Com a devida vénia, publicamos artigo de Rodrigo Furtado no Público de hoje. O Prof. Rodrigo Furtado junta a sua voz indignada à de tantos outros que apontam o dedo à incompetência dos actuais gestores da FCT, com a estranha permissividade do ministro:
Na decisão final da avaliação dos centros de investigação portugueses, vem o painel de humanidades elogiar o Centro
de Estudos Clássicos de Lisboa (CEC) pelo estudo que propôs “Da história e da recepção dos clássicos na Lusitânia”. Muito relevante ao que parece — e talvez o fosse, se no projecto apresentado pelo CEC palavras como “Lusitânia” ou “lusitano” tivessem sido referidas; nunca foram...
Nem percebo a que se referem os avaliadores, já que nunca propusemos estudar a história dos clássicos e a Lusitânia
romana tinha capital em Mérida (que hoje fica em Espanha) e excluía o território a norte do Douro. Os avaliadores acham também positivo que estudemos os relatos em latim dos visitantes na China. Mas, quais
visitantes? Nós propusemos estudar relatos em latim, mas escritos por missionários na
Ásia. Elogiam também os “guias literários” que o CEC produz para um “número de
sítios e regiões”. Poderia ser, de facto, interessante. O pior é que eu nem suspeito
a que é que se estão a referir, porque o CEC não editou, não edita, nem propõe editar
qualquer “guia literário” de sítio nenhum.
Quando alguém é avaliado e tem uma má nota com implicações profundas para o
futuro, como foi o caso do CEC, o mínimo que se pede é que essa avaliação seja séria.
Já para não dizer que o avaliado tem de reconhecer competência ao avaliador. Ora,
nenhuma destas duas condições aconteceu na supostamente irrepreensível avaliação
a que o dr. Seabra submeteu os centros de investigação portugueses.
Não foi uma avaliação séria: os casos referidos acima são apenas exemplos, todos retirados do último relatório, que mostram que a avaliação do CEC foi totalmente incompetente. E foi sempre assim desde o
princípio: em resposta a todos os relatórios feitos pelos avaliadores, o CEC foi sempre
obrigado a corrigir preconceitos acerca do papel dos Estudos Clássicos em Portugal e
erros de facto sobre o que tinha proposto.
Como é que o CEC pode confiar numa avaliação que, ainda por cima num relatório
final, continua a apresentar os erros ou incompreensões que refiro acima? Que
credibilidade é que isto tem?
Os avaliadores não eram pares nem competentes: por mais que o dr. Seabra
venha repetir que foi uma avaliação por pares, é preciso dizer-lhe que uma mentira
muitas vezes repetida não se torna uma verdade. O CEC errou quando aceitou
uma visita de dois avaliadores em que continuava a não haver um especialista de
Estudos Clássicos. De apenas duas pessoas ficou a depender o futuro de cerca de 30
investigadores e de quase meia centena de estudantes de mestrado, doutoramento
e pós-doutoramento. Um dos avaliadores era especialista, segundo página própria,
em lexicografia, bibliotecas digitais, aristotelismo, Renascimento, Iluminismo,
Kant, Hegel, filosofia intercultural, história da universidade e património intelectual
(deve ser a isto que chamam “inovação”: um especialista em praticamente tudo
desde o século IV a.C. ao século XXI). O outro era especialista em literatura italiana.
Mas não tem importância: no fundo, toda a gente sabe que os gregos inventaram a
filosofia e os romanos nasceram em Itália: é o que basta. Não deve ter qualquer
importância para o dr. Seabra o facto de, durante a visita, nem saberem coisas tão
elementares como que Nono de Panópolis escreveu em grego e não em latim.
O problema é que estes senhores dominam toda a ciência na Europa: basta
abrir o site da já defunta European Science Foundation para ver que são sempre os
mesmos a figurar em todos os comités — alguns deles tinham estado já na avaliação
de 2007 e, se nada mudar, hão-de regressar em 2017 e em 2020. Trata-se de um
grupo em que todos pensam o mesmo, determinando o que é a ciência e o que
deve ser estudado na Europa. E, no entanto, é preciso dizer-lhes que estão errados.
Tem a FCT do dr. Seabra alguma ideia para as humanidades ou para os Estudos
Clássicos em particular sem ser a vacuidade a que chama “excelência”? Não tem: o
que determinou a avaliação na área das humanidades foi a profunda arrogância de quem
acha que basta saber umas coisas para avaliar os Estudos Clássicos.
A falta escandalosa de pares nunca aconteceria no
Reino Unido, em Itália ou na Alemanha. A única ideia que os avaliadores mostraram ter foi a
de que os Estudos Clássicos deviam ser algo residual
em Portugal: apenas poderíamos gastar o dinheiro
dos contribuintes europeus (expressão dos
nossos avaliadores) a estudar a recepção
dos textos clássicos em autores “lusitanos” ou a fazer a sua tradução
para quem não é capaz de ler a não ser português. Um dos avaliadores até foi
condescendente: “um ou outro” de nós poderia dedicar-se alguma vez a algum
autor mais antigo (“afinal não têm todos de se dedicar à recepção”) — mas isto deveria
ser claramente a excepção.
Acham também que nos deveríamos dedicar a temas mais inovadores. Pergunto
eu: humanidades para a FCT do dr. Seabra? A sexualidade nos parques verdes? Os
estudos de nu frontal e as novas texturas? É preciso dizer que não estamos abertos
a esta “inovação”. Simplesmente não é compreensível que a edição crítica de textos
inéditos em latim, o estudo da epigrafia, da poesia grega bizantina (que praticamente
nunca mereceu qualquer atenção em Portugal) ou dos códices renascentistas
portugueses com textos científicos não sejam tópicos considerados fundamentais; são-no em qualquer lugar do mundo, excepto pelos avaliadores contratados pela FCT.
E não venham dizer que querem uns Estudos Clássicos mais internacionais do
que são: o dr. Seabra esteve na abertura do congresso que recordou em Lisboa os 2000
anos da morte de Augusto, em Setembro de 2014 — foram mais de 120 comunicações¸ em cinco línguas, com publicação já
assegurada na Olms-Verlag, contando com alguns dos nomes mais sonantes a nível
mundial. Este é apenas o último exemplo de um esforço que poderia incluir várias outras
iniciativas.
Eu não acho que o CEC seja excepcional; e, na estrita aplicação dos intervalos
mínimos impostos pela FCT, até talvez não atingisse a marca de “excelente”. Mas é um
centro realmente muito bom, que aposta em textos e temas nunca estudados, com real
impacte internacional na área dos Estudos Clássicos e da Tradição Clássica, que aposta
na formação de jovens e na atracção com êxito de investigadores estrangeiros, e com
enorme potencial de crescimento. As perto de 80 pessoas que pertencem hoje ao CEC
são um núcleo decisivo para a existência de toda uma área do saber em Portugal,
uma das mais complexas no campo das humanidades, a exigir de cada investigador
um longo período de formação específica.
Em qualquer das grandes universidades dos principais rankings, os Estudos Clássicos
constituem uma das áreas de maior prestígio e especialização; excepto no Portugal
imaginado por esta FCT.
Rodrigo Furtado
Professor da Faculdade de Letras de Lisboa
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