terça-feira, 5 de outubro de 2010
VOLTA CONTRA GALVANI
No dia em que atribui mais um prémio Nobel da Física respigo, do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva), uma história da física no tempo em que não havia prémios Nobel (na imagem Alessandro Volta com a sua pilha):
É da discussão que nasce a luz. A ciência para chegar, em cada momento, ao que se supõe ser a verdade serve-se da controvérsia. Uma das mais importantes controvérsias científicas ocorreu no final do século das luzes, mais precisamente na última década do século XVIII. Vale a pena revisitá-la para iluminar o modo como a ciência funciona.
A disputa deu-se à volta da origem da origem da electricidade e foram contendores dois grandes personagens da história da ciência, o médico italiano Luigi Galvani (1737-1798) e o físico (na altura dizia-se filósofo natural) Alessandro Volta (1745-1827). Volta venceu a disputa, embora Galvani, entretanto falecido, não tivesse assistido ao triunfo do seu adversário. Os dois trataram-se sempre de uma forma muito cavalheiresca, mostrando que se pode levar a cabo uma polémica sem desconsiderações nem insultos.
Galvani era natural de Bolonha, onde se situa a mais antiga universidade do mundo. Foi professor de Medicina nessa universidade. E foi natural ter-se interessado pela electricidade. Com efeito, no século XVIII os fenómenos eléctricos eram muito populares. Chamou-se século das luzes mas podia bem ter-se chamado século da electricidade... Nos salões aristocráticos faziam-se experiências divertidas com descargas eléctricas. Para explicar experiências que realizou nos anos 80 e nas quais observou espasmos de pernas de rãs, Galvani defendeu que a electricidade tinha uma origem animal. A primeira observação terá sido acidental: o movimento de uma perna de batráquio terá ocorrido quando o seu suporte de ferro contactou com a borda também metálica da bancada de laboratório. Mas logo se seguiram várias experiências do mesmo tipo mas mais ou menos controladas. Ainda hoje se chama “galvanismo animal” aos fenómenos estudados por Galvani. E é curioso como ainda hoje usamos a palavra “galvanização”, que significa dinamizar, animar (pode ler-se num jornal desportivo que a equipa “ficou galvanizada com o golo”). A disputa entre Galvani e Volta estalou em 1792 com o trabalho de Galvani “De viribus elettricitatisin motu musculari commentarius”, no qual ele apresentava as suas observações e interpretações. Para Volta, nascido também no Norte de Itália, mas na bela cidade de Como, e que se tornou em 1778 professor na Universidade de Pavia (a Pavia que, tal como Roma, não se fez num dia), não concordou com a interpretação de Galvani. Para ele a causa da electricidade era o contacto de dois metais diferentes. Os condutores não serviam apenas para conduzir mas também para criar a própria electricidade.
Numa série de experiências realizada em 1794 Galvani mostrou que os contactos metálicos podiam ser dispensados. O contacto entre dois materiais biológicos podia produzir o mesmo tipo de contracções musculares. Contudo, Volta não se deixou convencer e sustentou que era ainda um contacto entre nervo e músculo, permeado por um líquido (saliva, sangue, etc.), que causava o fenómeno eléctrico. Para ele era, sem qualquer dúvida, a diferença entre os condutores que contava, quer fossem metálicos quer fossem órgãos humedecidos.
A diferença de opiniões foi sumariada por Galvani nos seguintes termos:
“Ele [Volta] considera a electricidade comum a todos os corpos; eu penso que é característica dos animais. Ele é de opinião que o desequilíbrio vem da diferença entre os dispositivos usados, em particular os metais; pelo contrário, eu favoreço a máquina animal. Em resumo, ele atribui tudo aos metais e não ao animal; e eu atribuo tudo ao animal e nada aos metais...“
Em 1796 Volta conseguiu provar experimentalmente que era a diferença de metais o factor crucial: conseguiu produzir e medir um “fluido eléctrico” (dizemos hoje corrente eléctrica) a partir do contacto de dois metais sem necessitar de qualquer rã. Estava a criar o que ele chamou “tensão eléctrica”, que entretanto foi também chamada “diferença de potencial”. É inteiramente justo que a unidade usada hoje no Sistema Internacional de unidades para a tensão eléctrica ou diferença de potencial seja denominada volt. Os electricistas chamam, porém, voltagem à tensão eléctrica... Quer dizer, tal como o nome do seu rival, também o nome de Volt entrou na nossa vida corrente.
