Um grupo de estudantes do Mestrado em Ciências da Educação da Universidade de Coimbra colocou-me algumas perguntas sobre o presente da educação. Perguntas que, como a generalidade das perguntas que esta área suscita, são de muito difícil e nada consensual resposta. Ao correr do pensamento, respondi à primeira pergunta o que se segue.
Ao olharmos para as sociedades atuais, podemos afirmar que a educação falhou?
As sociedades actuais – vou restringir-me às ocidentais –, no seu modo de organização e funcionamento, assemelham-se às sociedades precedentes, mesmo às mais arcaicas. Isto porque a condição humana é aquilo que é, com o que tem de fragilidade e de potencialidade.
Cedo, na nossa evolução, teremos percebido que não podemos deixar os seres que nascem entregues à sua própria sorte, é preciso educá-los para se tornarem humanos. A nossa condição é frágil, nascemos com capacidades – capacidades para… – mas elas não têm inscritas as expressões que consideramos humanas, estas são-nos facultadas por quem nos educa, e que já foi educado por outrem...
Se, por um acaso, a educação fosse suprimida, se as crianças fossem deixadas entregues à sua própria sorte, caso sobrevivessem, não conseguiriam tornar-se seres humanos. Na verdade, para se ser humano é preciso ter-se integrado, em si, a essência da humanidade.
Toda a educação assenta, pois, na herança que recebemos daqueles que nos precederam, do conhecimento que a humanidade construiu até aqui e que esperemos continue a construir pelo futuro fora. Falo do conhecimento que Lev Vigotsky notou ser histórica e socialmente construído, ao longo de milénios, por isso ninguém pode reconstitui-lo a partir de si mesmo, sem mais. É com base neste conhecimento que podem estimular-se as capacidades humanas superiores. O mencionado psicólogo explicou que é na escola, na relação professor-alunos, que isso deve acontecer, na sua máxima amplitude.
Também cedo teremos percebido que, se educarmos, a geração seguinte pode conhecer mais, alcançar mais discernimento do que a anterior. É dizer: “os que educamos podem ser melhores do que nós” ou “educamos para que os mais novos sejam melhores do que nós”. Esse é o nosso potencial como humanidade e como pessoas individuais.
O Iluminismo fixou-se neste potencial e empenhou-se em concretizá-lo como talvez nunca na história tivesse acontecido. Deu-nos a ideia, que hoje sabemos ser uma utopia, de que a educação, sobretudo a escolar, resolveria se não todos os males do mundo, pelo menos os mais relevantes.
A descoberta de que os seres humanos, para o serem, têm de se educar e de que a educação pode melhorar a espécie será uma das primeiras e grandes descobertas da humanidade. Todavia, na Modernidade e, mais próximo, na Contemporaneidade, tendemos, com frequência, a negá-la, apesar dos dados científicos que a corroboram.
Efectivamente, o presente da educação escolar é muito marcado pelo assombro do progresso técnico e tecnológico, ao ponto de negligenciarmos a nossa condição humana, de nos esquecermos das suas fragilidades e das suas potencialidades.
É comum invocarmos a crença de que esse progresso se inscreveu da nossa condição original, orientando-a. Isto ao ponto de podermos confiar nela para sermos humanos, dispensando a educação. Usando as palavras de Carlos Fernandes Maia, ao ponto de os adultos educados se demitirem de educar os mais novos.
Aqui devo retomar e sublinhar o seguinte: tanto quanto sabemos, partilhamos com os nossos antepassados mais próximos e mais distantes as capacidades cognitivas, afectivas e motoras, e temos igual necessidade de sermos educados para que essas capacidades se manifestem.
Se manifestem de forma diferente em cada um de nós, conferindo-nos a nossa própria identidade, o que se estende à sociedade e a faz funcionar, desejavelmente, segundo princípios aceitáveis.
Enfim, num determinado momento, as sociedades terão percebido que precisavam de um contexto em que pudesse ser transmitida uma parte do conhecimento que iam acumulando e que já não podia ser deixado ao acaso, sob pena de se perder e, assim, regredirem. O que a educação escolar faz, ou deve fazer, é transmitir uma parte substancial do legado de gerações anteriores – o que se entende ser o melhor que construíram – às novas gerações para que estas o usem em seu benefício, o ampliem e o transmitam às próximas gerações. E por aí adiante…
Interpreto que queriam perguntar-me o seguinte: percebendo os grandes problemas das sociedades actuais, de que serve educar, se a educação, tal como acima a perspectivo, não evita esses problemas, nem os resolve depois de eles se manifestarem?
