terça-feira, 16 de setembro de 2008

"UMA OFENSA À NOBREZA DA PEDAGOGIA"


Numa entrevista à revista "Notícias" do "Diário de Notícias" e "Jornal de Notícias" de domingo passado a professora de Português Maria do Carmo Vieira denuncia alguns dos problemas maiores da nossa escola. Eis aqui um excerto dessa entrevista:

P. Quando diz que o verbo Ensinar foi banido, está a referir-se ao facto de ele ter sido banido do discurso oficial?


R. Sim, e essencialmente dos programas. Segundo esse discurso, um professor não ensina, deve apenas «respeitar o discurso que os alunos trazem de casa», estar atento aos seus interesses, deixando-se estimular por eles. Esta nova estratégia pedagógica foi apresentada, como incontornável, numa acção promovida pelo Ministério da Educação (ME), em que estive presente, enquanto formadora, e que incidia sobre os objectivos da nova disciplina de Português, mascarada sob o nome de «Língua Portuguesa», para de forma aparentemente natural dissociar Literatura e Língua, como se isso fosse possível.

P. Como interpreta isso?

R. Pura e simplesmente como estratégia para obter um êxito rápido e cumprir metas estatísticas. Com efeito, as novas teorias pedagógicas, uma ofensa à nobreza da pedagogia, viciam os alunos no facilitismo, cultivando a preguiça e a ignorância e afastando-os do convívio, consequente, com os textos literários, (no caso do Português), cuja leitura agora se denomina «recreativa»; por outro, querem fazer ver aos professores que a situação se inverteu e agora são os alunos que «ensinam» e definem as regras do jogo. Posso dar um exemplo, que evidencia quanto esta ideia já criou raízes, que continuam a espalhar-se. Escrevi, recentemente, um artigo, no qual dava conta de uma experiência com alunos trabalhadores-estudantes, do ensino nocturno, a propósito do estudo da poesia de Fernando Pessoa e heteronímia, em que associei, como me é habitual, a literatura, a pintura e a música. E a propósito da música, precisamente para mostrar que cada geração inova em relação à anterior, mas dela também herda ensinamentos, ainda que possam gerar conflitos, levei, para a sala de aula, Prokofiev (Concerto para violino nº 2) e Shostakovich (Jazz suite nº 2). Num comentário, que se pretendia elogioso, a esse artigo, salientou-se a minha preparação para responder aos estímulos dos alunos, como se tivessem sido eles a sugerir a inclusão da música clássica, no estudo da poesia de Fernando Pessoa. É evidente que os alunos, com as suas intervenções (uma regra que fica instituída no primeiro dia de aulas) me fazem reflectir sobre o modo de ensinar e sobre as melhores estratégias a utilizar, mas não invertamos os papéis porque é um absurdo.

P. Ainda relativamente ao discurso oficial sobre a escola, parece-me que embora aparentando estar centrado nas necessidades do momento, necessidades dos alunos entenda-se, é um discurso marcado pela urgência - urgência política. Mas será que este discurso, sustentado na necessidade de novos programas e abordagens ao ensino, nomeadamente do Português, corresponde às necessidades reais dos alunos?

R. Esta euforia do novo pelo novo, que actualmente impera e se manifesta em todos os campos, lembremo-nos do inovador «Allgarve», é um discurso ditado por quem está mais interessado em que se cumpram ordens, neste caso de Bruxelas, e em formatar o ser humano, neste caso, alunos e professores. Só a resignação explica que se obedeça ao teor dos novos programas, que privilegiam sobremaneira, e refiro sempre o caso da disciplina de Português, os autores contemporâneos, no quase completo apagamento do «que é velho», ou seja, os autores clássicos, a fonte. Este discurso oficial decide, mostrando a sua arrogância (e também mediocridade) intelectual, que os interesses dos alunos se centram no presente, solto de influências, e no excesso de imagens que humanamente é impossível reter e que se dispersam sem qualquer significado. No fundo, talvez o objectivo primeiro (e estou cada vez mais convicta disso) seja treinar os alunos a não pensar. Não é por acaso que se descura a língua e a sua gramática, num mau-trato oficializado, manifesto na indiferença perante o erro ortográfico, a pobreza de vocabulário, a incorrecção verbal, a falta de rigor. É triste, mas creio que, neste momento, a Escola perdeu a sua função milenar de preparar para a vida e por isso os alunos quando dela saírem encontrarão um mundo totalmente diferente daquele que lhes foi mostrado, através de um ensino que centrado apenas nos seus interesses imediatos, fomentando forçosamente o narcisismo e o egoísmo. Sabemos, por experiência, que os interesses dos alunos estão em geral muito afastados da cultura.

