A dicotomia rígida e flexível anunciaria uma transição,
uma mudança com ares de positividade,
uma promessa para a sociedade em transformação.
É necessário submeter tais pressupostos ao crivo da crítica.
Sadi Dal Rosso, 2017, 11.
A mais recente reforma do sistema educativo português designa-se por "Autonomia e flexibilidade curricular". Já antes desta reforma se usavam abundantemente as palavras "autonomia" e "flexibilidade" associadas à educação escolar, ao currículo, ao trabalho pedagógico, ao calendário lectivo, etc. O mesmo acontece numa multiplicidade de países alinhados pelas políticas supranacionais.
A sua conotação é inequivocamente positiva: preferimos "autonomia" a "dependência / subordinação"; "flexibilidade" a "rigidez / intransigência". E, sendo assim, dispensamo-nos de interrogar o seu efectivo sentido no contexto em que são usadas. Isto é um erro.
Focalizando a atenção apenas e só na palavra "flexibilidade", há a dizer que ela tem sido, desde finais do século passado, tornada central no mundo do trabalho, adquirindo um sentido muito próprio, o qual foi importando para o mundo da educação. Tendo a lógica organizacional do primeiro sido transposta para o segundo, convém perceber que sentido lhe é conferido no mundo do trabalho para se perceber o sentido que lhe é conferido no mundo da educação.
O sociólogo brasileiro Sadi Dal Rosso ajuda-nos nessa tarefa. No seu livro O ardil da flexibilidade, publicado em 2017, tomando por referência as políticas globais para o trabalho, analisa o modo como, a partir delas, as empresas se estruturam. Em resultado, declara que a "flexibilidade" ganha terreno no emprego: na repartição das tarefas e na sua distribuição pelas horas do dia. Mas ganha também terreno na formação e qualificação profissional. O objectivo é fazer com que os trabalhadores "sejam, em si, flexíveis" (p. 11).
Mas, o que é a flexibilidade? Dal Rosso assinala, logo no início da obra, a dificuldade de responder a esta pergunta. Nas suas palavras: "a qualidade de ser flexível e o processo de flexibilização chegam ao nosso alcance como objectos foscos, recobertos por camadas de pressupostos ideológicos e teóricos, de tal modo que se torna difícil interpretar seu significado. Em seu âmago escondem-se significados herméticos, donde procede a tarefa de compreender não apenas as manifestações concretas da flexibilidade como, inclusive, os pressupostos sobre os quais ela se firma" (p. 12).
Mais fácil será, então, explicar as suas manifestações. De novo as palavras de Dal Rosso: "a flexibilidade transformaria os momentos da vida, sem necessariamente diminuir a duração da jornada de trabalho. Os negócios desejam trabalhadores flexíveis para melhor se estruturar, para ajustar desencontros entre oferta e procura, para elevar o nível de intensidade laboral com vistas a alcançar o rendimento do trabalho e assim superar a competição, para impedir tempos perdidos e evitar gastos de contratação de mão de obra em tempos contínuos, para produzir, mediante o emprego de trabalho flexível, muito mais valor do que se alcançava com o emprego de trabalho em jornadas longas, fixas, repetitivas, de tempo integral" (p. 12).
Porque é que a flexibilidade se configura como "ardil"? Porque ela é apresentada, acima de tudo, como uma medida favorável aos trabalhadores. Sendo objecto de alguma contestação, sobretudo por parte de sindicatos, a verdade é que os trabalhadores, tendem a aceitá-la de bom grado e, em muitos casos, a reivindicá-la como um direito. Cada vez mais isolados, "empreendedores" por conta própria, remetidos para a categoria genérica de "colaboradores", desvinculados ou nunca vinculados a um grupo profissional, e, portanto, sem a identidade que este confere, aceitam, pensando estar a negociar, as condições laborais que estão previamente estabelecidas.
Nesta linha, o autor demonstra, com base em referências sólidas, que tal apresentação é assaz ardilosa, pois, na verdade, a flexibilidade constitui uma estratégia económica bem pensada que visa, tão simplesmente, ampliar os lucros das empresas, tocando muito mais do que a gestão do tempo no trabalho e fora do trabalho. São os salários, os lugares, os contratos, os tempos, os espaços, os direitos, as metas/objectivos a cumprir, etc, que se tornam também flexíveis. O horizonte é a uberização do trabalho, "sonho dourado do mundo empresarial", como diz Ricardo Antunes, que assina a badana do livro.
Sadi Dal Rosso não faz uma ligação à educação escolar pública - o seu foco não é esse -, mas lendo os textos que delineiam a reforma em curso, réplica da reforma global da educação, percebemos que os alunos devem ser moldados em função de um perfil flexível, ajustado a este "mercado de trabalho". Cabe aos educadores decidir se devem fazer isso ou se devem educar, sendo que educar inclui, obviamente, preparar para o trabalho digno. Mas essa é outra reflexão...
