surprised, however, to learn that the Republican Congress overwhelmingly prefers the first method, which will embodied in the Energy Tax Prevention Act of 2011, in preparation. But first they had to amend the Clean Air Act to eliminate the authority of the Environmental Protection Agency over greenhouse gases. According to an editorial in last week's Nature, the Republican disdain for climate science was evident in the "anger and distrust directed at scientists and scientific societies." The widespread melting of snow and ice, and rising global average sea level, is unequivocal evidence of global warming."

Robert Park

O teatro escolar jesuíta

No Dia Mundial do Teatro, reavivamos, pela mão de António José Saraiva e Óscar Lopes, a memória do teatro escolar jesuíta.
"Os Jesuítas, na sua Universidade de Évora, no seu Colégio das Artes coimbrão, nos colégios de Lisboa, Braga, da Índia e do Brasil, continuam a servir-se do teatro como exercício conversação latina e como número de festas comemorativas para visitas ilustres (pessoas régias, provinciais, prelados, etc.) ou para grandes acontecimentos escolares (distribuições de prémios), tal como tinham feito os professores bordaleses trazidos por André de Gouveia.

Os géneros mais representados eram a tragédia bíblica (predominante no século XVI), a fantasia alegórica, já cultivada por Naharro e Gil Vicente, denominada (como na Compilação dos autos vicentinos, 1562) de tragicomédia e enquadrada numa cenografia que pretende deslumbrar, a tragédia hageográfica (dominantes desde 1619), e espectaculosas pastorais, sobretudo pretextadas na história de David (frequentes sob domínio filipino).

A grande novidade apresentada em Portugal pelo teatro escolar jesuíta foi uma encenação enriquecida com as criações cenográficas italianas do século XVI: os panos de fundo pintados segundo as leis da perspectiva, mutações mecânicas de cenário, decoração e guarda-roupa aparatosos, efeitos de acompanhamento instrumental ou coral.

As personagens contavam-se em regra por dezenas (ou centenas); os coros serviam, mesmo nas tragédias, de entremês vistoso; e a intenção edificante era condimentada com cenas truculentas, duetos oratórios ou sentenciosos, cortejos, marchas sob fanfarras e pendões, caçadas bailados e apoteoses finais.

Na sua fase final do tempo de D. João V, a coreografia e a cenografia jesuíta atingiram o apogeu, com profusão de bastidores movidos a máquina, dispostos em profundidade, coros à vista ou ocultos, e complicados conjuntos de ballet.

Mas nunca se igualou a magnificência da tragicomédia A Conquista do Oriente, representada no Colégio de Santo Antão por ensejo da visita de Filipe II (de Portugal) em 1619, cujo guarda-roupa, reunido por empréstimo de conventos, igrejas e famílias fidalgas, contava alguns milhares de pedras preciosas, tecidos e baixelas riquíssimas, num estendal espalhafatoso.

Deve acrescentar-se que o conteúdo ideológico, psicológico ou poético deste teatro não tem originalidade. A Ratio Studiorum, admitindo-o como exercício escolar, recomendava a seu respeito a máxima cautela, excluindo a intervenção de personagens femininas, ou o uso de outra língua que não fosse o latim e preceituando o confinamento a assuntos pios.

Entre os dramaturgos jesuítas neolatinos cujas peças se representaram em Portugal destaquemos apenas, pelos méritos literários, e por certo cunho temático algi nacional (advertências veladas a D. Sebastião, certo aparente anticastelhanismo), o Padre Luís da Cruz, ou Ludovicus Crucius, cujas Tragica e Comica e que Actiones foram impressas em Lião, 1605."
Referência completa: Saraiva, A. J. e Lopes, O. (1976, 9.ª edição). História da Literatura Portuguesa. Porto Editora, 228-229.