É curioso lembrar, nos dias de hoje em que os cruzamentos entre física e biologia são tantos e tão fecundos, que um conceito eléctrico tão importante tenha surgido a partir da fisiologia... O médico Galvani estava errado, mas foi um erro extremamente fértil! Sem esse erro, talvez nunca se tivesse feito luz sobre a electricidade.
A história podia terminar aqui, mas teve um epílogo mais formidável. Baseado na sua explicação para o movimento da rã, Alessandro Volta, no ano de 1799 (numa altura em que a Lombardia, a região onde se situa a cidade de Como, tinha sido reconquistada pelo império austríaco, depois de uma curta ocupação pelas tropas de Napoleão), lembrou-se de empilhar dois elementos metálicos diferentes – prata e zinco – separados por uma substância humedecida, que facilitava o contacto eléctrico. Estava criada a primeira pilha eléctrica. Repare-se no nome de pilha (“pila” em italiano), cuja explicação é óbvia, e que chegou até nós. De facto, o nome utilizado por Volta, na memória que submeteu em 1800 à Royal Society de Londres, não era “pilha”, mas sim “órgão eléctrico artificial” (um nome reminiscente do peixe eléctrico, que conseguia emitir descargas eléctricas por um órgão biológico). Quando hoje num supermercado compramos pilhas, nem de perto nem de longe nos lembramos que a primeira pilha foi construída em Como há mais de dois séculos a culminar uma história de pernas de rã...
O poder político reparou logo na utilidade da pilha eléctrica. Pois não era ela uma contínua fonte de electricidade (pelo menos enquanto a pilha durasse)? No mesmo ano de 1800 Volta apresentou ao imperador Napoleão Bonaparte, no Instituto de Paris, a sua invenção: há vários quadros que mostram o grande sábio italiano de pé mostrando o seu instrumento ao pequeno imperador, que está sentado. O soberano não se fez rogado e atribuiu a Volta o título de conde para além da medalha de ouro do Instituto. Ele próprio confessou a sua admiração pelos fenómenos eléctricos: “Acredito que o homem é produto dos fluidos da atmosfera [incluindo o fluido eléctrico], que o cérebro bombeia estes fluidos e é fonte de vida, e que depois da morte eles retornam ao éter”. Tem erros óbvios, mas não deixa de ser uma tentativa de explicação científica da vida...
Há uma “conecção portuguesa” na biografia de Alessandro Volta, que está tratada num excelente livro de história da ciência: “Volta: Science and Culture an the Age of Enlightnment”, Giuliano Pancaldo, Princeton University Press, 2003. De facto, Volta circulou pela Europa e correspondeu-se com os grandes sábios do seu tempo. Ora um dos seus principais correspondentes foi o português João Jacinto Magalhães, um cientista natural de Aveiro, que estudou no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra e que emigrou para Londres, onde se estabeleceu como conselheiro e comerciante de instrumentos científicos. Foi Magalhães quem guiou Volta numa visita a Londres e a vários outros sítios em Inglaterra, e foi Magalhães quem esteve com Volta na Holanda e na Bélgica. Volta já era famoso antes da polémica com Galvani, em particular pelo desenvolvimento de alguns instrumentos eléctricos. A certa altura, a partir da correspondência com o químico inglês Joseph Priestley, interessou-se por descargas eléctricas em gases. E essa correspondência foi mediada por Magalhães.
Volta sobreviveu 27 anos à sua “coroação” pelo imperador. Chegou a professor da Universidade de Pádua, situada na então República Veneziana, mas não chegou a participar nos espantosos desenvolvimentos que se seguiram. Com o fim do século das luzes tinha-se fechado a luz da sua obra.
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8 comentários:
´Patrício disse...