Essa pergunta, da maior importância, ocupou vários, sobretudo filósofos do pós Segunda Grande Guerra. Em concreto, questionaram: de que serviu aos alemães terem chegado ao patamar de cultura e de educação a que chegaram, se permitiram que acontecesse o que aconteceu, se participaram no que aconteceu, sendo alguns colaboracionistas e outros actores principais? George Steiner notou que altos responsáveis por campos de concentração podiam controlar o extermínio de centenas ou milhares de pessoas durante o dia e à noite apreciar música clássica. Podia trazer para aqui outros exemplos colhidos no passado e no presente, sendo que, por certo, eles têm lugar reservado no futuro.
Não sei se é a educação que falha quando a sociedade se torna iníqua, para afirmar isso teria de admitir que existe uma orientação inequivocamente certa para a educação e que essa orientação é cumprida, sendo que, por alguma razão, ela pode falhar. O problema é muito mais complexo do que isso. A verdade é que não sabemos qual a orientação inequivocamente certa a imprimir à educação: podemos dizer que é a perfeição do humano. Só que não sabemos bem o que é a “perfeição”. Este é o paradoxo que Immanuel Kant nos deixou e que ainda não conseguimos resolver, e talvez nunca o consigamos.
Em suma, diria que a educação escolar pública, entendida verdadeiramente como educação – despida das múltiplas ideologias, doutrinas que vemos apropriar-se dela, dos múltiplos interesses que insistem em dar-lhe o rumo que lhes é mais conveniente –, faz o que pode.
Sendo uma fonte de educação entre outras – familiar, entre pares, etc. – que a sociedade proporciona e, apesar de mais vezes do que seria desejável a vermos desviada do seu rumo, há que reconhecer que tem feito a sua parte. Ou mais do que isso. Ajudou-nos a chegar até aqui, com tudo o que o "aqui" tem de bom e da mau, de desejável e de indesejável.
Recorro às palavras de um colega, Joaquim Pires Valentim, que me parecem traduzir bem o que pretendo afirmar: “temos pedido sempre muito à escola (…) permitir a igualdade e agora, entre muitas outras coisas, que, respeitando as diferenças individuais, promova o mérito e o talento de cada um, o desenvolvimento integral, que valorize as diferenças culturais e combata as pulsões xenófobas. A questão é saber se o pode fazer. É verdade que a escola não é redutível a uma mera agência de promoção social mas pode mudar bastante a vida das pessoas ao fornecer-lhes instrumentos cognitivos.”
Termino, com uma pergunta: o que acontece(rá) à(s) sociedade(s) se, como vaticinam aqueles que julgam ter poder nas(s) sociedade(s), a educação que está entregue à escola for de tal modo transformada que deixamos de a reconhecer como tal, desaparecendo, inclusivamente, a própria instituição a que chamamos escola?
4 comentários:
Entrando em considerações gerais:
Será que a Educação, mesmo quando aplicada com paixão, é um dos principais fatores do desenvolvimento socioeconómico das nações?
Veja-se o caso de Portugal. O nosso período áureo, no século XVI, com o Clero a educar e doutrinar a Nobreza e o Povo, durou só algumas décadas, porque o "desenvolvimento" vinha mais da pimenta e do ouro, como sempre, do que da Educação. É certo que a expulsão dos judeus, e da sua religião, não podia deixar de ter reflexos negativos nos negócios da Índia, mas, mesmo neste caso, permanece a questão de saber se é a riqueza que conduz à educação ou é a educação que origina a riqueza dos povos.
Noutra vertente, na possível ligação entre desenvolvimento e educação, o exemplo histórico que acabo de dar ensina-nos que "educações" há muitas. Enquanto os neerlandeses e os ingleses, desrespeitando o próprio Papa, atacaram e destruíram o nosso império marítimo, e optaram pela Ciência, de Galileu e Newton, nós, os portugueses e espanhóis continuamos a educar os povos na santa fé católica, até chegarmos à atualidade com muito pouco dinheiro nos bolsos. Ultimamente apostamos tudo nas chamadas ciências da educação que nos conseguiriam fazer recuperar do atraso em que estamos. Para mim, os milhares de doutoramentos em "ciências" da educação estão longe de ser uma solução para o marasmo em que caiu a educação em Portugal.
