segunda-feira, 6 de agosto de 2007

AS DÚVIDAS DA CENTOPEIA


O texto de Mónica Vieira fez-me lembrar uma admirável conferência proferida pelo físico, divulgador de ciência, professor entusiasmado, músico, poeta e desenhador que foi Richard Feynman, na 14ª Convenção Anual da National Science Teacher Association. Apesar de ter tido lugar em 1966, parece-me que ela se mantém perfeitamente actual. Aqui deixo uma boa parte dela a quem se interessar pela ciência e pelo seu ensino.

“A minha experiência limita-se ao ensino de física a alunos universitários e, como resultado dela, sei que não sei como ensinar. Tenho a certeza de que, como verdadeiros mestres, trabalhando nas escolas primárias e secundárias, orientadores de professores, conselheiros pedagógicos e peritos na elaboração de currículos, também têm a certeza de que igualmente não o sabem fazer; de outro modo não se incomodariam a vir ao congresso (...).
Gostaria de precisar que «Que é a ciência?» não equivale de modo algum a «Como ensinar ciência?» (…) por duas razões. Em primeiro lugar pela maneira como planeei esta palestra, pode parecer que estou a tentar dizer-lhes como ensinar ciência, o que não é absolutamente o caso, porque nada sei a respeito de crianças. Sou pai de uma; por isso, sei que nada sei. Por outro lado, penso que a maior parte de nós (porque há tantos colóquios, tantos artigos e tantos especialistas neste campo) terão uma espécie de sentimento de falta de autoconfiança. De certo modo há um contínuo sermão de censura, acusando repetidamente que as coisas não vão muito bem e que se devia aprender a ensinar melhor. Não vou repreendê-los pelo mau trabalho que estão a fazer e indicar-lhes como pode ser claramente melhorado (...)

«Que é a ciência?» É claro que todos devem sabê-lo, já que a ensinam. É senso comum. Que posso dizer? (....) Este tema é um problema que coloquei a mim mesmo. Passado algum tempo, lembrei-me de um pequeno poema:

Uma centopeia vivia feliz
Até que um dia um sapo lhe disse, a brincar:
Com tantos pés, nunca te enganas, meu petiz?
Cheia de dúvida de tanto pensar
Caiu distraída numa vala
Sem saber como marchar.

Toda a minha vida tenho trabalhado com a ciência, sabendo perfeitamente o que é, mas dizer-lhes «como pôr um pé em frente do outro» sou incapaz de o fazer. Além disso, estou preocupado, estou deveras preocupado, com a analogia do poema, pois tenho receio de que ao regressar a casa talvez já não consiga fazer qualquer investigação (…). Dadas as circunstâncias, face à dificuldade do tema, e à minha antipatia pelas exposições filosóficas, vou apresentar o assunto de um modo muito pouco vulgar. Vou dizer-lhes como aprendi o que é a ciência. Pode parecer um pouco infantil. Aprendi este conceito quando era criança (…)

Na verdade, devo isso ao meu pai. Conta-se que, quando a minha mãe estava grávida — não tive conhecimento directo da conversa, bem entendido —, meu pai disse um dia: «Se for rapaz, será cientista». Como é que ele conseguiu isto? Nunca me disse que devia ser cientista. De facto, meu pai não era cientista, era um homem de negócios, chefe de vendas de um armazém de uniformes militares. No entanto, lia e tinha uma verdadeira paixão pela ciência. Quando era miúdo — a primeira história que conheço —, quando ainda comia numa cadeira de bebé, meu pai, depois do jantar, costumava brincar comigo. Tinha trazido vários azulejos rectangulares de casa de banho de um lugar qualquer da cidade de Long Island. Colocávamo-los de pé, um após outro, todos empilhados, e podia empurrar o primeiro e ver cair tudo. Até aqui tudo bem! A seguir, o jogo tornou-se mais complicado. Os azulejos eram de cores diferentes. Tinha de dispô-los numa certa ordem, com a seguinte sequência: um branco, dois azuis, mais um branco e depois dois azuis (…); se, por acaso, quisesse colocar um terceiro azulejo azul, meu pai obrigava-me a colocar um branco. Já estão a reconhecer a velha astúcia: primeiro, encantar a criança com a brincadeira, depois, introduzir lentamente material de valor educativo. Ora, a minha mãe, que era muito mais emotiva do que o meu pai, começou a compreender a perfídia dos seus esforços e disse-lhe: «Por favor, Mel, deixa a pobre criança pôr um azul, se quiser!» Meu pai respondeu-lhe: «Não, quero que preste atenção aos padrões. É (…) matemática ao nível mais elementar».