4 comentários:
O conceito de flexibilidade convocou, ao longo dos séculos, toda uma fenomenal e abundante literatura, assinada pelas mais elevadas mentes, gabando-lhe as virtudes e as vantagens do seu uso. E é certo poder muitas vezes ser ela até uma vantagem de sobrevivência. Mas assim como há coisas más e perigosas que podem ser usadas para bons fins (o arsénico, que é mortal, nas pode ser usado na constituição de medicamentos benfeitores), também há coisas boas, como a flexibilidade, que podem ser usadas, perversamente, para fins, no mínimo, discutíveis. É para este mau uso da flexibilidade que a Professora Helena Damião chama a atenção dos educadores. Tudo pode ter um uso bom e um uso mau. A "doença", de uma maneira geral, é má, mas Pascal aconselhava-nos a fazermos um bom uso dela. Dou um exemplo: o escritor francês Roger Martin du Gard, encontrava-se numa fase já avançada da escrita do seu enorme romance cíclico, LES THIBAULT (que lhe valeria o Prémio Nobel), quando verificou um erro gravíssimo na sua estrutura, para o qual não encontrava solução. Isto deixou-o paralisado, durante algum tempo. Foi nesse momento que sofreu um grave acidente de automóvel, que o deixou hospitalizado durante muito tempo e foi este involuntário repouso que lhe permitiu reflectir profundamente sobre a solução para o erro de estrutura do seu notável romance. Acabou por achá-la, o que aliás o obrigou a destruir centenas de páginas já escritas (que queimou, para evitar tentações). Seguiu assim o bravo conselho de Pascal: "faire un bon usage des maladies".
Eugénio Lisboa
A Educação, tal como a Ciência, no sentido que Galileu lhe deu, são atividades humanas que para prosperarem precisam da disciplina, do rigor e criatividade dos seus autores, que são os alunos, os professores e os cientistas.
Uma marionete, por mais flexível que seja, não tem vontade própria, depende totalmente de quem lhe mexe os cordelinhos.
A flexibilidade, no campo da avaliação dos alunos no ensino secundário, imposta aos professores como condição sine qua non para o sucesso escolar de todos, mas mesmo todos, os cidadãos, é obrigar os professores a preencherem para cada um dos seus duzentos alunos, ou mais, em cada uma das aulas, os imensos quadradinhos de folhas excel, onde tudo deve ficar registado, desde a criatividade e grau de responsabilidade demonstrados até ao desenvolvimento do perfil democrático. Se o professor reconhecer que é humanamente impossível realizar, honestamente, tão ciclópica tarefa, só lhe resta uma saída: ser flexível e passar toda a gente!
Agradeço a Eugénio Lisboa e a Alberto os seus comentários.
A linguagem é um dos grandes problemas da educação escolar pública. Os conceitos usados com múltiplos significados, mas sem nenhum significado claro, objectivo, aliado ao modo como são usados, induzem a pensar numa certa direcção. Trata-se de um problema que confunde, que não deixa levar a bom termo qualquer discussão. Este conceito (flexibilidade) é um dos mais equívocos do vocabulário "pedagógico". Contudo, é um conceito central na reforma.
Cordialmente,
MHDamião
A linguagem é mesmo um dos grandes problemas que assola a Educação.
O preâmbulo do DL 55/2018, de 6 de julho, “desafia as escolas” a “dispor de maior flexibilidade na gestão curricular, com vista à dinamização de trabalho interdisciplinar, de modo a aprofundar, reforçar e enriquecer as Aprendizagens Essenciais”.
Se virem bem está aqui tudo. Está a ignorância que os conhecimentos significativos e duradouros dependem da dinamização de trabalho interdisciplinar. Aldraba o próprio normativo legal que apresenta nos seus anexos o ensino por disciplina (pluridocência) e não por junção de disciplinas (monodocência). Dos programas das disciplinas, revogados em 2021, encurta-se o que deve ser ensinado nas escolas, veiculado nas aprendizagens essenciais, que passa a perspetivar o seu aprofundamento e enriquecimento.
Quem está na escola sabe muito bem que “flexibilidade” é sinónimo de “afrouxamento”. Sente-a todos os dias. Pressão. Há muito que, por sobrevivência profissional, os professores desistiram. Não deviam, mas é o que acontece.
Dou sempre o mesmo exemplo, até porque já é relatório e não projeto. Já aconteceu. Já sabemos como terminou e porque é que terminou. Averbado, inclusivamente, pela equipa ministerial de então. Refiro-me ao disposto no já revogado Despacho Normativo n.º 50/2005, planos de recuperação (artigo 2.º), planos de acompanhamento (artigo 3.º) e planos de desenvolvimento (artigo 5.º). Ora, sobre estes últimos o articulado legal entende-os como “… conjunto das actividades concebidas no âmbito curricular e de enriquecimento curricular…”. O balanço que conduziu à sua revogação foi: No ano lectivo de 2007-2008, num universo de 764 mil alunos foram aplicados 187.638 (25%) planos de recuperação, 40.201 (5%) planos de acompanhamento e perto de zero os planos de desenvolvimento, números que surpreenderam o Secretário de Estado de então, Valter Lemos, “Seria de esperar que não houvesse tantos alunos com tantas dificuldades”.
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