Teatro Imaginário

No Dia Mundial do Teatro, na Antena 2 da Rádio uma dupla recordação: de Gil Vicente e do Teatro Imaginário. Pelas vozes dos actores deste teatro, voltou a ouvir-se, durante a manhã, uma peça do Mestre, Romagem dos Agravados, com realização: Eduardo Street e adaptação de Leopoldo Araújo. Nessa peça, apresentada para comemoração de nascimento real e proibida pela Santa Inquisição, conta-se que "a caminho de uma romaria, passam evidenciando os seus vícios típicos em monólogos e diálogos, camponeses, fidalgos, freiras, clérigos (...)" (António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 1976, 9.ª edição, 202).

sábado, 26 de março de 2011

CARLOS ADRIÃO RODRIGUES OU DO BOM USO DAS MÁS COMPANHIAS

“Em todas as decadências o primeiro sintoma é a depravação do sentimento da amizade” (Pierre-Joseph Proudhon, 1809-1865).

O meu conhecimento de Eugénio Lisboa (que se viria a transformar em forte amizade e grande admiração em Lourenço Marques onde nos viemos a reencontrar anos depois) data da nossa frequência no Curso de Oficiais Milicianos, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, em início da década de 50, numa altura em que o desconforto da caserna e do famigerado campo de obstáculos, para os cadetes menos inclinados para as práticas físicas, era agravado pelo militarismo desapiedado do então comandante de Batalhão, de seu apelido Carrasco.

Carrasco de nome e senhor de uma férrea disciplina militar que não se coadunava com a nossa vivência anterior de jovens civis, uns já licenciados, outros arrancados aos respectivos cursos superiores por completar (o Eugénio, então, no último ano do curso de engenharia electrotécnica do Instituto Superior Técnico). Acredito que muito terá sofrido este meu então camarada de armas subtraído, ademais, das suas leituras e tertúlias literárias estudantis.

Mas nem tudo foram espinhos para si, como nos dá conta no seu último post aqui publicado, Um Homem Bom (21/03/2011), em que nos relata a sua colocação em Portalegre como oficial miliciano e de uma vida de convivência com grandes vultos da Cultura e de não menor humanismo. Eis-nos, agora, perante a sua homenagem póstuma a Carlos Adrião Rodrigues em texto que ora se publica e em que sobressai o nobre sentimento da amizade cultivado em elevada medida:

“A notícia dada ontem (dia 10) pelo João Afonso dos Santos abalou-me profundamente: o Adrião, como nós, afectuosamente, lhe chamávamos, tinha sido encontrado sem vida, de manhã, na sua cama: ar sereno, olhos fechados, as mãos cruzadas no peito, morrera, provavelmente, durante o sono. Foi como se, de repente, me roubassem, num minuto negro, toda a minha juventude. Num texto que me dedicou, o Adrião começava por citar Rilke, segundo o qual, a nossa pátria é a nossa juventude. A minha juventude foi, sobretudo, a que tive em Lourenço Marques – uma juventude cheia, variada, estimulante, não raro perigosa, por causa dos combates que travávamos, com alegria e algum desprezo pelas consequências: combates culturais, políticos, cívicos, enfim, combates... O Adrião estava sempre presente, quando não era ele mesmo que os iniciava, disponível, cheio de ideias e astúcias, que lhe vinham com uma naturalidade bem humorada e pachorrenta. A sua bonomia inquebrantável amaciava qualquer frenesi ou terror que ocasionalmente visitasse os bem intencionados menos afoitos.

No Cine–Clube, de que foi presidente, mais de uma vez, desenvolveu, com um dinamismo discreto mas altamente produtivo, uma actividade impressionante. Graças a ele, num período de censura altamente repressiva, vimos ali, numa Lourenço Marques remota e mágica, todos os grandes clássicos do cinema americano, inglês, russo, polaco, checoeslovaco, húngaro, italiano, francês, japonês. Muitos deles, sobretudo os dos países de leste, só foram vistos em Lisboa depois do 25 de Abril, quando nós já os tínhamos gozado, traduzido e profusamente comentado, muito antes, em Moçambique. Graças, em grande parte, à complacência envergonhada de um censor monárquico...

