domingo, 31 de julho de 2011
BEM-ME-QUER?
Um dos meus doze textos participantes no "Cordel de Ciência", iniciativa inaugurada no Pavilhão do Conhecimento aquando da comemoração do seu 12º Aniversário, no passado dia 21 de Julho de 2011. Passe por lá e leve-os consigo pela mão!
Sentada na margem do rio, Helena contempla o reflexo de uma flor no espelho das águas calmas.
A flor que segura na mão é uma espécie de bem-me-quer, ou margarida, nomes vulgares do científico Leucanthemum vulgare.
Mas de vulgar, só a abundância com que cobre os campos. Até porque a sua beleza simples desponta da aparência de ser só uma flor. Numa observação mais íntima, Helena reconhece que tem na mão um exemplo de inflorescência, na qual as folhas marginais, modificadas em pétalas brancas, coroam centenas de pequeníssimas flores amarelas e femininas, concentradas num disco central.
Helena inspira o aroma próprio e intenso das minúsculas flores amarelas. A sensação olfactiva é, simultaneamente, acompanhada por uma imagem floral mental. Ao fechar as pálpebras para abrir a os “olhos” do seu pensamento, o aroma parece associar-se à imagem de uma memória de flor! É como se estas duas sensações estivessem associadas algures no seu cérebro. É como se existisse um bem-me-quer feito de inúmeros neurónios cerebrais!
Helena recorda ter lido algures que precisamos do cérebro para ver! O mesmo deve acontecer para os outros sentidos, pensa, ao mesmo tempo que faz rodar a inflorescência, entre os dedos polegar e indicador da sua mão. Desvia o olhar para a superfície aquosa do rio e concentra-se na sensação táctil, no movimento rotativo da haste floral entre as falangetas digitais oponíveis.
A reconstrução imagética da flor a rodar entre os seus dedos, leva Helena a pensar que deve existir também uma memória do movimento, sediada numa estrutura cerebral específica. Em que parte do cérebro estará funcional?
A percepção visual, do mundo exterior, é transmitida ao cérebro pelos nervos ópticos. A sensação olfactiva, pelos nervos olfactivos. A interiorização do som, através dos nervos auditivos ou nervos vestíbulo-cocleares. As sensações do paladar, através de nervos cranianos do tracto solitário. As sensações tácteis, pelos nervos com o mesmo nome. Todas estas percepções, da nossa interacção com o envolvente, são conduzidas por nervos, mais ou menos periféricos, até ao cérebro, que integra e processa a informação nervosa recebida e lhe dá significado funcional e orgânico, ou conteúdo simbólico.
Mas e o movimento? Será ele o resultado, a reacção, do processamento e integração dos vários sentidos? Ou terá, para além disso, uma estrutura cerebral a ele dedicada para o coordenar, para o modelar com memórias, para desenhar no espaço o gesto suave de uma carícia, para controlar o rodopio bailarino de uma haste florida entre os dedos?
Helena arranca uma pétala branca da inflorescência. Um sussurro de uma lengalenga primaveril instala-se no seu pensamento, o que desencadeia uma sequência gestual familiar: bem-me-quer, malmequer, bem-me-quer, malmequer… Cada pétala solta do disco florido cai, desde o gesto, até à superfície da água do rio, e desencadeia ondas circulares que se propagam também numa lengalenga periódica.
De novo, com as pálpebras cobrindo as íris dos seus olhos, Helena concentra-se na lengalenga gestual. Constata que os seus gestos continuam a remover pétala após pétala com toda a eficácia delicada. De facto, está a ver, “só” com o cérebro, os seus dedos a remover a coroa branca da inflorescência amarela. Sente que a essência do gesto, que a acção de todos os músculos que permitem os movimentos dos seus dedos, mão e braço, reside algures no seu cérebro. Mas aonde?
- No corpo estriado dos gânglios basais do teu cérebro. - Diz Rui, um amigo de Helena que, discretamente, e sem a perturbar, a tinha estado a observar na sua interrogação gestual. - Tanto quanto sabemos hoje – continua Rui - existe um grupo de neurónios do tipo piramidal, “sensíveis” ao neurotransmissor dopamina, que, constituindo uma via neuronal no hipotálamo designada por nigroestriatal, estão envolvidos, quer na aprendizagem, quer na execução de gestos sequenciais como esses que tu estiveste a realizar.
- É fantástico Rui! - Responde Helena. – Tudo parece estar tão sincronizado como as ondas na superfície deste rio.
- É realmente fascinante o funcionamento do nosso universo neuronal - acrescenta Rui. - É espantoso como a interacção de um número astronómico de ondas salinas, propagadas por acção potencial electroquímica, e modeladas por neurotransmissores específicos, conseguem, a partir de uma arquitectura de uma via neuronal, efectivar-se num gesto, simples ou complexo.
- Esta pétala é para ti. – Estende Helena num movimento grato.
- Que belo gesto!
António Piedade
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