domingo, 25 de janeiro de 2015

Publicidade e conhecimento

Luc Ferry
A publicidade a um nível altamente profissional demorou mais tempo a entrar nas escolas públicas portuguesas do que noutros países da América e da Europa, mas, assim que se instalou, o modo de operar foi rápido e avassalador. Antes haviam sido criadas as condições políticas (de "abertura" da escola à comunidade, de participação dos "parceiros educativos") e económicas (estado de necessidades das escolas), para tanto. Seguiu-se a abertura de uma nesga de currículo que não pára de aumentar para acolher mais esta e aquela pressão empresarial.

Como o tempo de aprendizagem não estica, afastam-se os conteúdos disciplinares que se diz não "servirem para nada" e, não se dizendo, aqueles que, por envolverem de modo especial o pensamento crítico, podem colocar em causa o efeito da publicidade. As Clássicas têm sido as vítimas mais evidentes, mas também a Filosofia e, porque o pensamento crítico não é apanágio destas duas áreas, um pouco de mais desta e daquela. Na verdade, se virmos bem, este pensamento tão elogiado quanto detido....

Efectivamente, a presença da publicidade na escola é, agora, uma realidade. Mais: uma realidade que se legitimou e que não encontra crítica social.

Seja isso porque a mensagem é (obviamente) disfarçada de um altruísmo que se impõe acima de qualquer suspeita (afinal, a manipulação é o seu campo de especialização) na forma de apoio, de incentivo, de suporte, etc. às crianças, aos jovens, às famílias, aos professores, à comunidade... seja porque as pessoas que percebem isso e discordam de uma tal intrusão no campo educativo formal não vêem outra saída para a manutenção das "dinâmicas" das escolas, muito valorizadas pelos pais e encarregados de educação, nos processos de avaliação externa, etc.

Lembro-me bem que ainda há cinco ou dez anos se achava estranho que "as grandes marcas" (que têm departamentos próprios para a publicidade nas escolas) passassem os portões das escolas. A excepção eram alguns patrocínios amadores e solidários de empresas locais que, em épocas especiais do ano lectivo, ajudavam a concretizar festas e pouco mais a troco de verem o seu nome num cartaz ou jornal de turma. As editoras de manuais escolares (em maior número e mais pequenas do que são agora) também os rondavam e conseguiam, em alguns casos, ir entrando, mas nunca com a pujança com que agora (as poucas e enormes) se foram instalando.

Nesta nova realidade, o que se pode, ou, antes, se deve fazer?

Tenho afirmado no De Rerum Natura que o problema não está do lado das empresas; está, isso sim, do lado do sistema público de ensino (e dos diversos agentes educativos). As empresas estão viradas para si e têm o propósito do lucro; o sistema público de ensino (é estranho ter de lembrar isto) está (ou deveria estar) virado para o Bem (no sentido filosófico) do aluno, da sociedade e da humanidade e tem (ou deveria ter) o propósito de difundir o conhecimento e desenvolver a inteligência. Estamos face a dois universos distintos, inconciliáveis na sua essência. Não vale a pena arranjarmos malabarismos discursivos para distorcer ou contornar esta realidade.

Assim, vejo que, mais tarde ou mais cedo, esse sistema, e cada escola, tem de parar para fazer uma dupla reflexão. A primeira é sobre a legitimidade desta cada vez mais aguerrida intrusão da publicidade no espaço e no tempo que é o seu, especificamente destinado à instrução; a segunda é sobre a possibilidade que, efectivamente, tem de levar os alunos a discernir a lógica publicitária e, sobretudo, conduzi-los a outros interesses que sejam mais consonantes com a condição humana.

