Não deixe, no entanto, o leitor de se deter nas páginas em papel, onde a reflexão do professor-poeta se alarga. Tanto do que ali é dito se manteve imperturbável em quase quatro décadas... Será a nossa característica ou a nossa tragédia?
“Uma das grandes conquistas da Revolução foi a “liberdade de expressão”. Foi proclamada para ficar e está hoje inscrita na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 37. Lá diz textualmente: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de se informar, sem impedimentos nem discriminações”. Este é o n.º 1 do artigo. O n.º 2 esclarece: “O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.” E disse.
Do uso destes direitos poderia eu dar-vos diversos exemplos, mas dou-vos apenas um ocorrido há poucos dias, com o juramento prévio de que não minto, pois até parece mentira. Eu fui comprar o Diário de Notícias a um pequeno estabelecimento da Rua Ferreira Durão, aqui no meu bairro, mesmo defronte do Mercado. Ao balcão estava um jovem a encarar um cliente que a descompunha, não sei porquê. “Vocês são todas umas cabras!” – dizia o cliente. E acrescentava (ouvi eu): “Eu estou no meu direito de dizer o que penso. Estamos em democracia.”
Imaginem, meus queridos tetranetos, o que seria a liberdade aplicada à comunicação social, para a qual a tem um artigo próprio, o 38. Vieram a público, nessa época, inúmeros periódicos novos, muitos deles criados apenas para desabafar, para darem oportunidade aos seus promotores para insultarem, para ofenderem, para atacarem, para se divertirem (…). Certa tarde, encontrava-me no Rossio, e oiço os vendedores de jornais, vindos do Terreiro do Paço, pela Rua Augusta, abraçando os molhos do periódico que tinha acabado de sair apregoando: “A Merda! Cá está a Merda! Saiu a Merda! Saiu agora a Merda!” Comprei um exemplar e arrumei-o na minha colecção de jornais da Revolução. Está aqui. Ainda um dia o podereis ler. Depois lavai as mãos.
A liberdade de expressão também se manifestou, e exuberantemente, de um modo, que foi o de escrever nas paredes dos prédios, nas pedras dos passeios e até nos monumentos, e não só escrever como fazer pinturas com variadas cores. Naqueles dias andei pelas ruas a fotografar as pinturas das paredes. Conservo-as como recordação mas são de fraca qualidade (…)
Os escritos nas paredes (…) quanto ao que diziam era o que se poderia esperar da categoria dos seus autores, jovens, descontraídos, senhores da situação. Mas também havia escritos que merecem memória, como este: “Abaixo os órgãos de cúpula.” E estoutro, de autoria de algum inimigo do Partido Comunista então dirigido por Álvaro Cunhal: “Vamo-nos treinar no tiro ao álvaro” (…)
A liberdade oferecida de surpresa a um povo civicamente atrasado, de elevada percentagem de analfabetismo e acentuado nível de miséria, analfabetismo e miséria que o salazarismo se esforçava por manter como sinais de virtude, o que muitas vezes foi exaltado pelos Deputados do Parlamento da época, iria, essa liberdade, originar situações de grande desequilíbrio social, como de facto se verificou. Recordo uma tarde em que me encontrei, no meu bairro, junto do restaurante Canas, com um colega de profissão, homem culto e democrata consciente, o Joel Serrão elevados, pouco depois do 25 de Abril. Estávamos no passeio, parados, conversando. O sítio tem muito movimento o que provoca algum aperto aos transeuntes, mais as cadeiras e mesas que o restaurante tem cá fora, para o café. Como estávamos, porém, em liberdade, andavam dois matulões a jogar à bola no dito passeio com evidente incómodo para quem passava. Chama a atenção do meu interlocutor para o caso, e ele, acentuando vagarosamente as palavras, amansou a minha censura dizendo: É certo, mas a liberdade aprende-se!
Onde, e como, se o aprendiz dessa mesma liberdade, em nome dela mesma, tem a liberdade de não a aprender?
Certo dia tomei um eléctrico. Sentei-me e vi noutro banco um sujeito, um democrata, que puxou de um cigarro, o acendeu e se pôs a saboreá-lo expelindo fumaças. Já nesse tempo era proibido fumar nos transportes públicos, desde há muito. O revisor aproximou-se do homem e chamou-lhe a atenção para o caso: olhe aqui não se pode fumar. O passageiro teve um sobressalto, fixou o revisor com o sobrolho carregado, e disparou. O quê?!... O fascismo ainda não acabou?!
(…)
Esta euforia da Liberdade, de cada um poder fazer o que lhe apetecer sem ter que dará satisfações a ninguém, ajustou-se tão bem ao espírito dos portugueses como antes se ajustara, nos tempos da ditadura, o peso da servidão."
Rómulo de Carvalho,
in Memórias (2010), Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 300-309.
in Memórias (2010), Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 300-309.