Como defendo que os professores devem ser um
escol, a flor das nossas instituições de ensino e das profissões — acrescentada
do gosto e do talento para lidar com alunos com esta ou aquela idade —, fico
particularmente impressionado com os testes psicotécnicos a que agora são
obrigatoriamente submetidos para entrar (ou permanecer) nas malhas do ensino.
Aqui há uns anos (antes do Decreto
Regulamentar respetivo, o 26 de 2012) pediram-me que avaliasse um conjunto de
colegas, com uma condição: não metia o pé nas suas aulas. Há dois tipos de
avaliação do exercício docente: presencial e não presencial. A minha era do
segundo tipo.
Inteirei-me da forma como a coisa era feita:
havia uns formulários a preencher, com (e atente-se ao vocabulário)
«Dimensões», subdivididas em «Domínios», com «Descrição/Avaliação da Actividade
Realizada» (a atividade ainda tinha um «c») e, para rematar, «Evidências».
As Dimensões eram, afinal, (1)«Vertentes»:
vertente profissional, social e ética, (2)«Desenvolvimentos» (parte I):
desenvolvimento do ensino e da aprendizagem, (3)«Participações»: participação
na escola e relação com a comunidade educativa, e (4)«Desenvolvimentos» (parte
II): desenvolvimento e formação profissional ao longo da vida.
A primeira dimensão (só um bocadinho mais de
paciência, caro Leitor, que já começo o fogo de artifício propriamente dito)
refletia-se em três domínios: (1)«Compromisso com a construção e o uso do conhecimento
profissional», (2)«Compromisso com a promoção da aprendizagem e do
desenvolvimento pessoal e cívico dos alunos», e (3)«Compromisso com o grupo de
pares e com a escola».
A segunda dimensão (estamos quase…) incidia
em mais quatro domínios: (1)«Preparação e organização das actividades lectivas»
(os dois últimos «c» podem ser utilizados pelo Leitor numa ocasião de carência,
se assim o entender), (2)«Realização das actividades lectivas«, (3) «Relação
pedagógica com os alunos» e (4)«Processo de avaliação das aprendizagens dos
alunos». Os pontos 2 e 3 eram, por razões óbvias, excluídos da minha atuação
como avaliador sem presença na sala de aula.
A terceira dimensão (está a escaldar!…) versava os três domínios seguintes: (1)«Contributo
para a realização dos objetivos do Projecto Educativo e dos Planos Anual e
Plurianual de Actividades», (2) «Participação nas estruturas de coordenação
educativa e supervisão pedagógica e nos órgãos de administração e gestão» e (3)«Dinamização
de projetos de investigação, desenvolvimento e inovação educativa e sua
correspondente avaliação».
A quarta dimensão tinha de ser… o tempo!:
«Formação contínua e desenvolvimento profissional».
Como é que eu lidava com isto tudo? Ora bem:
Cada um dos domínios era esclarecido por indicadores e descritores (de que vou
dar um exemplo mais adiante), premiado com uma quantificação e — coisa
importante — fundamentado por uma evidência (mais uma vez a linguagem). A
«evidência» é o fenómeno com existência física comprovada: não basta afirmar
«vi uma senhora com doces olhos que se dirigiu a mim num clarão de luz e me
interpelou dizendo "António, são 5 horas e 58 minutos, menos uma hora nos
Açores, e presta atenção ao que te vou confidenciar"». É necessário captar
a senhora em vídeo e passar pela secretaria da escola para dar veracidade à
gravação. O professor afirma que em novembro fez uma ação de formação no
Instituto Superior Técnico tendo saído de lá com um doutoramento numa área da
engenharia de materiais? Sim senhor, mostre lá o canudo. Fez uma visita de
estudo com os alunos de Sociologia à Disneyland
de Paris? Ok: exiba os bilhetes e os bonés do rato Mickey.
Vamos, então, aos descritores; pego logo no segundo,
e adiantemos serviço: trata-se do «Desenvolvimento do ensino e da aprendizagem».
São listados indicadores: «Correcção científica, pedagógica e didáctica da
planificação das actividades lectivas», «Planificação do ensino de acordo com
as finalidades, as aprendizagens previstas no currículo, a rentabilização dos
meios e recursos disponíveis e a articulação curricular». Os descritores e os
níveis de desempenho respetivos são estes:
(1)«Planifica as actividades lectivas com correcção científica,
pedagógica e didáctica, demonstrando uma articulação lógica e coerente dos
diferentes domínio curriculares — Excelente»;
(2)«Intermédio — Muito Bom»;
(3)«Planifica as actividades com correcção científica, pedagógica e
didáctica — Bom»;
(4)«Intermédio — Regular»;
(5)«Demonstra graves inconsistências na planificação, sem articulação
evidente dos diferentes domínios» — Insuficiente.
Topam?