«Os electricistas chamam, porém, voltagem à tensão eléctrica.»
Os electricistas talvez, mas os engenheiros electrotécnicos não, a menos que tenham tirado o curso por fax numa universidade duvidosa.
Bom, os brasileiros também dizem "voltagem", numa tradução imediatista do termo inglês "voltage", mas enfim, a ortografia dos brasileiros não é exemplo para ninguém.
Gostaria de perceber por que é que a ortografia dos brasileiros não é exemplo para ninguém. E a dos mongois?
José Guatemalteco
"O médico Galvani estava errado, mas foi um erro extremamente fértil! Sem esse erro, talvez nunca se tivesse feito luz sobre a electricidade."
Caro Professor Fiolhais
Com o devido respeito, penso que com ou sem erro de Galvani, ter-se-ia feito luz sobre a electricidade de qualquer maneira. Inevitavelmente. O que em nada desvaloriza Galvani.
Caro José Guatemalteco, penso que o que "Patrício" quer dizer é que a ortografia, ou - talvez melhor, neste caso - o processo imediatista de "adaptação" de termos estrangeiros, dos brasileiros não é exemplo para ninguém... "aqui", em Portugal.
E, mongóis à parte, de facto não é.
Leio com facilidade um livro escrito por um brasileiro, ainda que, à medida que as duas normas linguísticas se vão afastando, por vezes tenha de recorrer com mais frequência ao dicionário.
Mas não consegui ler mais de duas páginas da tradução de um livro de Cabrera Infante por João Silvério Trevisan, estimável escritor brasileiro, que até contou com a colaboração do autor.
Perdi a paciência. Tive de encomendar o original.
Porque o calão que abunda na escrita de Cabrera Infante é completamente diferente em Portugal e no Brasil, o já referido afastamento das duas normas - nas palavras, na sintaxe, na prosódia - é cada vez maior. E isso perturba-me a leitura, irrita-me, porque me força a uma espécie de "retradução".
Os brasileiros não farão mal em adaptar, com alguma dose de preguiça intelectual, o que vem de outras línguas, sobretudo do inglês. Em Portugal é que essa adaptação não se faz: a paralisia não é melhor que o imediatismo; mas é mais chique usar o termo inglês (e muito mais cómodo, quando não se sabe português que baste...). E pronunciar, alegre e convictamente, "mídia" e "aitéme" e "aicone"... e outras "tolaices".
Os brasileiros institucionalizaram o (ou "a"!) "mídia". Um falante de Portugal que não pronuncie correctamente "média" (adaptação de "media", plural do latim "medium") conduz-me logo à, por vezes injusta, conclusão de que fala do que não sabe.
É por coisas destas que sou totalmente contra a decisão (política e só política) de impor, por via legislativa, aos portugueses e outros povos de língua portuguesa, o malfadado Acordo "Ortofágico": porque não vem favorecer coisíssima nenhuma e só vai baralhar os falantes de português, das duas margens do Atlântico até às do Índico.
Paulo Rato
O problema da terminologia não é só entre Portugal e o Brasil. Acontece que a tradução para Português de brakes ou freins ou Bremsen corresponde, em Portugal, a duas palavras diferentes: "freios" ou "travões", conforme se fale de um meio de transporte ou outro, ou mesmo, de meios de transporte semelhantes: metropolitano e combóio.
Apesar de não entender o que tem a ver a tradução entre duas línguas diferentes com as diferenças de terminologia entre normas diferentes da mesma língua, fui ao Dicionário do Houaiss e li:
"freio s.m. (...) 1 m.q. TRAVÃO" (seguem-se os outros significados da palavra, isolada ou integrada em expressões diversas, idiomáticas ou não).
De facto, nunca notei, na linguagem comum, qualquer distinção (com o significado que aponta).
O Dicionário não estabelece qualquer distinção, a propósito do termo, entre as normas portuguesa e brasileira.
Tratar-se-á de uma diferente apropriação "profissional" desses termos? Acontece.
Paulo Rato
A diferente apropriação profissional de termos subsiste,não é só na voltagem e amperagem, fala-se em "toneladas de pressão", com grande propriedade...
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