segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

"O valor radical da liberdade"

"O que se pode dizer e mais elogios a respeito da Ilíada é que,
sabendo-se o desfecho do combate, participamos no entanto da angústia dos Aqueus,
em perigo nos seus acampamentos devido à pressão dos Troianos.
(A mesma observação para a Odisseia; sabe-se que Ulisses matará os Pretendentes.)
Quanta emoção deviam sentir os que ouviram pela primeira vez o poema!"
Albert Camus, Primeiros Cadernos, Livros do Brasil, 201.
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Faz hoje meia década que morreu Albert Camus, o romancista, o filósofo, o ensaísta, o pacifista que, por causa dessa atitude, rompeu com o grande Sartre, a criança dum bairro pobre de Argel a quem o professor do ensino primário e a avó mudaram o destino ao encaminhá-lo para os estudos secundários, o escritor precoce que publicou o primeiro livro aos 24 anos e que aos 44 recebeu o prémio Nobel da Literatura.

O seu inesperado desaparecimento, aos 46 anos, só poderia, portanto, levantar a suspeita de que a obra que tinha deixado prenunciava uma outra, uma obra (ainda) maior.

Em França decorrem, ao longo de 2010, inúmeras homenagens a Camus, algumas delas são organizadas pela esquerda e pelo centro-direita, ambas as tendências reivindicando a pessoa-autor para as suas linhas da frente e, em simultâneo, reclamando a legitimidade de o fazer. Misturam-se nacionalismos e multiculturalismos...

Estranho cenário para a glorificação dum homem cujo empenhamento político foi sempre direccionado para “um valor muito próprio que acentua o valor radical da liberdade" (José Manuel Mendes).

Valor este que, tal como outros, lhe adveio da curiosidade e do estudo atento dos Clássicos, desde os antigos até aos seus contemporâneos. Na verdade, Albert Camus, sendo argelino por nascimento e francês por vivência, não se sentia, propriamente, nem argelino nem francês: era o mundo e o sentido da Humanidade com as suas particularidades que lhe interessava. Escreveu ele na sua biografia:

“Sou suspeito para os nacionalistas dos dois lados. Para uns, o meu erro é não ser suficientemente patriota. Para os outros, sou patriota demais. Não amo a Argélia à maneira de um militar ou de um colono. Mas será que posso amá-la de outro modo que não como francês? O que muitos árabes não compreendem é que a amo como um francês que ama os árabes e deseja que, na Argélia, eles estejam em sua terra sem que por isso ele mesmo se sinta estrangeiro.”

Este sentimento de pertença e de não pertença, terá sido responsável pela ausência de fronteiras que a sua obra denota, o que faz dela "um dos momentos mais cintilantes de toda a literatura universal no século XX” (José Manuel Mendes).

Consultas: ver aqui e aqui.

9 comentários:

Anónimo disse...

Duvido que Camus utilizasse ou se idenficasse com uma expressão como o "valor radical da liberdade". É demasiado teórica e demasiado pesada para quem escreveu "O estrangeiro" e essas luminosas frases citadas no post. É uma frase cheia de si, uma frase à Sartre.
O se percebe nos livros de Camus é que a liberdade é a migalha que nos resta depois de nos tirarem tudo.

Maria Dias

Anónimo disse...

A liberdade, a meu ver, não é a migalha que nos resta, mas o primeiro bem que nos tiram. Só depois... nos tiram o resto, que aliás já carece de importância! JCN

Anónimo disse...

ODE À LIBERDADE

Há que perder o medo de falar
e de pensar também: são atributos
que Deus nos deu sem termos de pagar
do nosso bolso... impostos ou tributos.

Ninguém é mais que Deus, há que dizê-lo,
para arbitrariamente ou em função
de alardeado ou farisaico zelo
nos açaimar a boca e a razão.

O mais que pode a alguém acontecer
não suportando o abuso de poder
é posto à margem ser por dissidente.

Mas antes isso do que prescindir
da faculdade de fazer-se ouvir
dada por Deus ao homem de presente!

JOÃO DE CASTRO NUNES

hugoP disse...

A liberdade cresce e aventura-se mesmo nascendo em berços prisionais, e para conseguir se mover (pois tem uma corrente no pé), somente sendo rebelde e talvez radical.

José Batista da Ascenção disse...

Confissão: Perguntam-me familiares se não estarei a ficar viciado na internet. Respondo-lhes que sim, obrigando-os a ouvirem-me ler-lhes (todos) os sonetos que já li de João de Castro Nunes. E não é que gostaram!
Ainda lhes prego o vício...
Bem haja, senhor "culpado".

Anónimo disse...

Será acaso livre quem não possui a faculdade de, com ou sem grilhões, agir ou expressar-se, pensando apenas para dentro de si mesmo? Que espécie de liberdade tem um escravo? Sem dignidade haverá porventura liberdade? Em prisão perpétua, metaforicamente falando, não esperou Torga a vida inteira pelo veleiro do seu sonho a que chamou Ariane e em que nunca teve a sensação de embarcar? Lá diz o povo ou eu... por ele:

Liberdade, liberdade,
quem a tem chama-lhe sua:
eu não quero a liberdade
de não pôr um pé na rua!

Em resumo e no fundamental, do meu ponto de vista e das entranhas da minha sensibilidade: não goza d liberdade alguma quem vive à margem dos seus direitos, ou seja, marginalizado. Nada há mais terrível!

JCN

Anónimo disse...

Importa não confundir liberdade com rebeldia, radical ou não! JCN

Anónimo disse...

Há um lapso manifesto no texto. Camus não morreu há «meia década» (ou seja, 5 anos) mas sim há meio século (em 1960)

Anónimo disse...

Pura distracção, diria eu. Acontece. JCN

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