Luc Ferry, filósofo, classicista, (polémico) ex-ministro da educação francesa explica bem esta ideia num livro e numa entrevista, que partilho com os leitores. De notar que a palavras a azul são minhas, não deste autor.
"... campanhas publicitárias... uma das suas principais missões é transformá-las tanto quanto possível em perfeitos consumidores. Esta lógica, na qual entram cada vez mais cedo, pode revelar-se destruidora. Ela instala-se nas suas cabeças mediante um trabalho de sapa: quanto menos dispusermos duma vida interior rica no plano moral, cultural e espiritual, mais nos expomos à necessidade frenética de comprar e de consumir. O tempo de «locação de cérebros vazios» que a televisão [e agora a escola] oferece aos anunciantes é, portanto, uma dádiva. Interrompendo sem cessar programas, esses canais [e agora a escola] visam, literalmente, mergulhar aqueles que os seguem num estado de ressaca
 In A sabedoria dos mitos (Temas e Debates/Círculo dos Leitores), 2014, 43.
"Digo aos meus amigos empresários (...) «vocês são esquizofrénicos, estão divididos em dois». Como empresários de direita (geralmente são de direita ou, então, são hipócritas), os valores morais deles são reaccionários. Gostam que as crianças sejam bem educadas por personalidades autoritárias que determinam as regras, etc. E eu digo-lhes: «Em casa são autoritários, reaccionários, de direita e nas suas empresas fazem exactamente o contrário. Fazem grandes campanhas publicitárias para transformar as crianças em (...) consumidores viciados. É preciso escolher. O que querem? Querem as crianças educadas, inteligentes, cultas? Ou querem crianças (...) consumidoras para que as vossas empresas funcionem. Você não podem ter as duas coisas. Não podem ter o mundo do consumo para que as vossas empresas funcionem bem com crianças educadas.» As duas coisas não funcionam. Esta é a grande contradição do mundo actual (...).
Vivemos num mundo de hiperconsumo, onde somos permanentemente tentados por todo o tipo de objectos maravilhosos. O consumo (...) tem a mesma estrutura que o vício. O único meio que eu conheço de lutar contra o consumo viciante é dar às nossas crianças o sentimento de que há coisas mais belas e mais importantes. É vital transmitir aos pequenos, quando eles têm 4, 5, 6 anos, os contos de fadas, as narrativas da mitologia grega para lhe dar o sentimento de que há coisas superiores ao registo do consumo. Não é proibindo o consumo que chegamos lá, isso não funciona. É preciso nivelar por cima, dano o sentimento de que há elementos na cultura que são mais intensos, mais profundos, mais divertidos. Por exemplo, o que é incrível na mitologia grega é que ela é muito crua, muito dura. Ela fala de sexo, de morte, de sadismo, de amor, de guerra. É isso que fascina as crianças. Não se deve edulcorar. Isto não perturba as crianças. Elas acham normal que os malvados sejam punidos com dureza. É preciso ler os contos de fadas, é preciso ler a mitologia grega. É o único meio de fazê-lo ir além do mundo do consumo."
In Entrevista a Café filosófico (aqui).

2 comentários:

Anónimo disse...

Prezados bloguistas,

Identifico-me totalmente com as críticas deste post. Porém, creio que devemos destacar que há crítica social da publicidade! talvez não seja conhecida e, certamente, será pouco divulgada.
A matriz globalizadora encontra-se na articulação do capitalismo rampante (neoliberal), com a máquina da hiperprodução e do hiperconsumo sustentado pelo promíscuo sistema dos meios de comunicação massivos: o espetáculo do consumo transversal a todos os níveis societais. As contradições internas a este sistema são já evidente e clamorosas: não é possível manter a ideologia do crescimentos, porque não existem recursos no Planeta para todos os países crescerem sequer a 1% ao ano; o consumo desalmado de recursos é ecologicamente insustentável; os ricos estão mais ricos e há mais pobres; os Estados estão reféns das oligarquias financeiras e desertaram da sua função providencial; o hiperconsumismo domina por via da ideologia da consu(b)mição; a escola, a Família e outras instâncias que assumiam o "dever ser" social, foram capturadas pelo consumismo e são os meios de comunicação massivos, articulados com a Cultura do espetáculo (do consumo) a reger o nosso quotidiano; a própria Escola está submetida ao repto peregrino do "Edutainment", em que a concentração e o esforço foram anatemizados.
Talvez seja tempo de optarmos pelo decrescimento, pela vida frugal, pelo boicote ao cosnumismo, pela educação para a realização não materialista da existência: os valores superiores não se consumam comprando coisas. A Liberdade, o Amor, A felicidade, a Amizade e a Sexualidade não se alcançam comprando coisas. O mais nefasto erro sobre o Valor está no equívoco quanto aos meio da sua realização e na ilusão da redundância de bens (de consumo).
Como escapar a esta voragem?
Abdicando do consumismo, ou um dia acordaremos, não digo como o insecto de que falava Kafka, mas talvez como peça de uma máquina em que o sentido da vida se define no voragem consumista, tresloucada pela necessidade de escoar o excesso de produção e desperdício que nem nos realiza nem nos salva das desigualdades gritantes.

Carlos Reis

Roger.a disse...

Muito interessante e pedagógico, incluindo o comentário anterior.

UM CRIME OITOCENTISTA

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