segunda-feira, 9 de julho de 2007

CRISTAIS LÍQUIDOS: DO COLESTEROL AOS ECRÃS TELEVISIVOS

"Os cristais líquidos são belos e misteriosos; eu gosto deles pelas duas razões"
P. G. de Gennes (1932-2007), Prémio Nobel da Física

A expressão do título "Cristais líquidos" parece uma contradição: em princípio, um cristal é um sólido e não um líquido. Sim, mas só em princípio. Acontece que muitas substâncias não se podem arrumar dessa maneira simples. Não há só branco e preto, mas também cinzento. É o caso da chamada “matéria mole” (ou “fluidos complexos”), como os cristais líquidos, os polímeros e as soluções coloidais.

Os cristais líquidos, que são hoje comuns em mostradores de relógio ou de telemóvel e em ecrãs de computador ou de televisão, por um lado são líquidos, porque fluem à semelhança dos líquidos simples. Mas, por outros lado, são sólidos pois mostram padrões regulares de longo alcance. A sua dupla personalidade resulta do facto de as suas moléculas, com muitos átomos, terem formas não esféricas (muitas moléculas de cristais líquidos têm a forma de um bastão). Essas moléculas podem mudar de posição mantendo uma certa e determinada ordem, nomeadamente a orientação numa mesma direcção.

O leitor diria que há uma relação entre o colesterol e os modernos ecrãs de televisão? Com certeza que não. Mas o estudo científico dos cristais líquidos iniciou-se em 1888 com o trabalho de Friedrich Reinitzer, químico e botânico austríaco, na Universidade Alemã de Praga (então parte do Império Austro-Húngaro) sobre o colesterol da cenoura... Reinitzer observou que o benzoato de colesterilo (um composto de carbono, hidrogénio e oxigénio) tinha dois pontos de fusão. Aumentando a temperatura, passava primeiro de sólido a um líquido translúcido e só depois a um líquido transparente (poder-se-ia chamar ao segundo ponto de fusão ponto de clarificação!). Sabemos hoje que isso de deve à forma das moléculas, orientadas na fase translúcida, mas na época a ideia de moléculas e de átomos não passava de uma hipótese.

Para entender tão intrigante fenómeno, Reinitzer pediu ajuda a um cristalógrafo, o alemão Otto Lehmann, em Aachen. Este, possuidor de um microscópio de luz polarizada, conseguiu observar pequenos cristais na fase intermédia entre sólido e líquido (na figura moderna imagem de cristais líquidos). Em 1889 publicava um artigo no “Zeitschrift fuer Physikalische Chemie”, que tinha o título “Sobre os cristais líquidos” (o artigo pioneiro de Reinitzer, com o título de “Contribuições para o Estudo do Colesterol”, tinha saído no ano anterior no “Monatsheft fuer Chemie (Wien)”). Iniciou-se então uma acesa controvérsia científica que havia de durar. A história dos cristais líquidos de tantas peripécias dá um romance...


Pois foi esse romance – intitulado “Fluidos Fora da Lei” - que em 2006 saiu na Imprensa do Instituto Superior Técnico (IST Press) da pena de um especialista em cristais líquidos, o físico-matemático da Universidade de Southampton, Inglaterra, Tim Sluckin. O livro é uma preciosidade a vários títulos: em primeiro lugar porque é uma excelente descrição, com muita sabedoria e humor, de ciência em acção; em segundo lugar porque tem uma óptima apresentação gráfica, bom papel e óptimas imagens (só a lombada é que não resistiu ao uso); e, finalmente, porque está não só bem escrito como bem traduzido. O tradutor é Paulo Ivo Teixeira, físico que ensina no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, especialista em matéria mole e ex-estudante de doutoramento de Sluckin. A qualidade do seu trabalho está reconhecida pelo seu primeiro prémio no prestigiado prémio de tradução científica da União Latina e Fundação para a Ciência e Tecnologia, alcançado pela sua tradução do famoso livro "Mais Rápido do que a Luz" de João Magueijo.

