sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS

Começo por transcrever este comentário de Fartinho da Silva ao meu post “Diplomas do 12.º ano do Ensino Secundário e certificados das Novas Oportunidades” (27/10/2010):

“A conversa da democratização, do elitismo, do direito ao sucesso, do multiculturalismo, e blá, blá, já cheira a mofo! Com é que é possível em pleno século XXI continuar-se a justificar o injustificável com a conversa mole que justificou fim das escolas comerciais e industriais, o fim da autoridade das escolas, dos professores e dos pais, o fim da mobilidade social através do conhecimento (apesar de se afirmar o inverso), etc., etc.”

Justifica este comentário que eu transcreva um dos meus posts, publicado neste blogue (19/04/2009), intitulado “A falta do ensino técnico-profissional”, em que me debrucei sobre uma temática que em nada se assemelha às cópias grotescas dos dias ,de hoje em Portugal, em que se macaqueia um ensino sério e de valor. Escrevi então:

"A falta do ensino técnico-profissional

“A universidade revela todas as capacidades, até a incapacidade” (A.Tchekov).

Mais vezes do que aquelas que a minha paciência suporta, algumas vozes tentam convencer a opinião pública da bondade do boom operado no actual sistema educativo que se traduziu em aumentos exponenciais de cidadãos de posse de diplomas de ensino superior.

Tudo isto seria digno de encómio, ou mesmo de orgulho nacional, não se desse o caso de na percentagem de licenciados se incluírem todos os indivíduos com um pergaminho ou simples cartolina com o imprimatur do Estado que os iguala em direitos e os desiguala em deveres, numa espécie de preito a um demérito que a ética deve reprovar, a justiça obriga a rejeitar e um estado de direito não pode legitimar. Aqueles valores percentuais só são possíveis pelo desconhecimento de uma simples regra da adição no ensino primário que diz que não se podem somar pêras com maçãs.

Há quem diga que a actual situação, na qual a bolsa dos pais conta mais que a massa cinzenta dos filhos, se deve a uma louvável democratização do ensino, que faz com que indivíduos que ontem trabalhavam nas obras possam hoje pensar no acesso à universidade. Pena é, no entanto e por outro lado, que, devido ao desemprego de diplomados em engenharia, estes, por vezes sem o suficiente know-how, sofram agora o pesadelo de terem que ir trabalhar para as obras.

Ora este statu quo fica a dever-se a uma coisa bem simples, que repousa menos no direito constitucional à educação e mais no novo-riquismo da democracia portuguesa, que foi reconhecida pelo ex-ministro da Educação David Justino quando lamentava o facto de, no pós-25 de Abril, “se ter morto o ensino técnico e profissional, tendo-se perdido, com isso, quase 30 anos” (Diário de Coimbra, 10/12/2003).

Por acreditar num ensino técnico devidamente dignificado me fiz seu defensor por várias vezes nos media (v.g., “A extinção dos liceus e escolas técnicas”, Diário de Coimbra, 26/07/2001). Mas ouçamos, sobre esta temática, a voz de Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard e festejado autor da Teoria das Inteligências Múltiplas:

“Chegou a hora de alargar a nossa noção do espectro dos talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente. É um objectivo que perdemos completamente de vista. Em vez disso, submetemos toda a gente a uma educação em que, se somos bem sucedidos, a pessoa fica preparada para ser professor universitário. E, ao longo do percurso, avaliamos toda a gente de acordo com esse estreito padrão de sucesso. Devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a ajudá-las a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultivá-los. Há centenas de maneiras de ser bem sucedido e muitas, muitas capacidades que nos ajudarão a lá chegar”.

E, se é verdade que o direito à educação está estabelecido pela Constituição, igual direito se perfila no que respeita à cultura física e à prática desportiva. Mas daí a defender que o acesso à universidade deve ser para todos, independentemente das suas capacidades intelectuais ou de trabalho, apresenta o mesmo vício de forma que considerar que aos praticantes de futebol de menor aptidão físico-motora deve ser facultada a integração nas equipas profissionais dos maiores clubes da 1.ª Liga de futebol. Em mera hipótese, suponhamos que Eusébio, Figo e Cristiano Ronaldo tinham sido obrigados a desistir das suas competências, para utilizar a classificação de Gardner, “corporal-cinestésicas em favor de exigências “lógico-matemáticas ou linguísticas”. Não seriam eles hoje indivíduos a aumentar os números do insucesso escolar, mesmo que escamoteados em dados estatísticos para inglês ver?

