domingo, 24 de abril de 2011

UM PRAZER INTERROMPIDO


Posfácio do ensaísta Eugénio Lisboa ao romance de Rosa Lobato Faria, “Vento Suão”, publicado muito recentemente:

Ao deixar-nos, em 2 de Fevereiro de 2010, Rosa Lobato de Faria, escritora nascida a sério, com a publicação do romance "O Pranto de Lúcifer", legou-nos um espólio literário abundante, para um período de criação de apenas quinze anos. Abundante e quase sempre de leitura empolgante: rima e é verdade.

O segredo do seu triunfo junto do público é simples, como todas as explicações que realmente explicam – e vamos buscá-lo a um mestre do romance e dos estudos sobre o romance: Henry James, a quem James Wood foi roubar uma soberba epígrafe para o seu livro fascinante "How Fiction Works"*: Na edição portuguesa (em excelente tradução de Rogério Casanova): " A Mecânica da Ficção". “Só existe uma receita – gostar muito do que se cozinha.” Rosa Lobato de Faria gostava evidentemente daquilo que a sua cozinha literária para nós produzia. Há, nas suas narrativas, um fluir gostoso, um fogo, um apetite de seguir em frente que nos subjugam por terem começado por subjugá-la a ela. Como conciliar tão sôfrego apetite de narrar com um começo tão tardio na sua vida literária a sério? Aqui fica a pergunta para quem quiser e souber decifrar o enigma. Diga-se apenas, para começar, que não se trata de caso único.

Rosa Lobato de Faria foi, até certo ponto, sobretudo nos primeiros tempos da sua carreira de romancista, vítima da reputação que projectava a outra Rosa, ligada à televisão, às novelas e às cançonetas de trazer por casa. Certos intelectuais têm dificuldade em admitir a cohabitação, na mesma pessoa, de um escritor sério com um outro mais mundano, mais extrovertido, menos profundo. E, no entanto, a história literária abunda em exemplos: o Scott Fitzgerald que nos deu "The Great Gatsby" não era por certo o mesmo das orgias nos hotéis de luxo da Côte d’Azur, nem do tempo desperdiçado em Hollywood a escrever guiões de pacotilha. Ele próprio tinha consciência do mau juízo que faziam dele, por causa da reputação espalhafatosa do outro que não era o que escrevera "Tender is the Night" – e pedia encarecidamente que tomassem a sério o Scott, autor de romances, nos quais investira o que de melhor havia na sua oficina de ficcionista, a despeito do ser humano desprezível que também, porventura, dava pelo nome de Scott Fitzgerald. Proust era um snob insuportável, a esfalfar-se atrás de marquesas e do high-life em geral, redactor de cartas intermináveis e chatíssimas a personagens de um meio social que ele perseguia e invejava, apesar de fútil, mas havia um outro Proust, mais secreto, mais profundo, mais inventor de uma concepção revolucionária do romance, que se escondia por detrás do mundano e tentava conquistar a imortalidade, sondando, como ninguém, os segredos e labirintos e ratoeiras da memória. O SENHOR Henri Beyle, gorducho baixote e grotesco, que se gastava a dizer piadinhas de mau gosto nos salons de Paris, que, aliás, desprezava, era, por outro lado, o escritor Stendhal, que nos deixou, pelo menos, dois monumentos da novelística francesa: "Le Rouge et le Noir" e "La Chartreuse de Parme". Não se deve olhar com ligeireza para a máquina da criação: ela tem habitado nos lugares mais improváveis.

Em livros como "Romance de Cordélia", "O Prenúncio das Águas" ou agora, neste inacabado "Vento Suão", Rosa Lobato de Faria dá-nos testemunho poderoso desta outra Rosa, que não terá, por certo, exactamente os mesmos admiradores que tinha a mais vistosa e mais superficialmente sedutora actriz de televisão e autora de poemas e letras de canções: material que se não situa, necessariamente, no mesmo patamar de exigência em que vive a sua ficção.

É, provavelmente, verdade que a narrativa da autora de "O Prenúncio das Águas", flui com uma mestria que, por vezes, se confunde com facilidade, ou mesmo, sugere-se, arrasta a asa à superficialidade. Ainda, outras vezes – demos, de barato, os trunfos todos ao inimigo – a teia implacável que a autora tece em torno dos personagens não desdenha namorar, com alguma saudade, o grande romance folhetinesco do século XIX. Mas a força de vida, o conhecimento profundo da realidade e do meio em que se agitam os seus fantoches ficcionais, o domínio das minúcias (de que, diria eu, só uma mulher á capaz), o fôlego narrativo, a irrupção imparável de um vento negro de violência que impõe uma aura de tragédia intemporal ao que parecera quase inócuo – acabam por subjugar as eventuais reticências.

Querem um exemplo, entre tantos que poderia dar, de uma notação de grande romancista, servindo-se da colaboração da observação e da memória involuntária? Vejam as duas amigas, Sofia e Luísa, recordando os tempos da infância: “ - Lembras-te de quando pensávamos que não havia amanhã? Não tínhamos a certeza se o Sol ia nascer. Levantávamo-nos de madrugada com aquela angústia: e se não nasce? Víamos os pássaros raros que anunciavam a manhã e cada uma em sua casa torcia por um nascente que parecia tardar de propósito para nos fazer sofrer...”.