Meu pai mostrou-me de forma nítida a diferença que há entre o que sabemos e o que lhe chamamos (…). Para comunicarmos uns com os outros, sem dúvida, temos necessidade de palavras. Mas é uma boa ideia tentarmos ver a diferença entre as palavras e as coisas a que se referem (…) sabermos quando estamos a ensinar as ferramentas da ciência (por exemplo, as definições) e quando estamos a ensinar a ciência propriamente dita. Para tornar o meu ponto de vista ainda mais claro escolhi um certo livro para criticar desfavoravelmente, o que é de certo modo injusto, porque tenho a certeza de que, sem necessidade de uma análise profunda, posso mencionar coisas igualmente desfavoráveis noutros livros. Há um livro de ciência que, desde a primeira lição, começava a ensinar ciência de um modo infeliz (…). Vê-se como primeira imagem a figura de um cão de corda, em seguida, uma mão a dirigir-se para a chave de dar corda e, por fim, o cão a mover-se. Por baixo desta última figura encontra-se a seguinte legenda: «Que faz mover o cão?» Um pouco mais adiante encontra-se a figura de um cão verdadeiro e sob ela a mesma pergunta (…). Finalmente, há uma figura de uma motorizada e sempre a mesma legenda (…). A princípio, pensava que se tratava de uma introdução aos vários domínios da ciência: física, biologia, química. Mas nada disso. A resposta encontrava-se na edição especial para o professor que acompanha o livro: «a energia faz mover as diversas coisas».
Ora a energia é um conceito muito subtil, muito difícil de assimilar. O que quero dizer com isto é que não é fácil compreender o conceito de energia e utilizá-lo (...). Seria igualmente aceitável dizer que o que faz mover o cão, a motorizada, etc., é «Deus» ou a «força do espírito» ou a «mobilidade» (...) se perguntarem a uma criança o que faz mover o cão de corda, devem imaginar qual seria a resposta normal: que, ao dar-se corda ao brinquedo, se enrola uma mola e esta, ao desenrolar-se, faz mover a engrenagem interior. Que boa ideia começar assim um curso de ciência: desmonte-se o brinquedo e observe-se como funciona. Veja-se a astúcia do mecanismo e as rodas dentadas. Assim, aprende-se alguma coisa sobre o brinquedo, a maneira como é construído, o talento das pessoas que inventaram as engrenagens dentadas e as outras coisas. Isso é que é correcto. A pergunta do livro é boa. A resposta dada é que é despropositada (…).
Meu pai também abordou comigo a questão da energia e apenas usou esse termo depois de eu ter adquirido uma pequena ideia do que era. Sei o que ele (…) teria dito: será que o cão se move porque há sol? Então eu teria respondido: «Não. O sol não tem nada a ver com isso. O cão moveu-se porque lhe dei corda». «E como é que tens força para dar corda?». «Porque como» — responder-lhe-ia. «Que é que comes?». «Como... legumes!». «E como é que eles crescem?» — continuaria o questionário. «Crescem porque há sol!»
E acontece o mesmo com o cão. E quanto à gasolina? Não é uma energia acumulada do sol captada pelas plantas e armazenada no solo? Poder-se-iam multiplicar exemplos cuja solução conduziria ao sol. E eis que a ideia a que nos pretende conduzir o autor do nosso livro de texto está aqui expressa de um modo muito mais excitante: todas as coisas que vemos e se movem fazem-no porque há sol! Isto explica realmente a relação de uma fonte de energia com outra e pode ser activamente refutado pela criança. Ela poderia dizer: «Penso que não é por causa do sol» e poderia então iniciar-se uma discussão (…). Mais tarde poder-se-ia desafiar o raciocínio da criança com o fenómeno das marés e com o fenómeno de rotação da Terra e chegar-se-ia a outro mistério. Isto é apenas um exemplo da diferença entre as definições (que são necessárias) e a ciência (…).
O que é importante disto tudo é o resultado das observações (…). Suponham que, em vez disto, nos pediam para fazermos umas observações para elaborarmos uma lista, para registarmos algo, para fazermos isto ou aquilo, para olharmos ali e acolá, e que, quando tivéssemos escrito tudo numa ficha de notas, esta era arquivada conjuntamente com outras 130. A única lição que aprenderíamos seria a seguinte: que a observação é algo sem interesse e que a partir dela não se tiram grandes conclusões. Penso que é muito importante — pelo menos era-o para mim — que ao ensinar as pessoas a fazer observações se lhes deve mostrar que algo de maravilhoso pode resultar. Foi nessa altura que aprendi qual é a base da ciência: uma grande paciência. Se se souber olhar, observar e prestar atenção, é-se amplamente recompensado (provavelmente nem sempre!).
Mais tarde, como adulto (…) trabalhava meticulosamente em vários problemas, hora após hora, durante anos (...) sem chegar a algo que não fosse deitar um monte de rascunhos para o cesto dos papéis. Contudo, de vez em quando, surgia um instante dourado: antever uma nova compreensão, momento que aprendera a esperar, ainda quando miúdo (…).

