segunda-feira, 4 de abril de 2011

OLHAR AROMAS


Minha crónica semanal no "Diário de Coimbra".


O hino do Jardim-Escola João de Deus, cantado pelos alunos do 4.º ano, impregnava com outras emoções a atmosfera primaveril e enobrecia as celebrações do 1.º centenário da mais antiga e primeira escola infantil em Portugal.

Às árvores, algumas delas também companheiras centenárias da firme longevidade de um método frutuoso, associavam-se outras espécies vegetais rendilhadas no muro do Jardim-Escola. Uma dança de fragrâncias malvas, a irradiar de cachos floridos das belíssimas glicínias (Wisteria sinensis), debruavam a inspiração.

António vivia o momento à altura dos olhos de seu avô João, que o elevava, num colo seguro, para que ele pudesse ver para além do longe. Enquanto o hino ecoava nas memórias, o aroma das glicínias impregnava a satisfação de dever cumprido. A sua atenção, despertada pela sensação olfactiva, transportou uma pergunta ao ouvido do seu avô: porque é que aquelas flores, assim como outras, doavam perfumes às emoções?

Com olhar marejado de sonhos guardados em outras flores, o avô respondeu-lhe num sussurro para que o ouvisse melhor. “O nosso cérebro é composto de um número grande de células nervosas, os neurónios. Em zonas específicas do cérebro, neurónios determinados dedicam-se a receber informação sensorial do mundo que nos rodeia, processando-a, guardando-a, comparando-a com sensações anteriores guardadas em padrões memoriais. Muitas vezes, a recordação é complexa e associa não só um aroma, mas também imagens, gestos, nomes, outros sons, e algures uma emoção, um tom de vida. O nosso cérebro é capaz de traduzir aromas em emoções, gestos em canções.”

De facto, em miríades de redes de neurónios, interligados entre si por milhares de conexões funcionais, residem ressonâncias de impulsos nervosos estimulados por uma dada informação sensorial. Um fragmento pode evocar o mundo inteiro. Também por isso a substância transcende a forma e um gesto poder bastar para dirigir uma orquestra de emoções.

No caso em questão a sensação é olfactiva. Essa informação é primeiramente captada por células sensoriais especializadas que possuem terminações, ricas em receptores (glicoproteínas membranares) olfactivos, estrategicamente colocadas nas membranas de um epitélio existente no céu das fossas nasais.

Milhares de receptores diferentes e sensíveis a moléculas ditas aromáticas (mas não só) são estimulados na presença das mesmas. As interacções e reconhecimentos moleculares são traduzidos para outro tipo de informação celular que desagua a paleta sensitiva num órgão designado por bolbo olfactivo, antecâmara de entrada desta informação para o cérebro.

No bolbo olfactivo, ocorre um primeiro processamento da informação. Um tipo de células nervosas específicas e designadas por mitrais recolhe e processa a transdução dos aromas sentidos em impulsos nervosos. Estes são enviados através de nervos olfactivos para o córtex cerebral, mas também para estruturas mais internas do sistema límbico cerebral, como o hipotálamo, onde a informação é comparada com padrões de experiências anteriores.

Ressonâncias nervosas, desencadeadas pelo aroma inspirado, podem despertar memórias de outras sensações antigas e dissipar o véu de emoções resilientes. Uma brisa primaveril pode, assim, evocar uma recordação da nossa infância, descobrir uma emoção.

Noutro registo, neurocientistas norte-americanos publicaram, na página online da revista Nature da semana passada, as primeiras "cartografias" de circuitos e actividades neuronais do córtex olfactivo (em modelos animais), obtidas através de uma técnica nova.

A possibilidade de mapear a estrutura neuronal subjacente à função sensorial e ao seu processamento cortical e límbico, antecipa futuras descobertas, novas emoções para aromas primevos.

António Piedade

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