No Cine–Clube, n’A Voz de Moçambique, na Tribuna, no Teatro de Amadores de Lourenço Marques (TALM), do Mário Barradas, a presença influente e activa do Adrião era obrigatória, fecunda e indispensável. Moçambique ficou a dever muito ao Carlos Adrião Rodrigues, como dinamizador cultural e como advogado sorridente, bem informado, plácido, lento no andar, mas rápido na acção e intrépido no ataque, surpreendendo o adversário com a sua modéstia sossegada. O Craveirinha, o Luís Bernardo Honwana, o Virgílio de Lemos foram apenas alguns dos que o Adrião defendeu, em julgamentos públicos que marcaram uma época.

Já na independência de Moçambique, o Banco de Moçambique e Moçambique ficaram a dever à integridade e competência de Adrião Rodrigues serviços inestimáveis. Serviços que prestava sem alarde, com inteligência e, se necessário, com alguma matreirice construtiva e não pouco daquela alegria gozada de estar a dar uma volta às coisas.

Com a inesquecível Quina, sua mulher, a casa deles era uma porta aberta para os amigos que dela usavam e abusavam, porque nunca dali vinha o mais pequeno tique de impaciência. Mas foi o seu comprometimento político – apetecer-me-ia dizer, antes, ético – mesmo feito sem foguetes e sem provocações vistosas, que fez dele, a certa altura, no Moçambique colonial, o inimigo público nº 1 da PIDE e do “establishment” em vigor. Andar com o Adrião, ser amigo do Adrião era ficar pestiferado para toda a eternidade. Um cônsul francês, em Lourenço Marques, galardoado com a Legião de Honra e ex-gente grande do Le Monde, que se fizera meu amigo devido à minha assumida francofilia, entregara-me a tarefa de ali constituir uma Alliance Française, mas acabaria por se virar contra mim, por eu andar em más companhias. De poucas “más companhias” me orgulho tanto como da companhia do Adrião. E poucas coisas me têm magoado tanto como certos comportamentos de “real politik” da pátria da liberdade, igualdade e fraternidade.

Tinha com o Adrião, com o João Afonso dos Santos e com o Fernando Magalhães uma tertúlia mensal, aqui em Cascais, na primeira terça feira de cada mês. A tertúlia vai continuar e o Adrião vai continuar a estar presente. Estar presente, nos momentos difíceis, foi sempre o lema dele”.

Eugénio Lisboa

Na imagem: fotografia da "remota e mágica" Lourenço Marques.

Sobre a neutralidade educativa - 1

Os documentos curriculares de carácter nacional e os que são construídos em contexto escolar recomendam sistematica e vivamente a educadores e professores que adoptem uma atitude de neutralidade absoluta, abstendo-se, assim, de orientar os seus alunos em qualquer sentido.

Recomendação que é sobretudo vincada em áreas curriculares onde se faz referência directa a valores e que envolvem, a cada passo, opinião dos alunos. É o caso, no 1.º Ciclo do Ensino Básico, do Estudo do Meio, da Formação Cívica, da Educação Sexual...

Trata-se de uma recomendação que, em rigor e antes de mais, se revela impossível, porquanto traduz, por si só, uma opção educativa: a de se ser neutro, deixando ao outro ou aos outros uma infinita liberdade de afirmarem as suas opções.

Esclarecido este aspecto conceptual, devemos avançar mais um pouco para percebemos em relação a que aspectos devem os educadores e professores manter-se neutros e em relação aos quais não podem, de modo algum, adoptar essa atitude. O filósofo Fernando Savater ajuda-nos a perceber este último aspecto:

"É compreensível o temor face a um ensino sobrecarregado de conteúdos ideológicos, face a uma escola mais preocupada em suscitar fervores e adesões inquebrantáveis do que em favorecer o pensamento crítico autónomo. A formação em valores cívicos pode converter-se, muito facilmente, em doutrinamento para uma docilidade bem pensante, que levaria ao marasmo se chegasse a triunfar; a explicação necessária dos nossos principais valores políticos pode, também facilmente, resvalar para a propaganda, reforçada pelas manias castradoras do «politicamente correcto» (…).

