quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Maior do que o qual nada pode ser pensado

Muitos viajantes se cruzaram certamente com ele, sem fazer ideia da importância que viria a ter na filosofia europeia. Nascido em 1033, abandonou a casa do pai, com quem nunca se deu bem, depois da morte da mãe. E foi assim que em 1056, com apenas vinte e três anos, Anselmo — mais tarde Bispo da Cantuária, canonizado em 1163 — se entregou a uma viagem de mais de setecentos quilómetros, de Aosta, na sua Itália natal, em direcção à actual França.

O seu objectivo era algo indefinido, o que não é invulgar quando se tem a sua idade: oscilava entre a atracção que sentia pela vida monástica e por uma carreira intelectual. Mas as duas opções não eram incompatíveis: no seu tempo, uma parte importante da vida intelectual ocorria sob a protecção dos muros dos mosteiros, com as suas ricas bibliotecas. E era no mosteiro beneditino de Bec, na Normandia, que estava o italiano Lanfranc (1005-1089), famoso pela sua sapiência e ensino, de quem Anselmo pretendia receber instrução. Pôs, por isso, pés a caminho em direcção a Bec e a Lanfranc.

Idade das trevas?

O mundo em que Anselmo vivia era tumultuoso. Sob a aparente complacência dos ritmos feudais escondia-se um conturbado reajuste político entre reis, imperadores e poderes eclesiásticos. Dois anos antes de Anselmo pôr pés a caminho, o papa católico Leão IX e o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, tinham-se excomungado entre si, marcando assim o grande cisma cristão, que dura até hoje, entre a igreja católica e a ortodoxa.

Além disso, há muito que tinham desaparecido os centros de investigação da Antiguidade grega e romana. As escolas de filosofia gregas tinham sido extintas há cerca de quinhentos anos; a Biblioteca de Alexandria, que era igualmente um centro de estudos, e não apenas um repositório de livros, fora destruída há trezentos anos.

Das cinzas da civilização clássica europeia, começavam a despontar os grandes centros de estudo da Europa medieval. A primeira universidade propriamente dita, com diferentes áreas de estudo, foi fundada na Itália, em Bolonha, em 1088, quando Anselmo tinha cinquenta e cinco anos. Seguiu-se-lhe a Universidade de Paris, fundada primeiramente em 1150, e a Universidade de Oxford, pouco depois.

Porque se aceita acriticamente a rejeição da cultura medieval promovida pelos modernos, a investigação filosófica e científica ocorrida desde o tempo de Anselmo até ao despontar do mundo moderno, por volta do séc. XVII, é muitas vezes negligenciada. Em 1328, por exemplo, o Doctor Profundus, Thomas Bradwardine (1290-1349), apresentou o primeiro tratamento matemático do movimento, no Tratado das Proporções ou sobre as Proporções das Velocidades no Movimento; e João Buridano (1300-1358) desenvolveu a teoria do ímpeto, crucial para o desenvolvimento da física. O primeiro modelo heliocêntrico do universo, por outro lado, não é um produto da cultura moderna: foi proposto por Nicolau Oresme (1320-1382). E as cartas de navegação, que teriam sido muitíssimo úteis aos gregos e romanos da antiguidade, surgiram igualmente em plena idade média, em 1270.

Anselmo em busca da compreensão

Anselmo teve um papel crucial no desenvolvimento da filosofia medieval, sendo considerado o primeiro escolástico — termo que ainda hoje, nas zonas mais débeis da cultura, é entendido pejorativamente, por influência dos modernos. Insistindo na importância da expressão clara e do rigor, Anselmo afastou-se definitivamente do misticismo neoplatónico, na altura dominante, com origem em Plotino (205-270).

Chegado a Bec, em 1059, Anselmo fez os seus votos monásticos e foi como monge que escreveu as obras que viriam a torná-lo influente e famoso durante séculos: Monologion (monólogo) e Proslogion (termo inventado por Anselmo, que afirma significar “discurso apresentado a outrem”).

