terça-feira, 27 de março de 2007
Uma defesa do método científico
“A maior parte das instituições requerem fé ilimitada; mas, a instituição científica faz do cepticismo uma virtude”.
Robert K. Merton
Esta frase resume, de forma exemplar, o extraordinário valor da ciência. Contrariamente ao que muitas vezes se afirma, não é apenas o método científico que ajuda os cientistas a eliminar hipóteses e a revelar mais e de forma mais profunda a realidade de que fazemos parte. Há um outro elemento extremamente poderoso: a existência de uma comunidade científica que é constituída por pensadores particularmente cépticos dos achados dos outros. Para um cientista fazer passar uma ideia verdadeiramente inovadora é necessário convencer uma imensidão de cépticos. E isso, por vezes, representa várias gerações deles.
A procura do conhecimento, nas fronteiras do desconhecido requer ideias novas, métodos sólidos e medições precisas. Mas, acima de tudo, requer uma atitude de não aceitar justificações irracionais, ou presumir que o conhecimento não possa ser aprofundado e detalhado. A natureza humana tem uma grande facilidade para aceitar dogmas, mas a ciência funciona porque há comunidades científicas que não permitem que o dogma se estabilize. O famoso físico Richard Feynman sintetizou, uma vez, numa frase a sua ideia de ciência: “a Ciência é a crença na ignorância dos peritos”.
Os debates e discussões no interior da ciência são um dos indicadores mais directos da sua vitalidade. Terá a velocidade da luz sido diferente no passado, como propõe, polemicamente, o físico português João Magueijo? Durante o Séc. XIX houve um debate intenso sobre se havia átomos e moléculas; hoje o assunto está decidido. Há uma dezena de anos, questionava-se sobre se os priões realmente existiam ou se se tratava de um mero artefacto. Hoje sabemos que eles são os responsáveis pelas conhecidas encefalopatias espongiformes.
O método científico não é um dogma dos cientistas: é apenas o método mais eficaz que a humanidade já conseguiu inventar para colocar questões sobre a realidade e obter respostas consistentes. Nenhum outro lhe chega perto. Galileu é a figura que surge associada à sua criação. Mas, é herdeiro de uma tradição de quase de três mil anos.
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18 comentários:
Terá o método cientifico limites ? Podemos usar o método cientifico, para responder a esta pergunta ?
A dúvida de Oceanos trouxe-me à memória o "Argumento da Pedra" com que, adolescentes, tentámos atrapalhar o nosso Professor de Religião e Moral (nos idos da década de 60).
Se Deus é omnipotente então é capaz de criar uma pedra, que sendo tão pesada nem Ele pode com ela. Mas, se não pode com ela, então não é omnipotente. Mas, se pode com ela, então não consegue criar a tal pedra que nem ele pode com ela, por isso não é omnipotente.
O Sr. Padre Professor explicou-nos e demonstrou-nos o nosso erro de uma forma tão teologicamente complicada que nos deu uma "seca" durante aulas e aulas. Claro que não percebemos nada da teológica explicação mas a "seca" foi de tal ordem que ainda hoje me arrepio só de pensar nela.
Se PGM responder a Oceanos não sei se terei a coragem de ler a resposta. Gato escaldado de água fria tem medo!
Paulo Mota,
E que dizer dos cientistas que têm convicções baseadas na fé?
Lembro-me de Carl Sagan que acreditava na existência de extraterrestres, mas dizia que não tinha nada que provasse a sua existência. Era uma fé, uma intuição, que lhe dizia que eles existiam.
Será que o progresso científico não está, em parte, dependente da fé de alguns cientistas, fé essa que acaba posteriormente por ser confirmada por métodos científicos.
Não creio que o progresso científico seja 100% racional; há ali sempre uma pitada de fé e de intuição.
O filósofo Gaston Bachelard, atribuía uma grande importância à imaginação na investigação científica. Para este autor era uma forma de os cientistas não se limitarem aos factos científicos de um determinado momento, mas pudessem romper com o que era, de alguma forma, consensual propondo novas explicações.
Assim, embora nem todos os métodos científicos sejam positivistas, serão, de certeza, racionais.
Cumprimentos,
José Oliveira
Tomar
é certo que a ciência permitiu que o homem evoluisse de uma forma inquestionável. mas nestes nossos tempos, o que a ciência não prova não existe. a ciência no tempo de galileu não podia provar o que ele dizia, embora saibamos que era verdade. não cai a ciência contemporânea nesse mesmo erro? não será possível que muitas coisas que agora parecem idiotas sejam banais daqui a umas dezenas de anos, quando a ciência puder prová-las? acho que a ciência não é humilde e não deixa espaço para as suas imperfeições. parece-me um dogma, como foi a religião.
maria
Eu também sou um apologista da ciência, essa poesia do concreto, mas também sinto repulsa quando a ciência se transforma em cientismo, em único caminho para a verdade.