A questão que o Leitor coloca é de grande interesse e tem sido estudada na área da educação: a escolaridade conduz à riqueza (financeira) ou o contrário? Considerando o exemplo que dá, os descobrimentos só foram possíveis por causa do conhecimento que se conseguiu reunir a transmitir através da educação formal. É claro que os descobrimentos, com tudo o que revelaram e acarretaram, incluindo esse tipo de riqueza, potenciaram a educação formal e... por aí em adiante. Assim, penso que não podemos entrar numa discussão do tipo "se... então". Esse é o maniqueísmo da OCDE ao passar a ideia de que o "desenvolvimento" económico depende directamente da educação. Á custa desta ideia (que, podendo não estar completamente errada, certa não está) mudam-se os sistemas educativos, uns atrás dos outros.
Quanto às "ciências" da educação, saberá o Leitor que trabalho na área das Ciências da Educação, estando em posição para lhe dizer que ela não é, de facto, a "solução para o marasmo em que caiu a educação em Portugal", tal como em muito outros países, mas julgo poder afirmar que muito do que aí se faz poderia ajudar políticos e práticos a tomarem decisões para a educação que contribuíssem para a formação dos alunos, fim que muito facilmente se perde do horizonte. Lamentavelmente não é isso que acontece: prevalecem ideias como a que referi, com origem em organizações supranacionais, em diversos sectores da sociedade e do sistema educativo.
Cordialmente,
MHDamião
Com toda a cordialidade, Professora Helena Damião, lhe digo, como professor do ensino secundário, que as ciências da educação, com que tomei contacto sentado nos bancos dos anfiteatros da Faculdade de Ciências onde me formei, eram uma trapalhada pejada de anglicismos e neologismos, sem qualquer coerência, que só despertava um mínimo de interesse nos estudantes mais quadrados. Evidentemente, que o discurso da senhora professora está a anos-luz, para usar uma unidade científica com rigor, da verborreia inextricável feita de grelhas cheias de domínios, subdomínios, rubricas, competências, perfis à saída da escolaridade obrigatória, poucas aprendizagens, só as essenciais, e muita filosofia ubuntu, que carateriza o eduquês atualmente em vigor nas escolas, inegavelmente inventado por "cientistas" da educação.
Voltando à relação entre desenvolvimento socioeconómico e educação:
Eu não sei explicar o chamado milagre grego, da antiguidade clássica, mas estou convicto de que, sem a riqueza, criada pelo comércio marítimo, não teria havido tantos filósofos e artistas na Grécia Antiga.
Oa militares do 25 de abril prometeram desenvolver Portugal, porém, com a agravante da perda das colónias ricas, o nosso modelo económico é, em linhas gerais, igual ao do antigo regime, quer dizer, sem capital. Então pensou-se que, acabando por pôr toda a gente a estudar, sem dar importância à qualidade do ensino, ficaríamos todos ricos.
Foi uma ilusão!
Prezado Professor, a linguagem "educativa", "pedagógica" é, cada vez, mais essa "trapalhada pejada de anglicismos e neologismos" de que fala, indo buscar termos à economia, à psicologia, e à tecnologia (sobretudo à informática). Desaparecem as palavras (associadas aos seus significados) em que se falava e escrevi. Explicar ou discutir alguma coisa nesta área é, portanto, uma tarefa difícil, quando não impossível. O velho "eduquês" de que falava do ex-Ministro da Educação Marçal Grilo, nada tem a ver com o "sofisticado" vocabulário que nos é imposto por estruturas globais e nacionais. Talvez por pensarem que esse é "o" vocabulário, escolas e professores, mas também investigadores, tendem a replicá-lo em vez de o interrogar. Pergunte-se a quem o usa, o que quer dizer com esta ou aquela palavra...
Quando à relação entre desenvolvimento socioeconómico e educação, a própria etimologia de "escola" (tempo de ócio, sem trabalho), leva-nos a pensar esse desenvolvimento permitiu ir dispensando força de trabalho de modo que crianças e adultos pudessem dedicar-se ao estudo, ao saber.
A escola tem de ser isso, não pode (continuar a) ser posta ao serviço da produção económica (em prol de um sector da sociedade). E, nós, professores, temos a nossa responsabilidade.
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