Daqui que alguma «neutralidade» escolar seja justificadamente desejável, face às opções eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos políticos, face às diversas confissões religiosas, face a propostas estéticas ou existenciais que surjam na sociedade. Terá de ser uma neutralidade relativa, sem dúvida, porque não pode recusar a consideração crítica dos temas do momento (que os próprios alunos, frequentemente, irão solicitar e que o mestre competente terá de fazer, sem pretender situar-se fora, mas declarando a sua tomada de posição, enquanto fomenta a exposição razoável das outras) ainda que deva evitar converter a sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia sucursal do Parlamento. É importante que na escola se ensine a discutir mas é imprescindível deixar bem claro que a escola não é um foro de debates nem um púlpito.

Não obstante, essa mesma neutralidade crítica corresponde, por sua vez, a uma determinada forma política, perante a qual não é possível ser neutral no ensino democrático: refiro-me à própria democracia.

Seria suicida que a escola renunciasse a formar cidadãos democratas, inconformistas mas em conformidade com o que o modelo democrático estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal mas não desconhecendo as exigências harmonizadoras do público. Na desejável complexidade ideológica e étnica da sociedade moderna (…) fica a escola como o único âmbito geral que pode fomentar o apreço racional por aqueles valores que permitem a convivência conjunta aos que são satisfatoriamente diversos. E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo nosso mínimo denominador comum não deve, de modo algum, ser desperdiçada.

Não pode nem deve haver neutralidade, por exemplo, no que corresponde à recusa da tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de morte, da prevaricação dos juízes ou da impunidade da corrupção em cargos públicos, nem tão-pouco na defesa das protecções sociais da saúde ou da educação, da velhice ou da infância, nem no ideal de uma sociedade que corrija o mais possível o abismo entre opulência e miséria. Porquê? Porque não se trata de simples opções partidárias mas sim de benefícios da civilização humanizadora que já não é possível renunciar sem se incorrer em concessão à barbárie.

O próprio sistema democrático não é algo natural e espontâneo nos seres humanos, mas sim algo conquistado, através de muitos esforços revolucionários no campo intelectual e político: portanto, não pode ser dado como certo, mas deve ser ensinado com a maior persuasão didáctica compatível com o espírito de autonomia crítica. A socialização política democrática é um esforço complicado e resvaladiço, mas irrenunciável (…).

A recomendação racional de tais valores não deve ser uma mera litania edificante que, no melhor dos casos, acabará por aborrecê-los. Será preferível mostrar como conseguiram ser historicamente imprescindíveis, e o que ocorre onde, por exemplo, não há eleições livres, tolerância religiosa ou os juízes são venais. Seria absurdo mostrar às crianças as falhas do mundo em que vivemos (…) [sem lhes inspirar] uma prudente confiança nos mecanismos previstos para emendá-las."

Referência completa: Savater, F. (1997). O valor de Educar. Lisboa: Edições Presença (A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote em 2006).

Tudo se repetirá...

O modelo de avaliação do desempenho docente, vigente até à passada sexta-feita, foi concebido, planeado, implantado, alterado e voltado a alterar, e, agora, revogado, por razões políticas, económicas, retóricas… Os protagonistas principais – políticos, sindicatos, ideólogos… – invocaram, contudo, critérios de ordem ética, filosófica, pedagógica. Critérios que sempre vi ausentes desse modelo, ou nele deturpados em função das circunstâncias.

Novo governo virá e, com ele, um modelo de avaliação do desempenho docente surgirá (já se fala dele, por sinal). Arrisco dizer que tudo o que escrevi acima se repetirá...

