Meu artigo no n.º 51, que acaba de sair, da revista do SNESUP:
A
ciência não é apenas o conhecimento do mundo, é também o método através do qual
se adquire esse conhecimento. E a ciência é ainda o conjunto de valores que
preside à aplicação desse método. No exercício da ciência, o conhecimento novo
emerge por aplicação de um método bem conhecido, no quadro de um sistema de
valores consensual. A comunidade científica deve velar para que o método seja
bem aplicado e para que os valores comuns sejam respeitados. A chamada
“avaliação por pares” serve para apurar a validade dos resultados da ciência.
Mas serve também para assegurar o melhor desenvolvimento da ciência, por
exemplo atribuindo bolsas de doutoramento ou pós-doutoramento aos melhores
candidatos e apoiando as unidades de investigação de acordo com a sua
comprovada produtividade científica. Para que a ciência possa florescer, é
preciso que a sociedade apoie os cientistas e as suas instituições, sendo a cultura
científica o cimento que permite ligar os cidadãos aos cientistas e à
investigação.
Nos
últimos 20 ou 30 anos a ciência ganhou uma escala nunca vista em Portugal.
Graças a um forte impulso no investimento, muitos jovens talentosos vieram para
a ciência, com o apoio de bolsas, e estabeleceu-se um sistema de avaliação
internacional dos centros de investigação, baseado em visitas aos centros. A
cultura científica foi-se difundindo. No entanto, aprendemos todos nos últimos
anos, decerto com mágoa, que o desenvolvimento da ciência em direcção aos
padrões europeus que se vinha a verificar não era um dado adquirido. As bolsas
diminuíram inesperadamente e a avaliação de unidades passou
incompreensivelmente a ser mal feita. O inimaginável aconteceu: o apoio à cultura
científica foi interrompido. Tudo isto se passou devido à interrupção na aposta
na ciência que vinha a ser feita por vários governos. Apesar de ter havido
alguma reacção na comunidade científica contra esse novo estado de coisas,
causado por políticas obscurantistas que visaram a contracção da ciência (o
primeiro ministro e o ministro da Economia apontaram o dedo à falta de
utilidade da ciência que era feita), o certo é que essa comunidade,
relativamente recente, não teve a força suficiente para enfrentar o poder
político quando este começou a maltratar a ciência. Os cientistas nacionais não
conseguiram ainda organizar-se em defesa da ciência, designadamente juntando
representantes de várias disciplinas em torno de objectivos comuns. A ciência tem
que consolidar o seu sistema de gestão, de modo a assegurar a sua estabilidade
ao longo dos vários ciclos políticos, colocando-a ao abrigo de flutuações extremas
e arbitrariedades da tutela. É certo que, sendo a ciência financiada
publicamente, têm de existir políticas públicas de ciência, mas essas políticas
têm de ser propostas, decididas e aplicadas em colaboração com os cientistas e
não contra eles. Os cientistas têm de ser parceiros e não adversários.
A
comunidade científica portuguesa foi desconsiderada no ano de 2014. O ano
começou com os jovens cientistas a virem para a rua em justo protesto contra a
diminuição drástica das bolsas de investigação e o ano acabou com uma avaliação
catastrófica das unidades de investigação, que motivou muitos protestos,
apoiados pelos reitores das universidades e presidentes dos politécnicos, que
denunciaram de um modo muito claro uma avaliação que em rigor não merece esse
nome.
Em
primeiro lugar, deixou de ser reconhecida pela FCT – Fundação para a Ciência e
Tecnologia a enorme relevância da formação de recursos humanos no progresso da
ciência. Cortando abruptamente o número de bolsas, não existindo a necessária
renovação do corpo docente nas escolas superiores e rareando as oportunidades
de emprego científico no mundo empresarial, aos jovens altamente qualificados,
a quem os cidadãos nacionais com os seus impostos pagaram as qualificações, não
lhes resta outra perspectiva que a de abandonarem o país. Muitos o têm vindo a
fazer, na esperança de melhorarem a sua situação pessoal, mas deixando o país
indiscutivelmente mais pobre. Em segundo lugar, e na mesma linha de
encolhimento do esforço em prol da ciência, a FCT encomendou à European Science
Foundation um corte de 50 por cento das unidades de investigação, destruindo de
uma penada um sistema que tinha levado anos a ser construído. Foi uma operação,
disfarçada com o nome de “processo de avaliação”, que mais não pretendia do que
concentrar nuns poucos, escolhidos de um modo pouco transparente, o que antes
estava distribuído numa rede plural e diversificada. Não se olhou a meios para
cumprir objectivos pré-estabelecidos à revelia da comunidade científica, pelo
que os protestos choveram, não só dos institutos e laboratórios directa ou
indirectamente atingidos, mas também, das escolas superiores, das sociedades
científicas, dos sindicatos e das associações de investigadores, dos partidos
políticos e dos órgãos de comunicação social. O mais espantoso é que, apontadas
de um modo muito claro na praça pública as numerosas irregularidades
(ilegalidade do processo de quota de pré-eliminação de metade, atropelo pela
FCT às normas fixadas por ela própria e a deficiente habilitação de muitos
“avaliadores”), em vez de ter havido a necessária humildade para analisar os
defeitos apontados, num diálogo com a comunidade científica, como seria de
esperar, todos os protestos foram ignorados. A ciência que era acarinhada como
um bem comum de alguma forma ficou refém de um pequeno grupo
circunstancialmente no poder. E o que estes fizeram foi a política do “quero,
posso e mando”, ao completo arrepio do que são os valores da comunidade
científica, que não teve até agora a capacidade necessária para se afirmar. A
opinião pública, alertada pelos media, percebeu que os gestores de ciência, de
nomeação governamental, tinham perdido a confiança dos seus antigos colegas,
mas, num quadro político em que os sintomas de desagregação se multiplicam,
aceita isso como um facto normal.
Até
quando? Pois estou em crer que a ciência, fundada num sólido sistema de valores
(onde as manigâncias da pequena política não deviam, por isso, ter lugar),
saberá resistir. Não estando entre nós ainda madura, a ciência já cresceu
suficientemente para resistir a sérias provações como aquelas a que tem vindo a
ser sujeita. A comunidade científica acabará por tomar consciência do grande
papel que lhe cabe na sociedade, de modo a que o seu destino não fique nas mãos
de grupos restritos. A cultura científica continuará a fazer o seu caminho, unindo
pessoas e instituições. A seu favor tem o facto de ser cada vez mais claro que os assuntos da ciência interessam não só aos cientistas mas também aos
cidadãos em geral. O exercício livre e responsável da ciência pelos cientistas,
liberto de interferências da politiquice, mas sempre em diálogo com a
sociedade, é a condição de um futuro melhor para todos.
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