Por este facto, considero que colocar indivíduos no ensino técnico-profissional depois de terem falhado anos consecutivos num ensino direccionado para o ingresso em escolas de ensino superior desacredita aquele ensino tornando-o numa escolha de último recurso. Urge mudar a mentalidade de uma sociedade arreigada a padrões obsoletos de sucesso, regressando a um ensino que, a partir do 6.º ano de escolaridade, seja capaz de indicar ao aluno o caminho a seguir, segundo as suas capacidades avaliadas em testes de aptidão vocacional. E, além disso, não misturando numa mesma escola secundária alunos de “caneta” com alunos que necessitam de oficinas devidamente apetrechadas e professores com a necessária formação técnica.

Julgo ter conhecimento de causa por ter iniciado a minha carreira docente na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, da então Lourenço Marques, e ter-me deparado, décadas volvidas, com um “site” que homenageia o respectivo corpo docente em agradecimento dos seus alunos pela “formação recebida, quer como estudantes, quer como pessoas". Reza essa homenagem:

“Naturalmente que, como em tudo, no respeitável corpo docente que ao longo dos anos leccionou na nossa escola, nem todos conseguiram ser populares, mas todos contribuíram, de uma forma ou de outra, para a nossa formação, quer como estudantes, quer como pessoas. Alguns deixaram a sua marca. (...) Ainda hoje, e eu faço notar isso aos meus filhos, eu sei o nome dos meus professores, e faço questão de realçar a sua competência. Pena que nem todos eles possam já tomar conhecimento de que também fazem parte da nossa saudade académica”.

É este ensino técnico, viveiro de profissionais de valor e de homens reconhecidos, que deve merecer o respeito dos cidadãos e o remorso de políticos que, em nome de uma sociedade sem classes, a transformaram numa sociedade desclassificada académica e profissionalmente. Só desta forma sairá reforçada uma educação que não tenha como “única direcção a conveniência, como escreveu Eça de Queiroz".

Na imagem: Fachada da antiga Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, de Lourenço Marques, actual Escola Industrial 1.º de Maio, de Maputo.

6 comentários:

joão boaventura disse...

Caro Rui Baptista

Já o disse aqui uma vez mas reavivo a memória relativamente à matéria que foca.

Normalmente as grandes revoluções pretendem mudar tudo para melhor, o que é um desejo normal, mas às vezes saímos frustrados, porque a memória do passado tem uma força que não permite alterá-la.

Passou-se com o 25 de Abril, como se passou nas ex-colónias após a independência. Melhorar o futuro era pôr a etiqueta do "homem novo", que se deseja.

Um dos pontos fulcrais para demonstrar a mudança efectiva, no caso português, foi o de acabar com as escolas técnicas, porque tratando-se de trabalhos manuais, logo aí vinha a depreciação de classe baixa, de classe pobre. Para ser mais claro o meu entendimento, os cirurgiões, porque eram trabalhadores manuais, eram depreciados.

Outro exemplo. Durante muito tempo o desporto era exclusivo das classes aristocratas, e aos trabalhadores manuais (mecânicos, coveiros, carpinteiros,pedreiros,...) não era permitida a actividade desportiva porque eram profissionais manuais.

Daqui veio a confusão durante muito tempo entre amadores e profissionais do desporto, separação erradamente consagrada de que os profissionais eram os que faziam desporto para ganhar dinheiro, quando eram afinal a parte baixa da sociedade.

Chegados a este ponto, o 25 de Abril mudou uma designação (liceu dos ricos), eliminou outra (escola técnica dos pobres) e aglomerou (igualou pobres e ricos) em escolas secundárias.