Vá lá; mais um para o caminho, que está
frio: desta vez sobre o «Processo de avaliação das aprendizagens dos alunos».
Os indicadores: «Desenvolvimento de actividades de avaliação das aprendizagens,
para efeitos de diagnóstico, regulação do processo de ensino e avaliação e
certificação de resultados», «Promoção de processos de auto-regulação nos
alunos que lhes permitam apreciar e melhorar os seus desempenhos». E,
novamente, os descritores e níveis:
(1)«Mobiliza diversas modalidades de avaliação (diagnóstica,
formativa, sumativa, auto-avaliação) com regularidade, adequação e rigor,
construindo e aplicando instrumentos de avaliação diversificados e
representativos dos critérios de avaliação definidos em departamento curricular
e aprovados em Conselho Pedagógico — Excelente»;
(2)«Intermédio — Muito Bom»;
(3)«Mobiliza diversas modalidades de avaliação (diagnóstica,
formativa, sumativa, auto-avaliação) com regularidade, adequação e rigor,
construindo e aplicando instrumentos de avaliação representativos dos critérios
de avaliação definidos em departamento curricular e aprovados em Conselho
Pedagógico — Bom»;
(4)«Intermédio — Regular»;
(5)«Mobiliza com incorreções graves as modalidades de avaliação» —
Insuficiente».
Pescam?
Vamos, então, à pirotecnia: o resultado de todo
este processo é que o professor avaliado nunca poderia ter nota superior a Bom.
Porquê? Porque não existia avaliação presencial.
Assim sendo, o que poderia acontecer? Que
qualquer indivíduo inteligente poderia recolher, de entre o programa aprovado e
meia dúzia de sugestões dadas pelos próprios livros adotados — com a respetiva
ganga de orientações para a planificações de aulas, execução de testes e
fichas, e receituários variados —, a estrutura do seu relatório final; esta
seria facilmente verificável pelos sumários e avaliações sortidas feitas aos
alunos. Claro, também estaria alinhado com os critérios de avaliação da escola.
Imaginemos, agora, que este professor produzia turmas com resultados medianos
que, em exame, se iam abaixo com «os nervos» (surgem como nos bifes: quando são
examinados). Somente o relatório, fechado antes dos exames, nada tinha a ver
com eles. O Bom seria o máximo: 7,9 em 10.
Ao lado, um colega mais descuidado gizaria,
à última hora, um relatório feito à pressa, com uma ou outra falha na descrição
da atividade, com ausência desta ou daquela evidência ou, simplesmente, lapsos
de memória. Baseando-se na sua boa intuição ou na experiência de anos
anteriores, produzia a sua planificação de aulas por grandes blocos soltos, sem
registos minuciosos. Seja, no entanto — por hipótese —, que produzia turmas com
resultados igualmente medianos mas que, em exame, superavam a classificação
interna da frequência, fazendo aquilo que se designa por «brilharete». O Bom
seria inferior, porque o relatório, que foi entregue antes dos exames, estava
bem redigido, mas apresentava deficiências: digamos, 7 em 10.
Vamos admitir que o professor avaliador fez
o seu trabalho com correção, de acordo com as boas práticas, definidas pelo
ministério, que a escola lhe transmitiu. Em agosto, adormecia, prazenteiro,
numa espreguiçadeira algarvia, beirã, ou transmontana (só a espreguiçadeira é de rigueur), aliviado por se ver livre
de critérios e tabelas que, muito simplesmente, estava longe de poder
verificar: era-lhe vedada a entrada numa sala de aula dos colegas avaliados;
nunca os viu ensinar e avaliou-os a partir de paleio de sanzala; enfim, perdão:
baseando-se em relatórios de atividade.
O professor medíocre e cuidadoso safou-se
com 7,9; o professor excelente mas menos atento à papelada ficou pelos 7. O
palerma é o segundo, que não se precaveu e fez um relatório assim-assim. Ora o
relatório é que era avaliado (ó palerma!). A comunidade respira fundo: tudo
está bem.
Agora, a confidência, a fechar a estória: resolvi o problema cumprindo a
lei, mas atribuindo, de acordo com os visados, a mesma nota aos avaliados que
cumpriram o guião — e foram todos. Sei, por portas e travessas, que eram
diferentes como professores, mas não sou abelhudo ao ponto de ter arranjado
maneira de urdir um inquérito paralelo para fazer a folhinha a eventuais
patifes, levando os outros à glória. Nada disso transparecia proporcionalmente,
de qualquer forma, nos relatórios entregues.
Era aquela a bambochata que o ministério
encomendara, e teve.
Não serviu para nada.
O Bom, de qualquer forma, foi passado por
inerência do cargo a milhares de professores antes disso; limitei-me a produzir
mais uns quantos. Não voltei a ser solicitado — se calhar — porque as notas
todas iguais irritaram alguém.
