terça-feira, 19 de outubro de 2010
“CAVAR” E “REGAR”
A propósito de um dos membros portugueses da Royal Society, o Padre Teodoro de Almeida, o autor da "Recreação Filosófica", recupero um dos textos do meu livro "A Coisa Mais Preciosa que Temos" (Gradiva) sobre ciência e ensino (não terá perdido a actualidade apesar de ter surgido entretanto alguma Física moderna nos programas do 12º ano):
Teodoro de Almeida, padre setecentista da congregação dos Oratorianos, e um dos primeiros defensores em Portugal das ideias de Newton, escreveu (o português foi um pouco modernizado):
“A dois fins se costumam aplicar os que se dedicam aos estudos da Natureza. O primeiro é adiantar os conhecimentos das verdades maravilhosas que nela se encerram. O segundo é o de facilitar estes conhecimentos e pô-los de tal maneira patentes que todos possam, com uma leve atenção, participar do gosto e utilidades que consigo trazem. Há uma semelhança com os rios caudadosos que, por vezes, profundamente altos e tendo uma vigorosa corrente dentro de estreitos limites, cavam nas íntimas entranhas da Terra e dela tiram os tesouros que, fechados e escondidos nela, nenhuma esperança davam aos mortais de lhes serem patentes; outros rios, dilatados por campos abertos, com plácido movimento e pequena altura, regam muito mais espaço, abrangem a muitos mais povos e se podem passear sem perigo e sem susto. Assim, os que não devem à Natureza o vigor de cavar em novos descobrimentos devem empregar-se em facilitar a todos a inteligência das verdades já descobertas.”
Este texto do grande pedagogo português deixa bem claro os dois tipos de pessoas que cultivam a ciência:
- Os que fazem avançar a ciência, diríamos hoje os cientistas ou investigadores científicos. Note-se que as palavras “ciência” e “cientista” remontam apenas ao século XVIII. Mas Sir Isaac Newton, no século XVII, foi decerto um cientista “avant la lettre”.
- As pessoas que, detentoras de uma boa formação científica, espalham a ciência, diríamos hoje os professores e divulgadores de ciências. Teodoro de Almeida, ao espalhar as ideias newtonianas, pertenceu a este último grupo.
Tal visão baseada na dicotomia entre profundidade e amplitude – “cavar” e “regar” – é naturalmente esquemática. Há, por exemplo, cientistas que conseguem tanto “cavar” fundo como “regar” extensivamente. São tão bons descobridores como divulgadores. Podíamos referir, no século XIX, o físico inglês Michael Faraday que, além de ter descoberto a influência do magnetismo sobre a electricidade, foi o autor de livros como “Sobre a Unificação das Forças da Natureza” ou “História Natural de uma Vela” direccionadas a um público juvenil e, nos nossos dias, o físico norte-americano Steven Weinberg, que, além de ter recebido o prémio Nobel da Física de 1979 pelos seus trabalhos relativos à unificação das interacções, escreveu livros como “Os Primeiros Três Minutos” e “Sonhos de uma Teoria Final” destinados ao grande público.
Muitas vezes se eleva justamente o papel dos grandes descobridores (como acontece com a atribuição do Nobel, que não existia no tempo de Newton ou Faraday). Mas também muitas vezes se esquece o papel daqueles, muito mais numerosos, que, pelo seu desempenho pedagógico, permitem que a compreensão da ciência chegue mais longe, tanto através da escola como por outros meios e que permitem afinal que os descobridores possam surgir (Newton e Weinberg fizeram estudos universitários em Cambridge e Harvard, respectivamente, enquanto Faraday chegou à ciência através de sessões públicas realizadas pela Royal Institution de Londres).
Em Portugal quase não há prémios para distinguir os professores de ciências. Falta entre nós aprofundar o amplo esforço, que felizmente se iniciou, para debelar séculos de atraso na ciência e na educação científica. Note-se que Newton, não obstante os méritos de Teodoro de Almeida e de outros, nos chegou com muitos anos de atraso e que um eventual Faraday português não teria encontrado uma “Instituição Real” lusitana que fizesse vingar os seus talentos (nem sequer teria conseguido fazer a 4.ª classe, uma vez que esta não estava, entre nós e no século XIX, ao alcance das classes populares). Por isso, tanto quanto reconhecer o mérito daqueles que chegam mais longe na empresa científica (e é relevante que se fale dos portugueses que descobrem planetas extra-solares ou que especulam que Einstein pode estar errado a respeito da invariância da velocidade da luz), importa promover o estatuto de todos aqueles – nomeadamente os professores – que fazem a ciência chegar a mais gente, irradicando a iliteracia científica.
A nossa escola ainda não reconhece como devia a excelência. Vale o mesmo aquele professor que “facilita a todos a inteligência das verdades já descobertas” como um outro que se limita a cumprir o ponto, debitando monotonamente programas desactualizados. Um dos problemas da educação científica em Portugal é precisamente a falta de ligação entre o que se ensina e o que modernamente se sabe. Os programas ignoram quase por completo os temas mais actuais da ciência. Para só falar na Física, os programas do ensino secundário quase não falam da estrutura da matéria (assunto que é deixado para a Química, mas que foi uma das contribuições mais importantes da Física do século XX, e que está na base dos desenvolvimentos da electrónica, novos materiais, biologia molecular, etc.) nem da unificação das forças (um dos temas de ponta da Física contemporânea). “Rega-se” ignorando o que se ”cavou”. Um estudo efectuado pelas Sociedades Portuguesas de Física e de Química e apoiado pelo Instituto de Inovação Educacional e pela Fundação Gulbenkian pôs precisamente o dedo da ferida: num inquérito a 1500 professores de Física e Química, a maioria reconheceu não estar preparada para ensinar os temas científicos maiores do século XX. Não significa isto que não reconheçam lacunas em assuntos clássicos, como a mecânica de Newton, o electromagnetismo de Faraday ou ainda a termodinâmica. Mas quer simplesmente dizer que se sentem mais inseguros nos temas mais modernos.
A preparação ministrada no ensino superior a futuros professores esforça-se, em geral, por seguir os programas curriculares do básico e secundário que teimam em continuar antigos mesmo quando, por vezes, são renovados. Os professores do ensino básico e secundário são vítimas da educação que tiveram e fazem eles próprios, ainda que involuntariamente, novas vítimas... Não falar hoje da interacção das forças no ensino é comparável a não ensinar Newton, no século XVIII, ou não ensinar Faraday, no século XIX. Os jovens não são convidados a “passear sem perigo e sem susto” pelas “verdades já descobertas”. Não vêem água nenhuma que lhes mate a sede. Continuando a usar a metáfora fluvial de Teodoro de Almeida, o ensino está uma verdadeira "seca"!
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1 comentário:
Versos à toa:
Como os rios no seu leito
vão cavando ou se espraiando,
vão-se os homens afirmando
qualquer deles ao seu jeito:
uns quantos investigando
de que modo o mundo é feito,
outros tantos divulgando
o respectivo conceito!
Uns se chamam professores,
entre os quais os humanistas;
outros investigadores,
hoje em dia cientistas.
Todos no fundo trabalham
em vista tendo o progresso:
pelos avances que espalham,
sua missão não tem preço!
Aos rios, pois, compará-los,
sem pretender igualá-los,
é metáfora acertada
que merece ser louvada!
JCN
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