O estilo das duas obras é bastante diferente, apesar de em ambos os casos se tratar de descobrir as razões a favor da crença em Deus. Porém, enquanto a primeira é uma argumentação directa, sem adornos, a segunda é como que uma oração, uma súplica a Deus para que este permita ao crente compreender a sua fé. Os títulos alternativos das duas obras são reveladores: à primeira deu Anselmo o título “Cânone para meditar sobre as razões da fé”; e à segunda “A fé em busca da compreensão”, uma expressão que colheu de Agostinho.

O argumento ontológico

Os medievais conheciam o argumento a favor da existência de Deus que Anselmo apresentou na segunda das obras mencionadas simplesmente como argumentum Anselmi: o argumento de Anselmo. Mas Kant chamou-lhe argumento ontológico, designação que se tornou comum.

O termo “ontologia” deriva dos termos gregos to on e ontos que significam aproximadamente “o que algo é” ou “o ser de algo”. O adjectivo “ontológico” é usado em filosofia para falar da natureza última das coisas, e o substantivo designa uma subdisciplina filosófica que trata de estabelecer as categorias mais gerais da realidade.
O argumento ontológico tem esta designação porque parte de uma reflexão sobre a natureza última desse ser hipotético a que chamamos Deus, e conclui, nessa base apenas, e sem apelar para quaisquer outros factos sobre a realidade, que esse ser existe. Este argumento contrasta assim com dois outros grupos de argumentos tradicionais a favor da existência de Deus, denominados “argumentos do desígnio” e “argumentos cosmológicos”.

O termo “cosmologia” poderá ser surpreendente neste contexto, se pensarmos apenas na cosmologia científica do séc. XX. Mas a cosmologia, enquanto teoria sobre a estrutura geral do cosmos, existia muito antes da recente cosmologia científica. Os argumentos cosmológicos a favor da existência de Deus pretendem concluir que Deus existe com base em certos aspectos da estrutura geral do cosmos.

Tanto os argumentos do desígnio como os cosmológicos partem de alguns factos sobre a realidade espácio-temporal e concluem que sem a hipótese de Deus não se consegue explicá-los adequadamente. Precisamente porque estes argumentos incluem informações empíricas, são denominados argumentos a posteriori. Isto contrasta com os argumentos ontológicos, cujas premissas podem ser conhecidas exclusivamente com base no pensa-mento, recebendo por isso a designação de argumentos a priori.

Redução ao absurdo

Há diferentes versões de argumentos ontológicos a favor da existência de Deus. A versão de Anselmo é um tipo de raciocínio já conhecido na Antiguidade grega a que se chama redução ao absurdo, ou reductio ad absurdum, em latim. Raciocinar ou argumentar por redução ao absurdo é partir do oposto do que queremos estabelecer e mostrar que dessa hipótese se conclui correctamente uma contradição: um absurdo. O que fizemos foi mostrar que aceitar tal hipótese obrigaria a aceitar uma contradição. Se agora quisermos rejeitar a contradição, teremos de rejeitar a hipótese de partida.

O cogito de Descartes pode ser apresentado como uma redução ao absurdo. Aceite-se a hipótese de que todas as minhas crenças são falsas: há um génio maligno que me engana constantemente. Daqui conclui-se correcta-mente que é falsa a minha crença de que existo. Mas para o génio maligno me poder enganar, para que eu tenha crenças falsas, é preciso que eu exista. Logo, é verdadeira a minha crença de que existo. Eis a contradição: fomos levados a concluir que uma mesma crença (“eu existo”) é verdadeira e falsa. Se agora quisermos rejeitar esta contradição, teremos de rejeitar a hipótese de partida: a hipótese de que todas as minhas crenças são falsas, sendo produzidas por um génio maligno que me engana constantemente.

Eis outro exemplo deste género de raciocínio. Imagine o leitor que o seu amigo crê que não há verdades: tudo é ilusão. Perplexo com tal posição, o leitor começa por aceitá-la, procurando mostrar que dela se conclui correctamente uma contradição, para então a negar. E isso não é difícil fazer, pois se não há verdades, é verdade que não há verdades. Eis a contradição: por um lado não há verdades, mas por outro é verdade que não há verdades. Para rejeitar esta contradição, o leitor nega a hipótese de partida, a crença do seu amigo de que não há verdades, e conclui que há verdades.

