domingo, 26 de setembro de 2010

A LUZ EM GOETHE E TURNER


Excerto do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva) (na figura "Luz e Cor" de Turner):

Consta que as últimas palavras do poeta alemão Johann Wolfgang Goethe foram “Mehr Licht!”, o que em português se traduz por “Mais Luz!”

Ninguém sabe se esta exclamação significava o desejo filosófico-científico do grande génio de mais claridade ou se, prosaicamente, ele apenas pretendia pedir à empregada doméstica para abrir as cortinas do quarto. O poeta morreu sem se poder explicar. Mas a frase, apesar da ambiguidade ou talvez por causa dela, ficou famosa. Ela é sintomática da “época das luzes”, o tempo em que se quis ver mais e melhor.

No ano da graça de 1755, ano em que a Terra tremeu em Lisboa (catástrofe que tanto impressionou Goethe, assim como Kant e Voltaire), nascia em Londres, mais precisamente no bairro do Covent Garden, um dos maiores procuradores de luz de todos os tempos, alguém que andou sempre atrás de mais e melhor luz. O pintor inglês J. M. Turner foi entre 1755 e 1851 um prodigioso criador de luz. Apaixonado pela luz do Sol (Turner quase cegou por ter olhado tão demoradamente para o Sol), consta que as suas últimas palavras foram “The Sun is king!”, o que, vertido em português, dá “O Sol reina!”.

A luz de Turner, a luz que em última análise provém da nossa estrela, está em exposição permanente na Tate Gallery, em Londres. Essa luz é um dos principais motivos pelo qual vale a pena ir e voltar a Londres. Na maior parte dos quadros de Turner, a luz ilumina o mar. O astro-rei aparece amarelo-alaranjado. O céu é azul de dia, o que os físicos explicam pela difusão da luz solar no ar. E o mar mostra o azul misturado com outras cores, o que os físicos também explicam.

Turner foi um estudioso da obra de Goethe “Farbentheorie” (“Teoria das Cores”), uma incursão do brilhante poeta de Frankfurt na ciência da cor. Foi uma incursão não muito feliz, porque a teoria das cores de Goethe está em grande parte errada, nomeadamente ao afirmar que todas as cores resultam da combinação de três cores fundamentais: o amarelo, o vermelho e o azul (Isaac Newton, bem anterior a Goethe, sabia mais sobre a cor!). Este exemplo mostra que os poetas não têm de ser bons cientistas, o que não traz nenhum prejuízo à apreciação da sua poesia... O livro de Goethe resultou, porém, de uma tentativa de compreender os fenómenos da luz e da cor atendendo a condições não só físicas mas também psicológicas e estéticas e tem bastante interesse para a história da ciência.

Turner foi um grande admirador de Goethe. Um dos últimos quadros de Turner, menos figurativo que os anteriores, intitula-se curiosamente “Luz e Cor (Teoria de Goethe) - A Manhã após o Dilúvio – Moisés a escrever o Livro do Genesis. Está na Tate Gallery e mostra uma grande bola amarelo avermelhado - talvez o Sol, porque nunca pode haver a certeza de nada na arte não figurativa.

Escreveu Goethe na sua “Teoria das Cores”, decerto depois de ter olhado muito para o Sol:

“O Sol, quando de vê através de uma certa neblina, apresenta um disco amarelado. O centro é muitas vezes amarelo vivo e as bordas quase se tornam vermelhas. Numa situação em que o ar está cheio de fumo... o Sol parece vermelho-rubi, tal como todas as nuvens que o rodeiam, nas últimas circusntâncias, que reflectem então esta cor. O Sol vermelho da manhã, ou ao corpúsculo, deve-se à mesma causa. O Sol anuncia-se por uma tonalidade vermelha quando brilha através de uma massa densa de nevoeiro. Quanto mais se ergue mais brilhante e amarelo se torna”.

Não foi decerto por acaso que o intenso óleo “Luz e Cor” foi pintado em 1843, na altura em que um amigo de Goethe lhe ofereceu a tradução em inglês do livro de Goethe. A “Luz e Cor” é o triunfo da luz e, portanto, o triunfo da cor. No quadro, a natureza da cor substitui a cor da Natureza, sendo o resultado quase hipnótico. Turner foi, de facto, um génio da luz e da cor e, se Goethe não teve grande relevância na história da ciência, teve-a decerto na história da arte!

10 comentários:

regina disse...

Obrigada Professor Carlos Fiolhais por mais este belíssimo texto na interface Ciência e Arte
Regina Gouveia

Anónimo disse...

Todavia os designios da ciência e da poesia confundem-se por vezes. Não no rigor, mas na descoberta pura.
Belo post.
Daniel de Sousa

Anónimo disse...

Quem como Goethe hoje em dia
e com mais razão de ser
"mais luz" não desejaria
em seu modo de viver?!

JCN

Anónimo disse...

Na minha escrita rimada
eu gosto sempre de pôr
de luz uma pincelada
por questões de pundonor.

JCN

Anónimo disse...

Não sou nenhum desses génios
com justiça laureados,
mas tenho os meus predicados
a despeito dos convénios!

JCN

Anónimo disse...

A poesia por norma
vai mais longe que a ciência,
porque no fundo transforma
as suas leis em vivência!

JCN

Anónimo disse...

Versão melhorada:

Quem como Goethe hoje em dia
e com mais razão de ser
"mais luz" não desejaria
possuir no seu viver!

JCN

ana disse...

Post muito interessante!
A ciência e a arte é um belo casamento e o seu texto reproduziu parte dessa beleza.

Luis Augusto Comassetto disse...

A Farbenlehre de Goethe ainda não foi levada a sério justamente por ter sido revelada por um poeta. Em sua obra científica ele nos legou a "chave" ou a "ponte" que faltava para unirmos justamente Ciência e Arte. Objetividade na observação de âmbitos não físicos também é possível. Essa barreira ainda não foi vencida, mas estamos no limite. Caros amigos, vamos "abrir os olhos".

Suzana Vasconcelos disse...

Maravilha! Para o quadro de Turner: https://www.youtube.com/watch?v=R4bERVn6USE

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...