domingo, 18 de janeiro de 2015

O ESTUDO DOS SOLOS

Uma caminhada de dois séculos a recordar no Ano Internacional dos Solos. 

Entretidos com outros temas e outras notícias mil vezes mais “interessantes”, os media deixam para trás a celebração de 2015 como Ano Internacional dos Solos, declarado na 68ª Sessão da Assembleia Geral da Nações Unidas, reunida em 2013. São muitos, mesmo entre os responsáveis da administrações, os que andam esquecidos de que estamos cada vez mais dependentes de um recurso fundamental à sobrevivência da humanidade neste nosso “Planeta Azul”. Só os media podem dar voz suficientemente alargada aos avisos dos pedólogos e de outros investigadores focados no conhecimento do solo. Infelizmente ainda são muitas as decisões que utilizam mal, degradam, ou mesmo, destroem este recurso natural a um tempo grandioso e frágil. 

Vem de longe o interesse do Homem pelo solo. Desde que se sedentarizou e iniciou o cultivo da terra, que esta película superficial das terras emersas passou a ser para ele um bem a utilizar e defender. Assim, o conhecimento do solo, em especial o ligado ao seu uso agrícola, não parou de crescer. No entanto, foi só no início do século XIX que o estudo deste recurso natural passou a figurar entre as preocupações científicas. Data de 1809 o primeiro livro da obra em quatro volumes, Grundsätze der rationellen Landwirthschaft, da autoria do botânico alemão Albrecht Daniel Thaer (1752-1828), considerado um dos fundadores da ciência do solo. Na mesma época, o português Abade Correia da Serra (1750-1823), diplomata e cientista de renome, que colaborou com o Duque de Lafões na fundação da Academia das Ciências de Lisboa, amigo pessoal do Presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, trabalhou e publicou neste país, em 1811, "Observations and conjectures on the formation and nature of the soil of Kentucky". Entretanto, em Portugal já se afirmava a preocupação de classificar “terras ou chãos”, a fim de resolver os problemas relativos ao seu melhor uso. Prova-o o trabalho do luso-descendente, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), “Memórias sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques em Portugal, particularmente de pinhais nos areais da Beira-Mar, seu método de sementeira, costeamento e administração”, publicado em 1815. 

A primeira abordagem à classificação dos solos teve por base algumas das suas características físicas, como a textura ou a cor, e composicionais, em especial a presença ou ausência de carbonatos e de matéria orgânica. Outras propostas de sistematização neste domínio ficaram testemunhadas em várias classificações desenvolvidas, sobretudo, na Alemanha, ao longo do século XIX, quase todas ligadas à composição litológica do substrato, como é, entre as mais divulgadas, a de Ferdinand Freiherr von Richthofen (1833-1905), “Fühurer für Forschugsreisende”, publicada em Berlim, em 1866, na qual se distinguem “solos residuais” (rocha desagregada e rocha alterada) e “solos de acumulação” (aluviais, eólicos, glaciários, cinzas vulcânicas, entre outros). 

Cerca de duas décadas mais tarde, na Rússia, o geógrafo Vasili Vasilieviych Dokutschaiev (1846-1903) defendia a ideia segundo a qual as variações geográficas dos diversos tipos de solo dependiam não só de factores geológicos, mas também de factores climáticos e topográficos e, ainda, da duração do processo pedogenético. Este geógrafo, lembrado por muitos como o “pai da pedologia”, foi o primeiro a considerar o solo como um corpo natural, com um começo e uma história que se pode desvendar, cujas características são previsíveis se se conhecerem os agentes que actuaram ou actuam sobre ele. Dokutschaiev orientou as suas investigações no sentido do conhecimento da origem e evolução do solo, tendo concebido, em 1879, a primeira classificação genética, na qual distinguiu “solos normais”, “solos anormais” e “solos de transição”, com base em correlações que estabeleceu entre esta entidade natural e as condições ambientais e não na simples descrição das suas características (cor, textura, composição, natureza da rocha-mãe) directamente observáveis. Quatro anos depois definiu os tipos de solo chernozem, podzol e ”, “podzol” e “gley. ”, desde então, aceites internacionalmente. Tendo sido pioneiro no estudo da distribuição geográfica dos diferentes tipos de solo, abriu o caminho à elaboração dos primeiros mapas de solos. 