Para o autor avaliar por si próprio o interesse e a qualidade do texto de Sluckin, traduzido por Teixeira, transcrevo dois parágrafos, da parte onde o autor, a propósito da repetição que ele próprio fez da experiência de Reinitzer, nos informa como se iniciou no fantástico mundo da química:

Perdi a minha virgindade experimental aos 12 anos. Estava cheio de entusiasmo por ter sido o melhor da turma em Química, e por ter lido um livro acerca de Glenn T. Seaborg (1912-99), o famoso químico que, na Califórnia, primeiro isolara os elementos transuranianos. Os meus pais tinham-me dado um laboratório de química pelos meus anos, o qual iria permitir que os meus talentos desabrochassem. Infelizmente, não havia no laboratório nenhumas substâncias químicas interessantes – por exemplo daquelas que mudam de cor, que cheiram mal ou que explodem. E ainda bem que assim era. Porque um outro rapaz do meu ano tinha misturado clorato de potássio e açúcar na arrecadação por trás da sua casa e ficado com um olho a menos (ou com um olho de vidro a mais, se quisermos ver as coisas pelo lado positivo).

Por isso, todos os sábados de manhã, deslocava-me religiosamente à drogaria Young’s, de Belvoir Street, em Leicester, para comprar ácidos e bases e permanganato de potássio. Guardava todas estas substâncias no meu quarto em frascos velhos de tinta Quink, à espera do dia em que poderia utilizá-las em experiências construtivas. Infelizmente, esse dia nunca chegou. O que chegou foi uma série de buracos na parede da casa de banho – buracos que começaram por ser insignificantes, mas que foram crescendo até serem precisos talentos de dissimulação do mais alto nível para conseguir continuar a ignorá-los.”

Fica assim a perceber porque é que Sluckin enveredou pela Física-Matemática em vez da Química... Além da investigação pura e dura, tem-se interessado pela história da ciência, como este livro bem mostra. “Fluidos Fora da Lei” é o seu primeiro livro, pois só tinha coordenado uma antologia de artigos (a IST Press tem pois os direitos mundiais da obra, mostrando o alto serviço à ciência mundial que uma editora universitária portuguesa pode prestar).

As histórias da história dos cristais líquidos, contadas por Sluckin, são todas muito engraçadas. Por exemplo, Lehmann, em 1908, nos famosos “Annalen der Physik” (onde Einstein tinha publicado três anos antes os seus artigos fundadores da teoria da relatividade restrita), num artigo intitulado “Sobre a história dos cristais líquidos”, atacava um seu colega alemão, se seu nome Vorlaender, que lhe estava a disputar a prioridade que ele pretendia. Lehmann, numa tradução muito livre feita com ironia por Sluckin, escreveu: “O sacana do Vorlaender não me está a fazer justiça! Fui eu quem inventou os cristais líquidos, não foi o Reinitzer! Está bem que a química tem a sua piada (...) O sacana!” Reinitzer, bem educado, ripostou que o fenómeno da dupla fusão remontava a 1855, que não tinha afinal sido nenhum dos dois...

Começou, portanto, com disputas na língua alemã a ciência dos cristais líquidos... E a polémica continuou noutras línguas, com a entrada em cena dos franceses e, um pouco atrasados, dos ingleses e dos norte-americanos. As aplicações chegaram em força no século XX. A companhia inglesa Marconi registou logo em 1934 uma patente sobre a melhoria de válvulas de luz, que era premonitória das televisões de cristais líquidos. Contudo, os primeiros mostradores de cristais líquidos viáveis, baseados nas peculiares propriedades ópticas dos cristais líquidos, só se tornaram possíveis em 1963, graças ao engenho do norte-americano George Heilmeier, um investigador da Radio Corporation of America. A história da prioridade das patentes nesta área foi uma autêntica telenovela, que não fica atrás da disputa relativa à descoberta. O sucesso moderno dos cristais líquidos ficou a dever-se aos japoneses, em especial à Sharp Corporation.

O leitor que tenha em sua casa uma televisão de LCD (Liquid Crystal Display) e que não faça ideia da história dos cristais líquidos tem agora uma oportunidade que não deve desperdiçar: só foram impressos 500 exemplares desta história e os seus possuidores devem, portanto, considerar-se uns privilegiados!

- Tim Sluckin, “Fluidos Fora da Lei. A história dos cristais líquidos: de curiosidade a tecnologia”, IST Press, 2006

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