Minha crónica no último "As Artes entre as Letras", jornal cultural do Porto (na imagem a missão Rosetta-Philae a um cometa):
O ano de 2014 foi para a ciência em Portugal um ano para esquecer, foi o ano de profunda crise e contestação. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), com o beneplácito do ministro da Educação Nuno Crato, que há muito deixou de ser ministro da Ciência, decidiu logo no início do ano reduzir de mais de 30% o número de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento que costumava atribuir, contribuindo assim para engrossar a fuga de cérebros. Depois, num exercício a que chamou de “avaliação” (usurpando o nome), decidiu eliminar cerca de 50% das unidades de investigação do país, impondo uma quota, que de início foi secreta, à European Science Foundation, instituição a quem encomendou o trabalho de “desbaste”. Tanto num caso como noutro a indignação foi geral, com os candidatos a bolseiros em manifestação na rua e com os investigadores a multiplicarem-se em abaixo assinados e artigos críticos. O próprio Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas – CRUP tomou uma posição de violenta crítica ao governo. Para os responsáveis maiores da universidade, reflectindo aliás a opinião da esmagadora maioria dos académicos, a dita avaliação foi um “falhanço pleno”. Os reitores, pelo menos até agora, não foram inteiramente coerentes, pois senão teriam recusado a extracção de quaisquer consequências práticas de uma avaliação sem o mínimo de qualidade. O ministro não atendeu aos protestos dos reitores, nem sequer lhes respondendo.
No final do ano surgiu finalmente a lista dos resultados, de
onde ressalta a arbitrariedade do exercício avaliativo: praticamente dois
terços do financiamento foram atribuídos a um quinto das unidades de
investigação, com a agravante de não estar demonstrado que aqueles centros eram
as mais merecedoras uma vez que muitos
avaliadores não eram especialistas nas áreas que estavam a apreciar. Foram atribuídos financiamentos ditos
“estratégicos” de uma forma que parece completamente arbitrária, pois as justificações
não foram claramente enunciadas pela FCT. O governo, para justificar o
injustificável, tem apregoado a ideia vaga de “excelência”, mas o certo é que o
resultado previsível será um afundamento geral do sistema, com muitos centros
condenados à extinção e outros, muito poucos, sem saberem o que hão-de fazer ao
dinheiro. Por via do obscuro financiamento estratégico, alguns centros acabaram
por obter melhor financiamento do que outros com melhor classificação. Mais de
130 reclamações estão pendentes na primeira
fase (a fase eliminatória para metade) e muitas outras são previsíveis na
segunda fase (a fase de selecção dos poucos “supermilionários”). As instâncias
juridicamente competentes terão muito trabalho pela frente e está instaurada a total
desconfiança nos responsáveis pelo sistema científico nacional, uma confiança que só poderá ser restaurada
com outros intervenientes. É muito fácil
destruir, muito mais difícil será reconstruir. O sistema científico português,
que é relativamente jovem, estava num caminho de convergência para a Europa e
agora, em resultado da política desastrada do actual governo, está em vias de
se afastar, voltando aos lugares traseiros onde já esteve.
Na cena internacional, destaco dois acontecimentos
científico-tecnológicos, um muito longe e o outro mais perto de nós. O primeiro
foi a aproximação da sonda Rosetta da agência espacial europeia a um cometa,
com o pouso na superfície do cometa de um robô, o Philae. É um prodígio da ciência
e da técnica, que evidencia bem o progresso que o conhecimento permite. Ainda
há três séculos não se sabia o que eram cometas (para o Padre António Vieira
eram mensageiros do céu, sinais de Deus) e hoje não só sabemos o que são como
os conseguimos visitar mecanicamente, realizar análises geológicas e fotografar
de perto a sua superfície rugosa. O facto de estar neste momento interrompido o
contacto com a Philae não invalida a enorme relevância desta proeza astronómica.
Por outro lado, 2014 foi o ano em que uma empresa norte-americana, a Illumina, começou
a comercializar uma máquina de sequenciação completa do genoma humano que
efectua cada análise por um preço inferior a mil dólares. Esta era uma meta há
muito tempo aspirada neste domínio e o seu atingimento permitirá o crescimento
maciço dos dados sobre o genoma e, portanto, um melhor conhecimento sobre a
saúde a doença, com a possibilidade de
uma indicação atempada de riscos e de uma melhor escolha de terapêuticas. Os
exames do genoma tornar-se-ão tão correntes como são hoje as análises clínicas
e os raios X. A medicina personalizada irá nos próximos anos tornar-se uma
realidade, com os médicos a interrogarem bases de dados genéticas. Claro que,
em toda esta transformação, emergem novos desafios, que não são apenas
científico-técnicos: são também económicos, sociais e políticos. Questões
éticas sobre a propriedade dos genomas e a acessibilidade à informação neles
contida tornar-se-ão prementes, tendo a sociedade de lhes responder. A ciência
pode e deve dizer aquilo que sabe, mas pouco ou nada pode dizer sobre as
questões éticas. Saber sempre foi poder, mas o exercício desse poder sempre
transcendeu os limites da ciência.
O Ano de 2015 vai ser o Ano Internacional da Luz, uma iniciativa
da ONU para celebrar os avanços científicos e técnicos obtidos sobre a luz. O ano
vai abrir oficialmente em Janeiro em Paris, sob os auspícios da UNESCO. Em todo
o mundo e também em Portugal vai ser alargada a cultura científica, com o
fértil cruzamento de saberes e sensibilidades a respeito da luz. A luz está por
todo o lado, está na Natureza e está também na cultura. Em Portugal os tempos
não são fáceis, com um governo que despreza a cultura científica, mas faço
votos para que o Ano Novo seja de “mais luz”.
Feliz Ano Internacional da Luz!
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