E isto porque as funções docentes estão longe de estarem definidas, bem como as competências que se requerem para as concretizar. O mesmo se podendo dizer para os referências pedagógico-didácticas que permitem operacionalizá-las, trespassados que estão de teorias da mais variada proveniência e com a mais variada produção.

Na imagem: A estrutura da Avaliação do Desempenho Docente, proposta num determinado momento.

Volume dos "Classica Digitalia" distinguido em Espanha

O último livro publicado pel Classica Digitalia - de Juan Carlos Iglesias - Zoido, El legado de Tucídides en la cultura occidental. Discursos e historia – já aqui referido, acaba de ser seleccionado para figurar como “Libro de la semana” pelo Portal del Hispanismo del Ministerio de Cultura de España/ Instituto Cervantes.

Esta distinção vem reforçar a eficácia da política de abertura e de internacionalização promovida pelos Classica Digitalia, braço editorial do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, bem como confirmar, ao mais alto nível e de forma independente, a capacidade deste projecto editorial para atrair investigação de qualidade.

Numa altura em que se preparam para cumprir dois anos de existência, os Classica Digitalia estão a um passo de se tornar na maior editora especializada para a área dos Estudos Clássicos, em todo o espaço lusófono, e uma referência crescente no panorama científico internacional.

Delfim Leão

sexta-feira, 25 de março de 2011

A aula como um espaço de confiança

O apelo a aspectos da vida pessoal e familiar dos alunos está patente em inúmeros documentos curriculares, é veiculada em manuais escolares e operacionalizada nas salas de aula.

Isto acontece porque se trata de uma ideia que reúne um largo consenso. Na verdade, tenho verificado uma concordância alargada quanto à sua pertinência e eficácia entre aqueles quem tem responsabilidades educativas.

Confesso, que não posso deixar de ver esta concordância com grande estranheza, dado que ela vai, nada mais nada menos, ao arrepio de um direito fundamental, que supunha bem alicerçado: o direito à vida privada e íntima. A crianças, jovens e adultos, a todos, sem excepção, assiste este direito, que, além de dever ser respeitado na Escola, deve ser claramente veiculado por esta instituição.

Em conversa com a professora Luisa Moreira percebi que ela partilha este raciocínio comigo, tendo escrito no seu blog o que se segue:

"Hoje, mais do que nunca, a vida das nossas crianças e jovens é permeável a várias influências do meio familiar, escolar e social. E nem sempre os limites invisíveis que separam a vida privada, da vida pública, são respeitados.

Exigimos pais atentos, participativos e exigentes, tal como esperamos que a Escola também seja atenta, exigente e protectora em relação aos seus alunos. Mas neste rol de deveres, nem sempre a realidade corresponde aos seus desígnios, e encontramos uma Escola dividida entre papéis que se vê forçada a assumir.

Quantas vezes levamos os nossos alunos a expôr a sua privacidade, na crença de que determinada actividade “inofensiva”, como a de aprofundamento colectivo de um episódio familiar/pessoal, seja enriquecedora.

Ao levarmos uma criança a expôr, em sala de aula, determinadas memórias e características suas e dos que lhe são mais próximos, estamos a comparar, classificar e estereotipar pessoas e grupos.

No espaço-escola convivem alunos provenientes de famílias com diferentes histórias de vida, muitas com um passado sofrido ou difícil, que não permite conviverem bem com a partilha, a qual pode até provocar baixa auto-estima, afastamento dos pares, comportamentos de "vergonha" em relação à exposição em sala de aula.A criança transporta consigo as suas angústias e as dos outros, é uma espectadora/participante activa dos problemas que existem no seu agregado familiar, sobre os quais, muitas vezes, ainda não tem capacidade de compreensão/análise/resolução.