Mas o tempo que tudo regula permitiu verificar que, pelos efeitos perversos, o que estava mal da ditadura passada, afinal estava bem e não tinha nada que ver com a ditadura: a junção das classes ricas e pobres nas escolas secundárias, originou um mal estar, com agressões entre os alunos, a que nem os professores escaparam.

O outro efeito foi o de os alunos ricos passarem para o ensino privado (o velho liceu), e o ensino público ficou entregue aos alunos pobres (a velha escola técnica, mas agora desprovida das técnicas).

Com a falta de mão de obra técnica especializada, o Estado viu-se a braços com os erros do igualitarismo, porque na vida todos precisam de todos (o médico precisa do marceneiro, e o marceneiro precisa do médico) porque a igualdade está em todos precisarem de todos.

Conclusão: para refazer o tecido social e profissional o Estado quis corrigir tudo à pressa, planeou sobre o joelho e distorceu totalmente a arquitectura e engenharia do ensino, e entrou em colapso total com cursos profissionais mal pensados, e perdeu a cabeça com a total irracionalidade das Novas Oportunidades que foi a implosão total da Educação.

Um abraço.

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Baptista,

Concordo em absoluto com tudo o que escreveu e permita-me sublinhar esta sua passagem:

"E, além disso, não misturando numa mesma escola secundária alunos de “caneta” com alunos que necessitam de oficinas devidamente apetrechadas e professores com a necessária formação técnica."

Sublinho este ponto, porque os "peritos" que decidiram voltar a patrocinar cursos técnicos em Portugal, para esconderem o completo e absoluto fracasso do igualitarismo forçado, colocaram na mesma escola todos os cursos possíveis, afirmando a passo a citar: "as escolas públicas têm que ser todas iguais, não podem existir escolas de primeira e de segunda"! Claro que se estavam a referir às escolas dos outros, porque para os seus filhos e netos, as escolas são outras...

Rui P. Guimaraes disse...

Nem mais, Sr. Rui Baptista. Como mudar esta situacao? Os ministros passam e a politica educativa fica na mesma. Mudam-se os professores e a materia a ensinar e a mesma. Mudam-se os directores das escolas mas os resultados sao os mesmos. Quem afinal e que tem mao neste sistema? Fala-se em igualdade como se tivessemos todos que saber o mesmo e ter as mesmas habilidades. A verdadeira igualdade esta na igualdade de oportunidades para que se possa ter sucesso quer se seja economista, doutor, mecanico, bailarino ou artista. Nao terao sido os Beatles bem sucedidos? mas de resto ninguem lhes deu valor na escola, nem sequer nas aulas de musica. Paulo Coelho nao sera um escritor de sucesso? Nao precisou da universidade para chegar onde chegou. Nao sera tambem a excelencia no conhecimento tecnico uma forma de sucesso? Se fossesmos todos professores e doutores nada em Portugal seria construido, nenhuma empresa seria formada, nao teriamos atletas e so teriamos artistas na politica. As escolas parecem ter tudo para que nos tornemos mediocramente iguais. Para a igualdade de oportunidades de sucesso de acordo com as habilidades de cada um as nossas escolas contribuiem zero. Por onde comecamos para mudar isto?

Anónimo disse...

Nas escolas técnicas nem tudo era manual, por exemplo, nas comerciais, que também acabaram, poucas ou nenhuma disciplinas se poderiam classificar como manuais. O Francês era ensinado por um método completamente diferente do liceal, com dicionário Francês-Francês, o que não acontecia no liceu até ao 5.º ano. E conheço ex-alunos que se tornaram bons falantes de Francês com esse método.

Saki disse...

Em formato de gráfico, para descontrair ;)
http://ilovecharts.tumblr.com/post/1402072392/according-to-howard-gardner-a-child-has-not-just

Anónimo disse...

Caro Rui Baptista,

Completamente de acordo!!!
Só para acrescentar: o que seria necessário era valorizar a formação do aluno, de modo a completar o ensino obrigatório, tanto na área de "caneta" como na técnica/profissinal. É tempo de perceber que nem todos os alunos têm (mais) aptidão para o ensino intelectual (independentemente da área), mas sim para o trabalho manual/artístico.

João Moreira

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