Os tristes acontecimentos de Paris, que tiveram como centro o jornal satírico Charlie Hebdo, e todos aqueles que os antecederam e que já lhe sucederam, suscitam múltiplas interrogações. Destaco as seguintes:
- Somos uma só humanidade que se deve conduzir por valores universais e universalizantes ou uma amálgama de grupos isolados com valores particulares e todos justificáveis, de modo que qualquer entendimento se revela uma impossibilidade e, portanto, o confronto torna-se inevitável?
- Essa humanidade una, a existir, deve fazer tudo o que está ao seu alcance para manter os valores universais - como a liberdade e a democracia - que tantos milénios levaram a construir ou "respeitar" valores particulares e aceitar os actos que deles decorrem, ainda que atentem contra esse valor de topo, dos quais todos os outros decorrem, que é a dignidade?
O slogan - Je suis Charlie - que solicita a identificação pessoal imediata, tem, de facto, conseguido a identificação de milhares, de milhões... que se manifestam como humanidade una que se conduz por valores universais e isto independentemente da identidade ou identidades que reivindicam e de as imagens que o acompanham esse slogan lhes fazerem notar a desproporção de meios de afirmação: lápis contra armas.
As vozes relativistas têm, neste caso, sido mais reservadas do que noutros casos análogos ou, então, reviram as suas declarações, ou, também é possível, não têm sido objecto de atenção. O que é facto é que, e isso tem sido notado, poucas são as que têm posto em causa o direito de todos à vida.
Permito-me partilhar com os leitores uma passagem do livro As identidades assassinas (Difel, 1999, pp.119-121), da autoria de Amin Maalouf, jornalista e escritor libanês que vive há muitos anos em Paris (o original, Identités meurtrières, foi publicado em 1998) por discutir tudo isto com uma lucidez rara, razão pela qual agora o retomei, numa tentativa de compreender e o que se configura como puramente absurdo.
"O postulado de base da universalidade é considerar que há direitos inerentes à dignidade do ser humano que ninguém deveria negar aos seus semelhantes por causa da religião, da sua cor, da sua nacionalidade, do seu sexo, ou por qualquer outra razão. O que quer dizer, entre outras coisas, que qualquer atentado aos direitos fundamentais dos homens e das mulheres, em nome desta ou daquela tradição particular - religiosa, por exemplo -, é contrário ao espírito de universalidade. Não pode haver, por um lado, uma carta global dos direitos humanos, e por outro cartas particulares, uma carta muçulmana, uma carta judia, uma carta cristã, uma carta africana, uma carta asiática, etc. (...).
Respeitar alguém, respeita a sua história, é considerar que esse alguém pertence à mesma humanidade, e não a uma humanidade diferente, uma humanidade de saldos. Não queria alongar-me sobre esta questão, que merece por si mesma, um longo desenvolvimento apoiado em provas. Mas tinha de a evocar aqui, porque ela é essencial à noção de universalidade. Tal noção estaria esvaziada de sentido se não tivesse como pressuposto a existência de valores que dizem respeito a todos os seres humanos, sem qualquer distinção. Esses valores sobrepõem-se a tudo. As tradições só merecem ser respeitadas na medida em que são respeitáveis, isto é, na exacta medida em que respeitam os direitos fundamentais dos homens e das mulheres. Respeitar «tradições» ou leis discriminatórias, é desprezar as suas vítimas.
Todos os povos e todas as doutrinas produziram em certos momentos da sua história, comportamentos que se revelaram, com a evolução das mentalidades, incompatíveis com a dignidade humana; em lado algum se conseguirá aboli-las por um simples decreto, mas isto não nos dispensa de as denunciarmos e de trabalhar para o seu desaparecimento.
Tudo o que diz respeito aos direitos humanos fundamentais - o direito de viver como cidadão de pleno direito nas terra dos seus antepassados sem sofrer perseguições ou discriminações; o direito de viver com dignidade onde quer que alguém se encontre; o direito de escolher livremente a sua vida, os seus amores, as suas crenças, no respeito pela liberdade dos outros; o direito de aceder sem entraves ao saber, à saúde, a uma vida decente e honrosa - nada disto, e a lista não é restritiva, pode ser negado aos nosso semelhantes sob o pretexto de preservar uma crença, uma prática ancestral ou uma tradição. Neste sentido, será necessário inclinarmo-nos em direcção à universalidade, e mesmo, se necessário em direcção à uniformidade, porque a humanidade, mesmo sendo múltipla, é, em última instância, uma só."
1 comentário:
Tudo muito bem. Mas, nesta "parafernália" de manifestações, a propósito do Charlie - o que é, obviamente, de louvar - intriga-me a razão pela qual a humanidade civilizada/ocidental não faz as mesmas manifestações pelos atentados que vão acontecendo diariamente por esse mundo: 160 crianças foram mortas numa escola do Paquistão por talibãs; na Nigéria, mataram 20 e feriram uma centena, no dia seguinte ao atentado de Paris; as chacinas que o EI tem cometido contra comunidades católicas, e não só, são constantes e passam na Net; etc., etc., já não falando nos crimes quotidianos cometidos sobretudo contra as crianças e mulheres, mais nos países do terceiro mundo do que nos do primeiro (onde está o segundo?!), embora, aqui, a violência doméstica leve à morte também muitas delas. (Em Portugal, são cerca de 45/ano!) Dirão alguns que, assim, o "mundo civilizado" andava sempre em manifestações pelos direitos humanos, pela dignidade humana, pela liberdade. Mas que era muito mais honesto, não tenho dúvidas. Só deste modo se compreenderia a tal humanidade universal de que fala Helena Damião. Creio que essa humanidade - uma humanidade de fraternidade universal - só existirá daqui a umas largas centenas, senão milhares de anos, dado o carácter universalmente reconhecido do ser humano: um carácter egoísta, quando não perverso e um contínuo "Homo homini lupus".
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