Vejamos o mundo dos adultos: numa reunião de trabalho não temos que expôr e submeter a julgamento a nossa vida privada ao grupo para nos integrarmos na equipa; o mesmo se passa (deveria passar) na escola. A escola não se deve demitir da sua função na construção de uma relação de proximidade com os alunos, mas poderá apoiá-los, protegendo-os do risco de exposição. Cabe ao professor cultivar a sensibilidade necessária para integrar a criança, tornando a sala de aula um espaço de confiança."

Ícaro


Destaque para a crónica de J.L. Pio Abreu no "Destak" de hoje:

Ícaro fora avisado pelo seu pai, Dédalo, de que não poderia voar perto do sol. As asas que o pai lhe construíra eram de penas coladas com cera, e o calor do sol poderia derretê-las. Embalado pelo prazer do voo e deslumbrado pela beleza do firmamento, Ícaro esqueceu os conselhos do pai e voou muito alto. A cera derreteu e ele despenhou-se no Mar Egeu.

Dédalo sabia o que dizia. Ele tinha construído o labirinto de Creta para aprisionar o Minotauro, esse monstro que nascera dos amores proibidos da rainha Pasifae. Inventor inveterado, ele tinha inventado outras coisas, como o fio que deu a Ariadne para libertar Teseu do labirinto. Dizem também que ajudou Parsifae a disfarçar-se de vaca para ser possuída pelo touro divino, pai do Minotauro.

Dédalo era um mortal comum, roído pela inveja e pela culpa. Não se preocupava com as consequências das suas invenções e não resistia a ajudar os amores caprichosos de uma mulher. Por isso, o rei Minos mandou encerrá-lo, com o seu filho, no labirinto que ele próprio construíra. As asas serviram aos dois para fugir da prisão.

Parece que Dédalo, ao contrário do filho, voou baixinho e conseguiu chegar à Sicília, onde alcançou os favores e a protecção do rei Cócalo. Dizem ainda que o rei, ao saber que Minos vinha à Sicília para perseguir Dédalo, preparou a morte do visitante numa banheira de água a ferver. Dizem, mas não é seguro. O que ficou para a posteridade, foi a trágica e grandiosa queda de Ícaro. E o sonho de voar perto do sol.

J.L. Pio Abreu

NOITE PECHA KUCHA DE COIMBRA

Da autoria da ESEC - TV, a reportagem, que passou na RTP2, da recente "noite criativa" realizada em Coimbra no cenário magnífico do Mosteiro de Santa Clara a Velha.

A Ciência em Portugal no segundo quartel do século XX

Post do historiador António Mota de Aguiar:

Na década de 20 alguns professores introduziram e defenderam a Teoria da Relatividade nas universidades onde leccionaram, ou deram cursos desta matéria nas Universidades Populares. Mas foi, sobretudo, o filósofo criacionista Leonardo Coimbra (1883-1936), o mais distinto animador cultural e principal pensador português desta década a defender essa teoria, tendo publicado na revista Águia vários artigos sobre ela e as suas implicações filosóficas. Ele pode ser considerado o pensador português dessa época mais relevante no campo da filosofia da ciência. Pensamos que a súmula do seu pensamento filosófico está patente nesta sua síntese:

“As teorias físicas são produtos da mais profunda elaboração mental”.

No começo da década de 30, são poucos os estudiosos em Portugal que se dedicam à investigação. Sobre este hiato da ciência em Portugal, o Capitão de Fragata Carvalho Brandão escrevia, em 1926, o seguinte:

“Um país que não sabe ou não quer concorrer para a Obra da Ciência pode considerar-se um parasita da civilização. Tal é até certo ponto a situação de Portugal” (“A Investigação científica e a Meteorologia em Portugal”, Seara Nova, nº 86, pp. 267-268, 6 de Maio de 1926.)