Rosa Lobato de Faria, antes de se dedicar seriamente à ficção, fora, não é vergonha dizê-lo assim, uma “profissional do entretenimento”. Não é pois de admirar que tenha trazido para os seus romances o desejo de, entre outras coisas, “entreter o leitor”. Nisso, estava apenas a inserir-se na nobilíssima tradição da novelística universal, que tinha, como objecto primeiro, entreter o leitor ou ouvinte das peripécias narradas. Martin Seymour-Smith, na longa e exaustiva introdução que escreveu para o seu monumental guia "Novels and Novelists", observa: “A qualidade literária não é incompatível com o poder de entreter, como Charles Dickens talentosamente demonstrou.” Muitos grandes romances, mesmo no século XX, são literalmente empolgantes, independentemente de outras qualidades. O que se pode até criticar em muitas das narrativas inculcadas, entre nós, como obras-primas, e cumuladas de prémios, é o completo desprezo (provinciano) pelo dever de minimamente entreter o leitor. Os romances de William Boyd – um dos mais brilhantes romancistas ingleses de hoje – são imensamente “entertaining”, para além das outras muitas qualidades que fazem dele uma figura cimeira da novelística universal: "The New Confessions" ou "Brazaville Beach", entre outros, “agarram” literalmente o leitor e seduzem-no, por essa via, para mares mais profundos. A Herman Hesse, que o acusava de, no seu romance "Sua Alteza Real", ter Thomas Mann piscado o olho, de maneira demasiado indiscreta, ao grande público, o grande romancista respondeu que sim, que o fizera conscientemente, porque não lhe interessava ser lido apenas por um pequeno público. Provavelmente considerava de grande interesse o que tinha a dizer, para o confinar apenas aos “happy few”. Ser empolgante sem descer às receitas e às fórmulas não é pecado de maior. Entre os romances fortes de Rosa Lobato de Faria e os “best sellers” obscenos que atravancam os supermercados e as “livrarias” vai um mundo de diferença.

"Vento Suão" ficou, infelizmente, inacabado. No momento crucial, quando o leitor suspende a leitura, perguntando a si próprio o que mais poderá acontecer, - a morte encarregou-se de levar a romancista, restando-nos só adivinhar. Aquele facalhão de cozinha cravado nas costas de Mateus (fortíssimo personagem, diga-se de passagem) levanta a Sofia insuperáveis problemas e desperta no leitor uma invencível frustração, por ir ficar sem saber. O grande romancista americano Raymond Chandler recomendava aos seus colegas de ofício que, no momento em que a história fraquejasse, mandassem vir um homem de pistola na mão. Lobato de Faria não precisou de que a sua história fraquejasse, para meter na sua narrativa o monstruoso facalhão. O problema não reside, quanto a nós, na duvidosa receita, mas apenas no facto de nos terem sido escamoteadas as consequências do acto sangrento. A autora de "Vento Suão", como era seu hábito e gosto, não recuava diante dos maiores extremos a que se entrega a literatura negra. Era parte do seu talento saber salvar-se a si e à narrativa, para além de tais excessos, que talvez nem o fossem. Lobato de Faria ousa tudo. Mas era como aquelas pessoas que têm o talento de se atirarem à água e sairem secas. Seja como for, "Vento Suão" prometia ser, interrompida pela morte, como ficou, uma das fortes narrativas – ousada, infractora, a um tempo excessiva e civilizadamente fluente – que nos deixou essa mulher talentosa e abusadoramente bela que foi Rosa Lobato Faria.

*Na edição portuguesa (em excelente tradução de Rogério Casanova): "A Mecânica da Ficção".

Eugénio Lisboa

Na imagem: Rosa Lobato de Faria

4 comentários:

margarida disse...

Séria homenagem, com uma admiração e um afecto incontidos, que contagiam que lê estas palavras galopantes de emoção.
Muito bonito, tanto, que leva a querer ler o que inspira esta galvanização veemente.
:)
Missão cumprida, caro ensaísta?

Carlos P disse...

Rosa Lobato Faria ofereceu-nos alguns dos piores poemas da literatura portuguesa. Tão maus que se fosse pessoa de gosto sério tê-los-ia rasgado de imediato com vergonha. Contudo, não. E chamava-se a si mesma de poetiza. Vomitar citações ou títulos não é nem sinal de pensamento, nem é serve de desculpa. Mas, quem sabe, talvez a Rosa Lobato Faria, no fim de vida tenha sido abençoada pelas musas. Deste Rui Batista, o grande plagiador do pensamento alheio na falta do próprio, sempre enfadonho e hermético, já não tenho iguais esperanças.

Rui Baptista disse...

Carlos P.:

Aceito, e diria mesmo que respeito, as suas críticas à minha pessoa. Só não tolero é que confunda o conceito de plágio com o conceito de citação pela desonestidade que subjaz aquele.

Carlos P disse...

Senhor Rui Batista: O plágio apareceu aqui não como conceito, mas como metáfora. Entendo, no entanto, o seu mal estar (mas não a intolerância). E por isso deveria ter-me contido pelo termo "citação". Dou-lhe aqui razão, tal como no que escreveu sobre Carlos Queiroz. Um bem haja pela sua verticalidade. Valor que tanto rareia (também aqui).

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