A novidade, agora, é os psicotécnicos!
Nunca uma alma, em ministério de que eu me
lembre, cuidou de estabelecer uma estrutura de ações de formação rotineiras,
para grupos inteiros das escolas, sobre didáticas das disciplinas ensinadas.
Não se tornava necessário para quem, em tempos, emergia de um estágio
pedagógico tradicional (isso era feito, longamente, lá dentro), mas é
absolutamente necessário hoje, se o professor saiu de uma dessas trapalhadas
que por aí há a «formar» professores (acreditadas por sucessivos ministros).
Não é feito, mas é feita uma espécie de
testezinhos psicotécnicos como expediente para verificar capacidades
perfeitamente elementares, lógicas e de expressão na língua materna. Como dizia
Carlos Fiolhais nestas
páginas, «para excluir os supostamente piores».
Ora o ensino público nacional tem considerável
qualidade, apesar das deficiências todas que se lhe aponta (ao sistema, à
formação e seleção de professores, às condições materiais de funcionamento, à
gestão do curriculum e dos programas,
e por aí fora). Essa qualidade é-lhe emprestada, unicamente, por um corpo
docente empenhado que continua a sustentar tão bem como pode, com dedicação aos
alunos, com brio profissional, e com uma paciência notável, toda a casta de
asneiras que sucessivos ministérios põem de pé.
Retire-se-lhe uma resma de papéis idiotas da
frente substituindo-a por uma boa ação de formação sobre as matérias que ensina
diariamente, e logo se verá o professor a bendizer o tempo empregue, em vez de
maldizer a vida e a burocracia. Mas é mais fácil fazer testezinhos manhosos do
que didática.
O presente ministério, na sua prática
corrente, desvaloriza algumas das boas medidas tomadas com um comportamento
geral de espertice saloia: sim, vai apanhar os professores impertinentes num
ardil de testezinhos manhosos; sim, vai promover uma cultura da «utilidade»,
reforçando os conteúdos que, «realmente», servem para alguma coisa; sim, vai desfazer-se
dos projetos de investigação que gastam dinheirinho público sem gerar retorno
aparente imediato (castigando e premiando os projetos de investigação «como um
mestre-escola do antigamente», no dizer de José Vítor Malheiros, citado
no De Rerum Natura); sim, vai
regular-se por uma enérgica política de avaliação de resultados, transferindo
para instituições de ensino critérios do mundo empresarial. Sim, vai pôr Baião
a falar Inglês, porque Baião, assim, fica melhor. Diz quem? Diz quem sabe. Holy
Cross of the Douro - Bayou terá a sua EQ Foundation, claro (correspondendo i-quiu a um escritor inglês do século
19 chamado, por extenso, Eça de Queirós: escreveu King Solomon's Mines). No restaurante, o arroz de favas é divino (divine)!
O ministério da educação (assim, com letra
minúscula) consegue ser sempre igual a si mesmo, por mais que mudem os
ministros, porque estes, de conluio com aquele, entendem que devem legislar com
mão alvar pondo-se, de seguida, à espreita, em vez de fazerem o seu trabalho — resolvendo.
Os professores precisam de boa formação, não
de chicanes.
Se o ministério se sujeitasse aos seus
próprios critérios de avaliação de figurino empresarial, estaria despedido em
dois dias.
Ah: e com justa causa!
António Mouzinho
2 comentários:
Caro António Mouzinho.
Fantástico este seu texto. Vou colocá-lo no meu blogue (www.docaosaocosmos.blogspot.com), com a devida identificação, como é óbvio
Em tempos, um texto meu "tocou" neste blogue, em algumas das mesmas teclas.http://dererummundi.blogspot.pt/2011/12/exceliocres-ou-mediocrelentes.html
Regina Gouveia
"É preciso maior credibilização dos exames, os quais, no actual sistema, são tardios, só dizem respeito a algumas disciplinas e não são, em geral, bem feitos."[Carlos Fíolhais - A Ciência em Portugal; FFMS]
Um reparo ao texto do post: Não obstante a realidade dos exames feitos pelos alunos, o senhor professor António Mouzinho, deixa a ideia, errada, de que existem professores (os medíocres) que inflacionam as notas internas dos seus alunos como forma de esconder o seu mau desempenho. Que é depois o exame, (que ironicamente será a prova das provas) a encarregar-se de desmascarar tudo ao atribui o «brilharete» dos alunos, ao professor excelente, e os «nervos» (a desculpa de mau perdedor!) mais não é que o resultado certeiro que vem confirmar o professor medíocre! e tudo isto, pasme-se! num sistema de exames que é mal feito como se sabe! (se os exames não são bem feitos, também não servem para avaliar os alunos, já considerá-los como elemento para ajuizar o mérito de um professor é um desastre, não devia ser assim professor António Mouzinho?).
Cumprimentos,
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