Apesar do desinteresse pela investigação científica dos universitários portugueses ser generalizado, demarcam-se, contudo, no começo desta década, três correntes do pensamento científico: um grupo de médicos distingue-se pelo seu labor em bioquímica; no quadro da concessão de bolsas pela Junta de Educação Nacional, começam a regressar ao País bolseiros provenientes do estrangeiro, com um capital de conhecimentos elevado e desejosos de os aplicarem em Portugal; e destacam-se ainda alguns jovens, estudantes das universidades portuguesas, que, juntamente com os grupos anteriores, irão assumir uma posição de relevo nas décadas de 30 e 40, no panorama da investigação científica nacional.

O despertar da ciência começa logo no virar da década, em 1930, numa polémica levada a cabo na Seara Nova sobre a validade da Teoria da Relatividade. Embora a Relatividade fosse já uma teoria confirmada e amplamente aceite pela comunidade científica internacional, em Portugal algumas vozes importantes opunham-se fortemente a esta teoria. Entre os mais notáveis anti-relativistas contava-se Gago Coutinho (1869-1959), geógrafo e distinto aviador português. É conhecida a polémica gerada na Seara Nova, entre este geógrafo e o astrónomo Manuel dos Reis (1900- 1992), em torno da validade da teoria (ver Seara Nova, n.ºs: 200, 203, 207, 209, 210, 219, 229, 1930).

A teoria de Einstein, ao destruir a crença no tempo absoluto - que não era mais que o tempo terrestre extrapolado para o espaço sideral – eliminou da concepção do homem o último mito de geocentrismo. Mas não era só a física relativista que amedrontava muitos espíritos da época, havia ainda a física quântica, que desvendava o infinitamente pequeno, e a lógica matemática, base de uma nova linguagem, que colocavam enormes problemas. Nem toda a gente, por preconceitos de vário tipo, estava aberta a interiorizar novas concepções do mundo.

Diga-se que Leonardo Coimbra foi um notável relativista o que não o impediu de, paralelamente, ser um pensador anti-positivista, dito "criacionista", de inspiração religiosa. E tinha razão, pensamos nós, porque ciência e fé são dois campos diferentes, onde se vai por vias diferentes: um pela investigação científica,e o outro pela crença interior do ser humano.

Como doutrina filosófica, abrangendo as novas teorias científicas neste quartel do século XX, apareceu o neo-positivismo ou nova filosofia da ciência, oriunda de um grupo de pensadores da Universidade de Viena, à qual por isso se deu também o nome de Círculo de Viena. O neo-positivismo era herdeiro do positivismo do século XIX.
A leitura do seguinte texto de Augusto Fitas, José M. Rodrigues, M. Fátima Nunes (A filosofia da ciência no Portugal do século XX, in Pedro Calafate, org., História do Pensamento Filosófico Português, vol. 5, séc. XX, p. 429, Editorial Caminho, 2000) permite-nos avaliar o confronto que se avizinhava entre os neo-positivistas do início do século XX, e os “filósofos” do Estado Novo, empedernidos nos três credos - Deus, Pátria e Família - e ajudados pelos chamados milagres de Fátima.

“O progresso científico no século XIX, o aparecimento de novas teorias científicas, afectou profundamente o pensamento filosófico que lhe era contemporâneo. Problemas como a origem do homem, o livre arbítrio, a imagem da natureza ou, até mesmo, a ideia de verdade fizeram com que muitos filósofos (…) se preocupassem bastante com o desenvolvimento da ciência e todas as suas implicações nas várias esferas do pensamento. Foi no século XIX que surgiu o positivismo, doutrina filosófica caracterizada por um optimismo geral nascido da certeza de que o progresso científico-tecnológico era imparável e que desembocaria inevitavelmente numa sociedade de bem-estar generalizado. (…) A filosofia das ciências é, no final do século XIX e princípios do século XX, a herdeira histórica do positivismo oitocentista, distinguindo-se desta corrente filosófica pela sua visão crítica da própria ciência e pelo esforço em determinar os limites exactos da validade desta.”

Mas só o estudo dos trabalhos científicos realizados pelos portugueses dessa época nos permite avaliar as suas propostas, o que tentaremos fazer numa outra oportunidade.

António Mota de Aguiar

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...