quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Marguerite Yourcenar: Memórias De Adriano


M.Yourcenar escreveu As Memórias de Adriano, longa carta de Adriano a Marco Ânio Vero, porque, na sua opinião, o governo do imperador fora um dos raros períodos da história em que o homem estivera no centro do universo. Não ignorando a lascívia e a crueldade de Adriano — matara os seus inimigos —, Yourcenar preferiu realçar a maior alforria que ele dera aos escravos, o fulgor que trouxera ao comércio, a atenção que tivera para com as mulheres e a terra que passara para as mãos de quem estivera disposto a trabalhá-la. Adriano empunhara as suas três bandeiras — A humanidade, a felicidade e a liberdade —, e a romancista apoiou-se nelas para escrever a sua obra-prima.
A vida do poeta e astrónomo Omar Khayyām (retificara, com maior exatidão, o calendário Persa de 365 dias/ano) também fascinou Yourcenar, que só não escreveu um romance sobre ela porque não conhecia a língua Persa e os hábitos desse povo. Lembro, ao leitor, que Miss Lily Bart, em The House Of Mirth, não prescinde do poeta quando inicia uma viagem.
Não temos as memórias de Omar Khayyām, mas Youcenar não se esqueceu de duas das paixões de Adriano, a poesia e a astronomia, como mostra este excerto:
«É aqui que convém mencionar um hábito que me levou durante toda a minha vida para caminhos menos secretos que os de Elêusis, mas que, em suma lhes são paralelos: quero falar do estudo dos astros. A ciência destes últimos é incerta, falsa no pormenor, talvez verdadeira no conjunto; pois que o homem, parcela do universo, é regido pelas mesmas leis que presidem ao céu, não é absurdo procurar lá em cima os temas das nossas vidas, as frias simpatias que participam nos nossos êxitos e nos nossos erros. Não deixava, em cada noite de Outono, de saudar, a sul do Aquário, o Copeiro celeste, o Dispensador sob cujo signo nasci. Não me esquecia de, a cada uma das suas passagens, tomar como pontos de referência Júpiter e Vénus, que regulam a minha vida, nem de ponderar a influência do perigoso Saturno. Mas se esta estranha refração do humano na abóboda estelar preocupava muitas vezes as minhas horas de vigília, interessavam-me mais intensamente ainda pelas matérias celestes, pelas especulações abstratas a que os grandes corpos inflamados dão lugar. Inclinava-me a acreditar, como alguns dos nossos sábios mais ousados, que a Terra participava também nessa marcha noturna e diurna de que santas procissões de Elêusis são, quando muito, o humano simulacro. Num mundo onde tudo não é mais que um turbilhão de forças, danças de átomos, onde tudo está ao mesmo tempo em cima e em baixo, na periferia e no centro, concebia mal a existência de um globo imóvel, de um ponto fixo que não fosse simultaneamente móvel. Outras vezes, os cálculos, da precessão dos equinócios, estabelecidos outrora por Hiparco de Alexandria, tornava-se uma obsessão nas minhas vigílias noturnas: encontrava-lhes, sob a forma de demonstração, e não já de fábulas ou de símbolos, aquele mistério eleusíaco de passagem e do regresso. A Espiga da Virgem já não está, nos nossos dias, no mesmo ponto da carta onde Hiparco a marcou, mas esta variação é a conclusão de um ciclo, e esta própria mudança confirma as hipóteses do astrónomo. Lentamente, inelutavelmente, este firmamento tornará a ser o que era no tempo de Hiparco: será de novo o que era no tempo de Adriano. A desordem integrava-se na ordem; a mudança fazia parte de um plano que o astrónomo era capaz de apreende antecipadamente; o espírito humano revelava aqui a sua participação no universo pelo estabelecimento de teoremas exatos, como em Elêusis por gritos rituais e danças. O homem que contemplava e os astros contemplados rolavam inevitavelmente para o seu fim, marcado em qualquer parte no céu. Mas cada momento desta queda era um tempo de passagem, um ponto de referência, um escorregamento levava-nos a esse ponto que, por nos encontrarmos ali por acaso, nos parecia centro.
Desde as noites da minha infância, em que o braço erguido de Marcolino me indicava as constelações, a curiosidade das coisas do céu nunca mais me deixou. Durante as vigílias forçadas dos acampamentos contemplava a Lua correndo através das nuvens dos céus bárbaros; mais tarde, em claras noites áticas, ouvi o astrónomo Theron de Rodes explicar-me o seu sistema do mundo; estendido na ponte de um navio, em pleno mar Egeu, vi a lenta oscilação do mastro deslocar-se entre as estrelas, ir do vermelho do Touro ao choro das Plêiades, de Pégaso ao Cisne: respondi o melhor que pude às perguntas ingénuas e graves do jovem que contemplava comigo o mesmo céu. Mandei construir aqui, na Villa, um observatório cujas escadas a doença me impede hoje de subir. Uma vez na minha vida fiz mais: ofereci às constelações o sacrifício de uma noite inteira. Foi depois da minha visita a Osroés, durante a travessia do deserto sírio. Deitado de costas, com os olhos bem abertos, abandonando por algumas horas todos os cuidados humanos, entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. O grande astro da constelação da Lira, estrela polar dos homens que hão de viver dezenas de milhares de anos depois de nós termos deixado de existir, resplandecia por cima da minha cabeça. Os Gémeos luziam frouxamente nos últimos clarões do poente; a Serpente precedia o Sagitário; (…)»

2 comentários:

Francisco Domingues disse...

Quando o Homem deixar de olhar para o seu umbigo para contemplar as estrelas e sentir a sua real dimensão: um pontinho de NADA numa imensidão de TUDO, então aí pensará em construir, na Terra, a fraternidade universal, sem guerras nem quezílias, nem atrocidades nem egoísmos. Que pena que não seja na nossa geração!

Anónimo disse...

"...no contrapeso distante dos astros."
"... arrulhar fortuito das aves."

Geralmente, são estes os fragmentos que me assolam à vista do nome de M. Yourcenar.

Admitimos que a lua tem influência nas marés e que as tempestades solares interferem com a comunicação, mas muitos evitam dizer que nasceram sob o signo tal ainda assim a ciência não os queime na fogueira. Sabe tanto a ciência quanto sabe um céu que é mais antigo que o Homem?

Não, não sabe. E tem de aprender a dizer "não sei".

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