Eis aqui o que é a ciência: a descoberta de que vale mais a pena verificar tudo através da experiência directa, em vez de confiar na experiência transmitida do passado. É assim que vejo as coisas, e esta é a melhor definição de ciência que posso dar. A ciência apresenta também a riqueza de uma visão do mundo criada por ela: a beleza e as maravilhas do mundo tal como as descobrimos através dos resultados de experiências novas.
O mundo parece tão diferente depois de se aprender ciência! Quando se diz, por exemplo: as árvores são essencialmente feitas de ar; quando se queimam, as árvores volatilizam-se; o calor de combustão é libertado é o calor flamejante do Sol anteriormente captado a fim de transformar o ar em árvore, e as cinzas representam a parte restante, aquela que não proveio do ar, mas da própria terra... Não é isto belo? A ciência está repleta destas maravilhas, que são muito inspiradoras de entusiasmo e servem igualmente para estimular os outros.
Outra das qualidades da ciência é que incute o valor do pensamento racional, bem como a importância da liberdade de pensamento, os resultados positivos da dúvida face a todos os ensinamentos apreendidos. Aqui tem de se distinguir — principalmente no ensino — a ciência propriamente dita, dos processos utilizados para o seu desenvolvimento. É fácil dizer: «Escreva isto aqui, realize esta ou aquela experiência, observe isto e mais aquilo». Basta apenas copiar exactamente, palavra a palavra, a fórmula já estabelecida (…) Deste modo, submetemo-nos (…) à tirania (…) de conselheiros pseudocientíficos.
Quando alguém diz: «A ciência ensina isto e aquilo…», está a empregar a palavra ciência de um modo incorrecto. A ciência não ensina nada: é a experiência que nos ensina qualquer coisa. Se, porém, lhes dissesse: «A ciência demonstrou isto e aquilo…», deviam responder: «Como é que os cientistas descobriram isso? Onde?» (…). Não se deve dizer que a «ciência mostrou que…», mas sim que «tal experiência (…) verificou que…». É claro que têm o direito (…), após terem ouvido o relato das experiências (mas, atenção, sejam pacientes e ouçam todos os factos), de decidirem se a conclusão a que se chegou é ou não sensata.”

In: Feynman, R. (1991). Uma tarde com o Sr. Feynman. Lisboa: Gradiva, 15-37.

Imagem retirada de: http://www.spaceandmotion.com/Images/feynman-richard-science-1.jpg

8 comentários:

JSA disse...

Já agora fica a correcção de uma gralha/typo. No início do texto está escrito Feynam. Falta o "m" evidentemente.

Anónimo disse...

antónio saias - 68 anos a (re)tirar carta de condução por ter esquecido renovar (burocrat.) aos 65.
regente-agrícola aos 20; licenc. Sociologia aos 40; mestr. em Ecologia Humana desde 11 de Julho deste ano.
Não cientista - embora curioso, como Feynam, e com o seu preciso conceito de "ciência".
No momento consumo agriões cultivados em casa por proceeso que julgo original: em placas flutuantes - de esferovite.
Toda a gente do mundo (Banga Desh ou Nova Iorque) pode ter agriões em casa pelo processo. O método é uma variante(minha) de Hidroponia.

