domingo, 4 de janeiro de 2015

O problema da escolha curricular

Em comentário ao texto Levar o latim às escolas, o leitor Carlos Pires faz notar que não é apenas a área disciplinar da Cultura e Línguas Clássicas que corre o risco de ser afastada ou desvirtuada nos sistemas de ensino, a História e a Filosofia correm igual risco. Acrescento, todas as Artes. E, acrescento, também, as vertentes das Ciências para as quais não se vislumbre (um certo tipo de) funcionalidade.

Entendo que o problema da escolha curricular não está tanto numa preferência pelas Ciências em detrimento das Humanidades e das Artes, mas no "valor do conhecimento" que guia.

Efectivamente, a análise curricular deixa perceber a falta a referência ao seu "valor intrínseco". Saber por saber, porque o saber existe, é uma ideia ausente das directrizes e orientações para os vários patamares e vertentes de escolaridade. Sobressai o seu "valor instrumental" ou, melhor, uma vertente deste: a que remete para a resolução de situações familiares, do dia-a-dia, muitas delas ligadas ao mundo laboral (em detrimento da que remete para o desenvolvimento de capacidades de pensamento, traduzidas, naturalmente, em acção).

A relação entre estes dois tipos de valor não tem ser de ordem antinómica: o conhecimento a que se imputa "valor em si" não exclui o conhecimento a que se imputa "valor instrumental" e vice-versa. Porém, não é isso que tem acontecido. Como consequência de uma "batalha" sem sentido, em que muitos ficam a perder, o valor instrumental (sobretudo de carácter social e pessoal) tem sido imposto. Imposição que, verdade seja dita, tem tido um acolhimento muito confortável por parte da comunidade em geral e dos educadores em particular. Sinais dos tempos, sem dúvida.

Nesta linha, tem-se entendido que são as Ciências que melhor cumprem tal desígnio e daí a sua sobreposição relativamente às Humanidades e às Artes, mas, aprofundando, vemos que elas têm sido depuradas em função desse tipo de valor. Mais: se dermos a mesma atenção às duas outras áreas vemos que a sua legitimação passa igualmente pela função social e pessoal que possam ter. Parafraseando Manuel Rocha, as Humanidades e as Artes servem para tudo menos para aprender Humanidades e Artes.

Esta nota a propósito da reintrodução do Latim em diversos sistemas de ensino. Estou de acordo com isso, claro; neste blogue há muito que manifesto preocupação pelo seu afastamento do currículo. Mas a razão que vejo invocada é sobretudo a da "serventia": o Latim ajuda a escrever melhor e a estruturar o pensamento e isso permite aos países e às escolas obterem melhor posição nas avaliações externas e internas. É uma razão muito redutora e, confesso que não me agrada que apareça sozinha.

Mas não são apenas os responsáveis por políticas e medidas educativas que despertam para os milagres que esta língua possa fazer, os pedagogos, os psicólogos e os neurocientistas acompanha-nos e passam a reconhecer-lhe facetas terapêuticas e de desenvolvimento da inteligência (um artigo interessante sobre esta tendência pode ser lido aqui). Ainda que somando esta razão àquela, continuo a considerar que falta reconhecer uma vertente valorativa fundamental ao conhecimento clássico.

E a todo o outro conhecimento, bem entendido...


4 comentários:

Francisco Domingues disse...

No entanto, devemos render-nos ao pragmatismo, resumido numa frase redutora: "Um curso que não dá emprego não interessa". É redutor mas pragmático. Não vivemos de ideias! E, citando JC: "Não adianta pregar a estômagos vazios". Enfim, ciência e conhecimento, sim, mas que possam alimentar o estômago...

Carlos Pires disse...

Sempre houve pessoas a preferir o valor instrumental do conhecimento ao seu valor intrínseco e que desprezavam conhecimentos que não lhes pareciam ter utilidade. Aristóteles começou a Metafísica dizendo que todos os homens desejam naturalmente saber, mas sempre houve muitos contra-exemplos a esse "todos". O que parece ser novidade é o facto de a maioria das pessoas com poder para tomar decisões com alcance educativo pensarem desse modo.

Jaime Carvalho e Silva disse...

Não concordo em que se diga que "o valor instrumental (sobretudo de carácter social e pessoal) tem sido imposto. Imposição que, verdade seja dita, tem tido um acolhimento muito confortável por parte da comunidade em geral e dos educadores em particular." A matemática, as ciências e a tecnologia são sempre o primeiro alvo de tais críticas, sem se querer conhecer o que realmente defendem cientistas e educadores dessas áreas, muito menos dando importância ao que dizem e escrevem. Mas quando são as próprias universidades a dar exemplo da falta de diálogo e conhecimento das diferentes áreas, promovendo raras ações em comum, então é normal que se aceitem frases tão redutoras como as que citei (e poderia citar de muitos outros locais, sobretudo a nível da comunicação social).

Anónimo disse...

Tem que se colocar toda esta questão em termos diferente.
- Será que as pessoas querem tornar-se máquinas ou permanecer humanos?
Após uma resposta esclarecedora a esta questão todas as outras serão automáticas. Estamos perante uma encruzilhada evolutiva, se haverá escolha real ou não , essa é outra questão!

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...