P. E que compete precisamente ao professor mostrar novos caminhos, outros mundos para além do deles. Ou não será o maior interesse dos alunos justamente aprender? e aprender coisas novas, que não se conhecem se não forem mostradas?

R. É óbvio, mas não para o ME. Aliás, chamaram-me elitista quando dei a conhecer, de forma crítica, a presença do «Big Brother», de «Testonovelas» e outras do mesmo género, em manuais, e quando defendi a importância da arte, nela incluindo naturalmente a literatura, na sala de aula. Mas elitistas são as pessoas que estão por detrás destes programas e das suas metodologias. Com efeito, se não for a Escola a preencher o vazio cultural, que resulta de uma situação familiar fragilizada, quem o fará? Pelo contrário, os que têm a possibilidade de conviver, em suas casas, com um discurso de cultura, não terão qualquer problema se a Escola falhar nessa sua missão. A esta desigualdade de oportunidades, que a Escola promove, chama-se cavar o fosso entre ricos e pobres, para mais tarde, como diria Vieira, no seu «Sermão de Santo António aos peixes», os maiores comerem os mais pequenos. Expressiva é também a frase de uma das canções de Schumann: “Aqueles que são ignorantes são fáceis de conduzir». Na verdade, quem não pensa, acaba por baixar os olhos, caminhar em grupo, seguindo os passos de quem o conduz, esquecendo-se de si próprio. E é um crime, fazer com que os alunos se esqueçam de si próprios, se anulem enquanto seres humanos, nunca reflictam sobre o que quer que seja. E depois admiramo-nos com o facto de os jovens não irem votar...

6 comentários:

Jorge Oliveira disse...

Declarações lúcidas e sobretudo corajosas, atendendo a que vivemos um período de social-salazarismo, propício à retaliação mesquinha.

Paulo Abreu disse...

Que excerto fantástico! Adorei principalmente a argumentação final, onde explica como o elitismo é nivelar por baixo: "...os que têm a possibilidade de conviver, em suas casas, com um discurso de cultura, não terão qualquer problema se a Escola falhar nessa sua missão. A esta desigualdade de oportunidades, que a Escola promove, chama-se cavar o fosso entre ricos e pobres,..."

Fernando Martins disse...

É uma excelente entrevista, que os nossos governantes do Ministério da Educação deveriam ler até perceber a carrada de asneiras que têm feito.

E só digo isto porque sou professor...

Rui Baptista disse...

Testemunho, brilhante, vivido e sofrido por uma grande Senhora, notável pedagoga e estimada amiga que honra a sua/nossa profissão pelo combate estrénuo em salvar dos escombros o que resta de um edifício educativo em risco de ruir por completo. Em resumo, uma referência incontornável no panorama professoral português e uma voz incómoda a merecer a atenção e a reflexão de todos nós.

Sabendo eu, como sei, das perseguições sem conta atentatórias, inclusivamente, da sua própria saúde física - que a psíquica é de antes quebrar que torcer -, de que tem sido vítima pelas suas tomadas de posição corajosas contra os responsáveis que inabilmente mexem os cordelinhos da 5 de Outubro, todos nós lhe devemos prestar a nossa homenagem de muita gratidão e respeito, dizendo a uma só voz: obrigado Maria do Carmo Vieira!

Em nome da justiça, pela transcrição parcelar desta entrevista, os responsáveis deste blogue de Ciência e Cultura merecem, outrossim, o nosso reconhecimento pelo serviço inestimável que acabam de prestar ao sistema educativo nacional.

deep disse...

Só posso estar de acordo com as palavras que acabo de ler. Pena é que os nossos governantes, (des)norteados por metas economicistas se mostrem cegos e surdos ao que está à vista de todos!

Unknown disse...

Esta opiniões evidenciam muita coragem e lucidez. Parabéns!

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