Outras propostas da escola russa, nomeadamente, as de Leonid Sibirceff (1898), Konstantin Dimitrievich Glinka (1914) e Sergei Sdemenovich Neustruev (1927), têm em atenção o clima e a vegetação e estão marcadas por uma filosofia naturalista, o que aproximou a pedologia do campo das ciências naturais. Nitidamente inspirada na concepção precursora de Dokutschaiev, a classificação de Sibirceff acentua a ideia da zonalidade dos solos, separando-os em “solos zonais”, “solos azonais” e “solos intrazonais”, numa proposta que estabelece um paralelismo muito vincado entre os solos e os climas das respectivas regiões, ainda em uso nos dias de hoje. 

A importância do factor climático continuou a ganhar terreno entre os pedólogos europeus da primeira metade do século XX. No mesmo período assumia particular desenvolvimento a química do solo, quer a da componente mineral, quer a da componente orgânica, bem como as relações existentes entre elas. Entretanto, Konstantin Glinka desenvolvia o conceito de maturidade do solo, ao mesmo tempo que se interessava pelo estudo dos perfis ou horizontes pedológicos definidos por uma sucessão de níveis, mais ou menos diferenciados. A partir de então foram muitas as classificações dos solos propostas por autores russos, alemães, americanos, ingleses e franceses, algumas delas juntando vários tipos de critérios baseados nas muitas vertentes de uma ciência em franco desenvolvimento. 

Deve-se ao americano Cutis Fletcher Marbut (1863-1935), geólogo de formação e discípulo de Glinka, a introdução do conceito geológico de solo, que passou a ser entendido como uma película superficial da crosta emersa, definida como natural, complexa e dinâmica, constituída por elementos minerais e orgânicos, caracterizada por incluir vidas vegetal e animal próprias, sujeita à circulação do ar e da água e que funciona como receptora e redistribuidora da energia solar. 

A proposta de classificação de Marbut, publicada em 1927, definiu dois grandes grupos de solos: os “pedalfers”, ricos em hidróxidos e óxidos de alumínio e ferro, próprios de regimes climáticos quentes e de grande pluviosidade, e os “pedocals”, ricos em carbonato de cálcio, formados em regimes xéricos, isto é, marcados por alguma secura. Estes dois grandes grupos representam solos maduros, que se integram nos solos zonais dos pedólogos russos. Curiosamente, Marbut não considerou os solos incipientes ou pouco evoluídos, menos interessantes em termos de aproveitamento agrícola e que são os que menos se afastam das respectivas rochas-mães. 

Pela proximidade e pelo interesse que tiveram entre nós, é justo lembrar o trabalho do botânico espanhol Emilio Huguet del Villar (1871-1953) que, no seu livro Geobotanica y Suelos de la Peninsula Luso-Iberica (1937), apresentou, pela primeira vez, uma chave dicotómica para a classificação dos solos. Ainda próximo de nós, francófonos por tradição, os pedólogos franceses Henri Erhart (1898-1982) e Phillipe Duchaufour (1912-2000) são referências a não esquecer: Erhart com o seu tratado em dois volumes, Pédologie Général (1935) e Pédologie Agricole (1937), e Duchaufour com L’évolution des sols. Essai sur la dynamique des profils (1968) e do Précis de Pédologie (1965). 

Em Portugal, a então Junta Autónoma das Obras de Hidráulica Agrícola iniciara, em 1927, a elaboração das cartas de solos e de aptidão das terras para a agricultura, nas quais foram utilizados os métodos do russo Glinka e do americano Marbut e, em 1935, Luís Bramão publicava A classificação dos solos da Campina de Faro sob o ponto de vista da sua aptidão para o regadio. Pouco tempo depois, este engenheiro agrónomo foi, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura, para a Universidade de Cornell, em Ithaca, Nova Iorque, onde obteve o mestrado com o trabalho Génese, Classificação e Cartografia dos Solos. Já como investigador da Estação Agronómica Nacional, prestou assistência no Brasil em trabalhos de cartografia, génese e classificação dos solos. Encarregado de organizar e chefiar o Departamento de Solos desta nossa instituição e aí iniciar os trabalhos conducentes à realização da Carta dos Solos de Portugal, Luís Bramão acabou afastado das suas funções por motivos políticos, o que, em 1949, lhe abriu as portas da Pensylvania State University e do United States Geological Survey, onde trabalhou na génese, morfologia, classificação e fertilidade dos solos. Foi então contratado pela Food and Agriculture Organization (FAO), das Nações Unidas, para o vasto programa da classificação e cartografia dos solos à escala do planeta. 

Na mesma época, Joaquim Vieira Botelho da Costa (1910-1965) concluía o doutoramento pela Universidade de Londres, com a tese The study of soil moisture relationship by freezing point method with special reference to the wilting coeficient of the soil. Este que foi ilustre professor do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, apresentou, em 1952, a sua própria classificação dos solos, na obra Caracterização e Constituição do Solo, com uma sexta edição, em 1999, pela Fundação Calouste Gulbenkian, na qual valorizou o que de mais significativo havia nas múltiplas propostas em discussão. 

Na segunda metade do século XX assistiu-se à valorização das características morfológicas do solo, observáveis directamente no terreno, complementadas por ensaios laboratoriais, progressivamente mais sofisticados. Nesta linha, o pedólogo francês Henri Erhart recuperava a ideia de interpretar o solo como um processo geológico, publicando, em 1956, o artigo que fez escola entre geógrafos e geólogos, “La genèse des sols en tant que phénomène géologique:Esquisse d'une théorie géologique et géochimique, biostasie et rhexistasie”, com uma 2ª edição em 1967.

Entretanto os Serviços de Cartografia dos Solos dos Estados Unidos da América davam concretização a um programa de cooperação científica internacional, com vista à criação de uma classificação dos solos à escala global, colaboração que se continuou, mais tarde, no âmbito da (FAO), visando a protecção dos solos e o grave problema da alimentação, a nível mundial. O Mapa dos Solos do Mundo (Soil Map of the World), na escala de 1/5 000 000, surgido em 1974, e os textos explicativos que o acompanham constituíram uma base uniformizada de entendimento entre os pedólogos de todo o mundo. 

Ao mesmo tempo, no então Serviço de Reconhecimento e de Ordenamento Agrário (SROA) decorria o levantamento da Carta dos Solos de Portugal, na escala de 1/50 000, realização acompanhada, a par e passo, por um trabalho de investigação pioneiro, de que resultou a publicação, em 1974, de «A classificação dos Solos de Portugal», da autoria do Engº. José Carvalho Cardoso (1923-2010). Anos mais tarde, em 1990, era publicada a Carta dos Solos de Portugal, na escala de 1:500 000, da autoria dos Engos. M. Soares da Fonseca e M. O. Branco Marado, do Instituto Nacional de Investigação Agrária (INIA), a que se seguiu a divulgação, pelos mesmos autores, em 1991, do “Enquadramento das Unidades Taxonómicas da Classificação da Comissão Nacional de Reconhecimento e Ordenamento Agrário do Instituto Nacional de Investigação Agrária, na Legenda da FAO”, editado em texto policopiado, Instituto Nacional de Investigação Agrária, do Centro Nacional de Reconhecimento e Ordenamento Agrário (CNROA), publicado em 1991.

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