Refutar o insensato

Anselmo procura mostrar que o insensato bíblico, que diz no seu coração que Deus não existe (Salmos 14 e 53), também se contradiz, como o amigo do leitor. A natureza de Deus é tal que a hipótese da sua inexistência é contraditória. E que natureza é essa? Deus, considera Anselmo, é um ser de tal modo grandioso que não conseguimos conceber outro que seja ainda mais grandioso.

Anselmo formula esta ideia usando uma expressão que ficou famosa: Deus é o ser maior do que o qual nada pode ser pensado. Contudo, Anselmo não tem em mente a grandeza física, mas antes a grandiosidade, excelência ou esplendor. A ideia é que Deus é o mais excelente dos seres, ou o mais grandioso; tão grandioso, que a hipótese da sua inexistência implica uma contradição:
“Assim, mesmo o insensato tem de admitir que algo maior do que o qual nada pode ser pensado existe pelo menos no seu entendimento, dado que ele o entende quando o ouve, e o que é entendido existe no entendimento. E certamente que aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado não pode existir apenas no entendimento. Pois se existisse apenas no entendimento, poder-se-ia pensar que existia na realidade também, o que seria ainda maior. Logo, se aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado existe apenas no entendimento, então a própria coisa maior do que a qual nada pode ser pensado é algo maior do que o qual algo pode ser pensado. Mas isto é claramente impossível. Logo, não há dúvida de que o maior do que o qual nada pode ser pensado tanto existe no entendimento como na realidade”. (Proslogion, Cap. 2, p. 82)
O texto de Anselmo é maravilhosamente claro, preciso e directo, mas sofisticado. Acompanhemos o seu pensamento, passo a passo, com a mesma solicitude com que Anselmo percorreu mais de setecentos quilómetros em busca da compreensão.

O insensato admite que as pessoas pensam em Deus, ainda que este não exista realmente. Isto significa que Deus existe no pensamento ou entendimento, ainda que não exista na realidade. O mesmo se pode dizer de qualquer ficção: é algo que existe no pensamento ou entendimento do seu criador — um romancista, por exemplo — mas não existe na realidade. E é isto que o insensato pensa que é Deus: uma mera ficção.

Contudo, Deus é por definição aquele ser, seja ele qual for, exista ou não, que é tão grandioso que é impossível conceber outro que seja ainda mais grandioso. E o insensato aceita também esta ideia — apenas continua a insistir que esse ser é uma fantasia, não existindo na realidade.

Ora, é aqui que Anselmo desfere o seu golpe mortal. Se Deus existisse apenas no entendimento, poderia haver outro ser, exactamente como ele, mas que existisse também na realidade. Este ser seria certamente mais grandioso do que Deus, pois teria existência real, o que é certamente uma excelência.

Se virmos bem, chegámos a uma contradição. Isto porque admitimos que Deus é por definição o ser mais grandioso do que o qual nenhum pode ser pensado, e depois pensámos num ser mais grandioso do que Deus. Para negar esta contradição, rejeitamos a hipótese de partida: a ideia do insensato de que Deus, o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado, não existe. Logo, Deus existe.

Excerto do meu livro Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer (Bizâncio, 2011): versão tradicional e versão Kindle.



2 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

"admitimos que Deus é por definição o ser mais grandioso do que o qual nenhum pode ser pensado, e depois pensámos num ser mais grandioso do que Deus. Para negar esta contradição, rejeitamos a hipótese de partida: a ideia do insensato de que Deus, o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado, não existe. Logo, Deus existe."

Irrefutável. Contudo, nunca me interroguei sobre o que aqui se prova. A minha questão é outra e também tem a ver com a dimensão. E tem a ver com a dimensão, imensa, do tempo de resposta às preces... E, se tarda, de que vale existir? É que se ele (letra pequena) é infinitamente grande, também é infinitamente lento. Antes lamentava, hoje não o lamento, vou fazendo aquilo que muitos pedem a Deus que faça. É infinitamente pouco? Mas ou menos tenho prazo!

(vou voltar a ler o texto outra vez! Em textos felizes e densos, há sempre muito que à primeira nos escapa...)

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Gostei da explanação filosófica, atualíssimo Anselmo.

UM CRIME OITOCENTISTA

  Artigo meu num recente JL: Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestã...