
Muito tem sido dito e escrito sobre Bartolomeu de Gusmão e o seu balão. Mas sobre esse assunto há três questões que procuram resposta:
1- Que conhecimentos tinha o padre brasileiro sobre a ciência e a tecnologia da sua época que lhe permitissem avançar e sustentar a inovação que propôs e que produziu?
2- Qual foi a sua motivação para propor ao rei a
Passarola? E porque é que o monarca não hesitou em apoiar tão pronta e prodigamente um jovem ultramarino que para ele devia ser quase desconhecido?
3- Que diferenças havia entre o balão que foi demonstrado na prática e a extraordinária nave que havia sido prometida? De onde veio a fantasiosa gravura que o jornal austríaco publicou em primeira mão e que depois haveria de ser reproduzida em Portugal?
Embora seja difícil responder cabalmente, vejamos, por ordem, as explicações que me parecem mais plausíveis:
1- Gusmão não foi propriamente um cientista, mas sim um inventor, isto é, um autor de artefactos que visam intervir no mundo para obter maior conforto humano. De resto, a tecnologia não estava na época tão intimamente associada à ciência como está hoje. Apesar da qualidade do ensino nas escolas onde o jovem Bartolomeu estudou, em particular o Colégio Jesuíta em S. Salvador da Bahía (que fazia parte de uma vasta rede de escolas da Companhia de Jesus, da qual o Colégio de Jesus, em Coimbra, tinha sido um dos primeiros), não se pode dizer que ele, nos seus estudos de preparação para a função eclesiástica, tivesse ficado a par do que de mais recente se fazia na ciência no alvorecer do século das luzes. Tão pouco terá adquirido conhecimentos de índole científica na Universidade de Coimbra, uma vez que se inscreveu no curso de Cânones (isto é, Leis da Igreja Católica), estudos esses que só bem mais tarde viria a concluir. A ciência em Coimbra, dominada pelos jesuítas, não estava especialmente avançada. Mas, ainda no Brasil, antes de rumar a Coimbra, Bartolomeu tinha revelado o seu espírito inventivo ao propor uma bomba hidráulica para resolver uma questão prática no Seminário de Belém, na Cachoeira, Bahía, que frequentou.
Um
Manifesto atribuído ao próprio Gusmão e que, tal como a cópia da
Petição de privilégio real, se conserva na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, faz luz a respeito da interrogação colocada. Nele se defende a ideia de voar, numa linguagem em que a ciência é inseparável da filosofia (abstendo-se, porém, de considerações teológicas, que seriam naturais num clérigo). Lembre-se aliás que a física era, na época, chamada filosofia natural e o seu discurso estava eivado de retórica filosófica. Vejamos um excerto, que lembra a cadenciada linguagem barroca do Padre António Vieira:
“Três coisas pois são necessárias
á ave para voar, convém a saber: asas, vida e ar; asas para subir; vida para as mover; e ar para as sustentar. De sorte que faltando um destes três requisitos
, ficam inúteis os dois; porque asas sem vida não podem ter movimento; vida sem asas não pode ter elevação: ar sem estes indivíduos não pode ser sulcado. Porém, dando-se estas três circunstâncias
de asas, vida e ar, a qualquer artificio
conforme a necessária proporção, é infalível
o voo no lenho, como o estamos vendo na ave.
Entra agora o nosso invento com as mesmas três circunstâncias
, em que infalivelmente devemos dar lhe o voo por certo. O nosso invento tem asas, tem ar e tem vida. Tem asas porque lhas formamos à mesma imitação e proporção das da ave; tem ar porque este se acha em toda a parte, e tem vida, nas pessoas que o hão-de animar para o movimento. É logo infalível que não pode ser frustraneo
este artifício
, supostos nele os três requisitos
necessários para o voo: que se a esta fábrica se podem dar estas três circunstâncias
por factíveis
, de que não há dúvida, infalivelmente delas se lhe hão-de produzir as mesmas operações, que vemos na ave, como efeito produzido da causa. E não fazemos menção das aves, que costumam andar na terra, porque suposto tenham estas três
circunstâncias
, ou não voam, ou têm o voo violento, como a galinha, o peru, o pato, a perdiz, etc., o que lhe procede de terem as asas defeituosas, em quanto à proporção necessária ao peso do corpo.” Mas, depois do triunfo no século anterior da mecânica de Galileu e Newton, a física mais moderna, no século XVIII, dizia mais respeito à electricidade do que ao voo das aves... Nos salões reais e aristocráticos começavam-se a realizar divertidas experiências baseadas na electricidade estática que desafiavam as mentes mais curiosas. É elucidativo que o ano de 1709 tenha ficado marcado na história da ciência pela publicação do tratado da autoria do inglês Francis Hauksbee, um membro da Royal Society, intitulado Physico
-Mechanical
Experiments
on
Various
Subjects Several
Surprizing
Phenomena
Touching
Light
and
Electricity
, Producible
on
the
Attrition
of Bodies, contendo numerosas experiências de electricidade (a Biblioteca Joanina conserva uma tradução francesa de 1754). O Gabinete de Física Experimental da Universidade de Coimbra, fundado pelo Marquês de Pombal na mesma data da sua Reforma da Universidade, contém algumas máquinas electroestáticas do século XVIII.
Mas não consta que Gusmão se tenha interessado pela electricidade, mas mais pela física dos fluidos. É certo que os princípios da impulsão tinham sido estabelecidos por Arquimedes, muitos séculos antes de Gusmão, e tinham sido revisitados por Galileu, um século antes, quando este efectuou experiências sobre corpos flutuantes, mas a impulsão desses autores dizia respeito a objectos sobre líquidos e não a objectos em gases. O estudo dos gases ainda estava, em pormenor, por ser feito...
2- Assegurar a coesão e a unidade do império português que era proporcionada por um meio rápido de locomoção (a velocidade sugerida na sua
Petição ao rei D. João V ultrapassava certamente os 50 quilómetros por hora), talvez tenha sido subjacente à ideia do jovem padre. As duas viagens que ele já tinha então empreendido de barco do Brasil até Portugal tinham sido demoradas e cansativas. E a ideia utópica do Quinto Império, tão cara ao Padre António Vieira, e tão bem expressa na sua
História do Futuro, não lhe era estranha. Ao fim e ao cabo, esse famoso jesuíta, embora não tenha sido professor de Gusmão, passou poucos anos antes dele pelo mesmo colégio onde o inventor da Passarola andou e aí deixou com certeza marcas. Quanto à protecção especial de que Gusmão gozou em Portugal tal se deverá ao facto de terem causado espanto as suas capacidades (designadamente, de memória) logo na sua primeira vinda à metrópole, em 1707, ao 3.º Marquês de Fontes, D. Joaquim Francisco de Sá Almeida e Menezes, um dos nobres mais poderosos do reino e, por isso, próximo do rei. O Marquês não hesitou em nomeá-lo preceptor de Matemática do seu filho adolescente.
3- Como outrém já afirmou, julgo que se deve distinguir claramente entre o “instrumento de voar pelos ares” para a qual foi concedido o alvará e o “
corpo esférico com de pouco peso”, que, com os meios postos à sua disposição pela coroa, Gusmão foi capaz de construir e demonstrar. Há a
Passarola, impressa no jornal vienense aionda antes das experiências, que nunca voou, e o balãozinho, que começou por se incendiar e a seguir se elevou no Paço Real. A primeira é retratada de um modo caricatural na gravura austríaca, que terá sido congeminada pelo próprio Gusmão, com a ajuda do filho do Marquês, que o assessorava nos trabalhos oficinais de preparação dos ensaios aeronáuticos, com o intuito de iludir a curiosidade geral que se instalou e de desviar as atenções do público. Conta-se que, numa “manobra de diversão”, o desenho terá sido abandonado de propósito numa via pública para ser posto a circular como se fosse autêntico. Se foi isso que aconteceu na realidade, tal acabou por se revelar contraprudecente para o inventor, pois o desenho de um enorme pássaro, semelhante às criaturas imaginárias que apareciam representadas em mapas e atlas fantasiosos, mais não serviu do que para descredibilizar o seu autor. E há, por outro lado, o balão de ar quente que o núncio descreveu como “
um corpo esférico com pouco peso” numa carta ao Papa. Esse balão não seria muito diferente, embora em escala reduzida, dos actuais balões, servindo uma pequena barquinha de vaso da combustão para produzir o ar quente. Se a
Passarola era um
“instrumento” enorme que, tal como foi representado, nunca poderia voar, já o pequeno balão o conseguiu fazer com relativa facilidade. É impossível reproduzir o primeiro para uma experiência actual de ascensão, mas é relativamente fácil fazer o mesmo com o segundo.
Uma gravura (
figura em cima) cuja antiguidade é desconhecida anexa, embora solta, a um volume manuscrito setecentista, conservada na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, será porventura uma extrapolação mais plausível para o tamanho humano do modelo do balão esférico. Tem, de facto, parecenças com um “barco voador”, embora com a vela substituída por uma pirâmide insuflada. Mas nenhum engenho com tripulante, semelhante a esta gravura, deve ter voado. Trata-se, a avaliar pela escala da figura humana, de um aparelho algo menor do que a
Passarola impressa no diário vienense. Mas será pouco mais exequível do que esta.