Há não sei quantos anos(porque vi na Farmácia alguém pedir água oxigenada - h2 o2, mais um átomo de oxigénio, lembrei-me de pedir uma embalagem e experimentar em casa sobre germinação de sementes para a minha pequena horta. Resultados espectaculares - confirmados por ensaios técnico-científicos pela Estação Agronómica Nacional (Oeiras): mais sementes germinadas, em muito menos tempo.
"Feynam: a ciência não nos ensina nada. O que nos ensina é a experiência" ou " eis a ciência: a descoberta de que vale mais verificar tudo através da experiência directa em vez de confiar na experiência transmitida do passado".
Mestrado em Ecologia Humana - dois anos de contacto com os nomes mais respeitados desta área. Ideias-chave da ciência: conservação/recuperação de ecosistemas; desenvolvimento auto-sustentado de sistemas produtivos...
Será negligenciável, para este efeito - auto-susentabilidade - afirmar que todos os leitores deste breve comentário (mesmo os habitantes de um trigésino andar de uma Torre dos subúrbios) podem ter em casa, na varanda, os agriões ou as alfaces de que necessitam para consumo doméstico diário?
Publiquei em "Vida Rural" artigo sobre o tema - que não conseguiu despertar atenção de qualquer instituição vocacionada para a investigação. Recentemente, um produtor de plantas alemão quis saber pormenores do processo apresentado. Tanto pode tê-lo ignorado, como estar a utilizá-lo com sucesso.
ter lido Feynam foi para mim a confirmação de que a Ciência, e seu correpondente ensino em Portugal, navegam ainda à Vela como no tempo em que eramos verdadeiros descobridores

Anónimo disse...

Tanta asneirada. Tanto cientísmo ingénuo e radical. O Feynman ficará na historia como uma das melhores ilustrações de que ser bom arrombador - também de cofres - não é sinónimo de ser-se um grande pensador. Cultive-se esta pérola: "Para se ser considerado um filósofo profundo é necessário tão-só dizer generalidades compreensíveis por toda a gente"

p. 20 do "O que é uma Lei Física?"

Poder-se-ia dizer, em contra ponto e afinando pela mesma incompreensão, que para se ser considerado (não sei bem por quem)um grande físico é necessário tão-só escrever equações incompreensíveis por toda a gente.

Anónimo disse...

A história da centopeia faz-me lembrar a do barbudo a quem perguntaram se dormia com a barba dentro ou fora dos lençóis. Nunca mais conseguiu dormir.

Joana disse...

Tanta presunção e água benta! Estou com curiosidade em saber que obras de divulgação científica o carlos p tão pródigo a classificar de «asneirada» o que os outros escrevem já produziu :)

Eu adoro o Feynman, tenho pena que não haja mais físicos como ele. E adorei este post, assim como os restantes da Helena. Obrigado Helena por esta série de posts que quebram a aridez da silly season. E não ligue a cromos como este carlos p...

Anónimo disse...

As asneiradas a que me refiro estão perfeitamente identificadas. Tanto no caso do Post da Palmira, como neste caso. Basta ler. Talvez a nossa diferença passe também por aí. Pelo que lêmos. Sendo que, no meu caso, as minhas fontes não são obras de divulgação científica.

Sobre haver físicos assim. Não tenha dúvidas que há ainda físicos assim. Como o Feynman. Mas também era bom que soubesse o que, por exemplo, o Dirac achava de Feynman. Qualquer coisa entre o charlatão e o malabarista.

Anónimo disse...

é complicado não dizer/escrever asneiradas sobre ciência quando não se lê divulgação cientifica, penso eu...

Se quizer compreender as equações "incompreensiveis" não lhe serve de muito ler o Harry Potter, o novo livro do Mantorras ou qualquer romance do Eça de Queirós. É preciso muito estudo, muito conhecimento de equações diferenciais, ...

Sei que é muito mais chato e trabalhoso, mas acredite que é necessário!

Cmpts

Anónimo disse...

É possivel aprender com toda a gente: basta aprender a separar o joio do trigo...

maria.c

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