terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Hã!?!

Hoje o jornal Público avança com a notícia de que o governo inscreveu no programa de financiamentos europeus cerca de 60 milhões de euros para subsidiar a passagem de 1200 investigadores (o número parece ter sido deduzido pelo autor da peça) dos centros de investigação para as empresas. A notícia merece ser lida pela admirável sequência de raciocínios básicos que revelam que ninguém foi perguntar nada a ninguém e alguém achou que esta era a medida lógica de tomar. Isto para não acusar as pessoas de estarem a jogar na plausibilidade. Como, pelo que se retira da notícia, a coisa ainda está por ser lançada e na esperança que o alguém que não foi perguntar a ninguém leia pelo menos estas palavras, cá vai. 

Perante o cenário que o programa de subsidiação passe pela comparticipação estatal dos salários dos doutorados durante um ano ou dois, como indica a notícia, passa-me pela cabeça que o promotor pense que esta coisa de contratar doutorados seja como comprar telemóveis. Só assim percebo a promoção do tipo contrato de fidelização de operadora: leva por um preço de amigo durante uns tempos e, depois, quando já estiver dependente dele, volta ao custo inicial. Se quiser armar-se em esperto, temos aqui um contrato de fidelização em que não pode deitar fora o "equipamento".   O que isto revela de preocupante nem é o completo desconhecimento daquilo que está em causa, mas o facto de parecer uma medida tomada por ser plausível, no sentido em que o eleitor que não queira aprofundar "come" isto como bom. E isso eu não quero admitir que seja verdade por isso cá vai a sugestão para ver se ajuda.

Um investigador doutorado é, para uma empresa, um candidato com mais cursos e mais velho. Esse é o ponto de partida pelo qual qualquer racional cujo objectivo seja integrar pessoas com essa qualificação numa empresa. O resto vem pela natureza da relação económica, as empresas que dão mais valor darão mais ao empregado que, se quiser dar valor ao que faz, também dará valor à empresa. Aquilo no qual o estado se deve preocupar é no ponto de partida. E o ponto de partida não é nada fácil de resolver. Mesmo nada. Por isso gostava de transmitir a esse "alguém" enquanto empregador que sou, de investigadores doutorados que sou e investigador doutorado que também sou.

E a primeira observação lógica (na minha lógica, pelo menos) é "se os doutorados têm valor para as empresas porque é que não estão já nas empresas?".  A primeira razão directa está no elevado custo associado a um investigador. Já sei que me vão responder que as bolsas são isto e aquilo, que nem é assim tanto dinheiro que levam para casa, mas podem fazer a conta ao triplo. O triplo do que levam hoje para casa é quando têm que valer no dia em trabalharem numa empresa e só a contar com impostos que os investigadores e a empresa têm que pagar como qualquer trabalhador. Como dificilmente um investigador vai valer isso numa empresa, até hoje há muito poucas transferências do mundo da investigação académica para o mundo empresarial. O primeiro investidor na transferência tem que ser o próprio investigador. 

A segunda é que nem tudo é útil e práctica académica no abstracto não serve para nada. Saber escrever papers, os truques que se usam para convencer os referees, as contagens de publicações, de citações, o acumular conferências, arguências, etc., tudo isso serve para ocupar espaço administrativo, mais nada. E investigação em "História das Ciências Homeopáticas" não tem préstimo nenhum. É verdade que o primeiro passo teria sido não financiar investigação cujos investigadores não tivessem uma valia económica futura? Talvez sim, talvez não. Mas o facto de não valerem nada hoje significa que a conclusão é a mesma, o primeiro investidor tem que ser o próprio investigador.

Por isso, eu compreendo e concordo com o princípio geral. Investigador não é profissão, profissão é investigar nalguma coisa com valor. Ou para ensinar ou para produzir. Peguem no dinheiro e usem-no para bolsas de doutoramento em empresas (não sei se a FCT se lembra de me negar a minha  por eu ser administrador...), para reintegrar as pessoas, para lhes repor parte dos direitos sociais que lhe sonegaram, para reduzir os montantes das bolsas, o que quiserem. Mas só há uma razão para que as empresas não tenham ido buscar os investigadores aos centros: não vale a pena. E só há uma maneira de valer a pena, tem que haver investimento dos investigadores. Um ano a pagar metade? A sério? Acham que isso vai fazer com que as pessoas valham aquilo que custam hoje?


4 comentários:

Mário Figueiredo disse...

Texto muito interessante, embora eu discorde de alguns pontos. Em particular, a frase "Investigador não é profissão, profissão é investigar nalguma coisa com valor" coloca a questão óbvia de como definir "valor". O termo "valor" pode ter sentido económico, mas também científico, cultural, social (e outros). Mais, pela próprio natureza da investigação, é frequentemente impossível saber a priori se aquilo que se investiga vai ou não ter "valor" no futuro. Nunca é demais lembrar a famosa frase de Heinrich Hertz, quando questionado acerca da aplicabilidade prática das ondas electromagnéticas: "It's of no use whatsoever".

É claro que há temas obviamente sem qualquer "valor", sendo que o exemplo das "Ciências Homeopáticas" é certeiro; de facto, a expressão "Ciências Homeopáticas" é uma contradição em termos.

Finalmente, gostava de apontar para o que me parece ser um muito interessante programa para estabelecer pontes entre a academia e as empresas: http://www.innovationfiles.org/what-the-u-s-can-learn-from-denmarks-industrial-phd-program/

Mário Figueiredo.

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João Pires da Cruz disse...

Obrigado Mário.

As "ciências homeopáticas" era uma figura para provocar o David Marçal. Mas a expressão serve para abranger vários temas que vi financiados em muitos centros (demais) na última avaliação da FCT. Sim, a academia portuguesa está cheia de pseudo-ciência.

Valor é aquilo que o Mário quiser. E se tiver dinheiro para isso até pode decidir o que é valor para os outros, oferecendo à comunidade aquilo que acha que vale. Quando o dinheiro é dinheiro que nós damos para os pobres, como o dinheiro público, então o melhor é ver se o resto dos contribuintes dão o mesmo valor que nós. Se não dão, o melhor é assumir que não vale nada...

Finalmente, o programa dinamarquês. Eu já não pedia tanto. A minha empresa está a lançar um semelhante, em Portugal e no UK, para trabalhadores. Isto é, as pessoas retiram da sua vida profissional aquilo que é prático mostrando-se valiosos em termos económicos e a empresa paga o doutoramento na universidade em temas fundamentais, ao mesmo tempo. Difícil? Há quem consiga, por isso... Isto para dizer que programas como o dinamarquês são infinitamente mais interessantes que pegar nos miúdos e oferecer-lhes uma vida de fome quando tiverem 40 anos e zero de experiência prática. Mas os responsáveis pelos programas que perguntem a quem já faz!

Anónimo disse...

Nao ficava mais barato (custo 0 na verdade) acabar com a exclusividade dos bolseiros, permitindo-lhes por exemplo serem empresários?

João Pires da Cruz disse...

Ou usar esses 60 milhões como apoio a criação de empresas. Sim.

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