A tendência actual tenta encontrar uma explicação cientifica para tudo. Pergunto assim se é possível aplicar o método científico a todas áreas do saber humano? E se só o conhecimento cientifico é verdadeiro conhecimento?
Cumprimentos e Felicidades para o blog.
Cá vou eu novamente pôr em risco convicções profundamente entranhadas. Deve ser por isso que não obtenho respostas directas (não vejo outra razão, pois sou educado e a minhas questões são sem dúvida pertinentes)
O Sr. Paulo Mota diz:
«O método científico não é um dogma dos cientistas: é apenas o método mais eficaz que a humanidade já conseguiu inventar para colocar questões sobre a realidade e obter respostas consistentes»
A primeira frase é obviamente a negação da segunda, já que esta última é um dogma enraizado na mente dos cientistas. E o dogma é: o método científico é o método mais eficaz que a humanidade já conseguiu inventar para colocar questões sobre a realidade e obter respostas consistentes. E por que razão é um dogma? Por isto: não por ser uma falsidade, mas porque é algo que os cientistas – apesar de todo o seu “liberalismo” filosófico e cepticismo epistémico – não estão dispostos a abdicar. E por que motivo não estão? Por isto: porque a ciência funciona e tem apresentado resultados eficientes. Daí extrai-se, abusivamente, penso, que por não ter havido até agora melhor método (a presunção) também não poderá surgir melhor método que o cientifico para explicar a realidade. Mas nada nos força a aceitar essa conclusão, já que não há qualquer necessidade nela. Aliás, há partes da realidade que a ciência não faz a menor ideia como explicar. É por essa altura, julgo, que os cientistas largam o método experimental e começam a ler a bíblia (e outras sacralidades) ou tentam especular filosoficamente sobre o que os aflige. É também por essa altura que todas as pretensões de superioridade metodológica se esfumam.
Os cientistas (os bons) são em geral anti-dogmáticos em relação a quase tudo, inclusive os seus resultados, mas são dogmáticos relativamente ao núcleo duro do seu método, uma vez que não estão dispostos a aceitar sequer que possa haver um melhor. Isso é evidente. E mais do que uma questão de teimosia metodológica é uma questão de poder. Quem detém o poder não o larga com facilidade.
Obrigado e saudações
jaime vale:
penso que o "Argumento da Pedra" pode ser enquadrado num âmbito do famoso Teorema da Incompletude de Gödel.
de modo simplista, o teorema de incompletude afirma que um conjunto axiomático consistente admite teoremas não demonstráveis e que não há maneira de decidir se a teoria assente nesses axiomas é consistente.
isto é:
suponhamos o axioma "um ser omnipotente tudo pode fazer".
ora, como bem expõe o "Argumento da Pedra", o teorema: "um ser omnipotente pode criar uma pedra cujo peso não suporte", não é demonstrável.
a solução em matemática passa por expandir o sistema axiomático de modo a abranger estes teoremas "pescadinha de rabo na boca". por exemplo, chamando "Omnipotência de Tipo 1" ao caso anterior, construamos o sistema axiomático seguinte:
axioma 1: "um ser dotado de Omnipotência de Tipo 2 pode fazer tudo o que um ser com Omnipotência de Tipo 1 pode";
axioma 2: "um ser dotado de Omnipotência de Tipo 2 pode fazer tudo o que um ser de Omnipotência de Tipo 1 não pode".
neste caso, o teorema: "um ser de Omnipotência de Tipo 2 pode fazer uma pedra cujo peso não é suportado por um ser de Omnipotência de Tipo 1"
é facilmente demonstrável pelos axiomas 1 e 2.
No entanto, o "Argumento da Pedra" volta à carga se propusermos um novo teorema2: "um ser com Omnipotência de Tipo 2 pode criar uma pedra cujo peso não seja suportado por um ser com Omnipotência de Tipo 2".
este teorema já não é demonstrável pelos axiomas 1 e 2, pelo que se tem de voltar a extender o sistema axiomático outra vez e assim sucessivamente.
nota: os matemáticos presentes que me corrijam por favor, caso tenha dito alguma asneira, já lá vão uns anitos que não pego nisto;
Brevemente,
1. Claro que o método científico tem limites. A ciência só pode responder a questões para as quais está preparada para responder numa determinada época, o que depende do estado do conhecimento em geral e das tecnologias disponíveis.
2. A fé numa ideia tanto pode ajudar – a não desistir perante os habituais maus resultados, dificuldades da técnica, etc - como atrapalhar. Todos os cientistas têm as suas hipóteses de estimação. Gostam mais de umas do que de outras. Por vezes por preconceito. Mas, a observação controlada e a experimentação devem servir para decidir se a nossa hipótese está certa ou não. Muitas vezes não é possível decidir e temos que aguardar que uma evolução dos conhecimentos ou da tecnologia permitam responder à questão.
3. O cientista não é uma máquina racional. Kekulé sonhou uma noite com a estrutura do benzeno formando um anel, o que constituiu o seu Eureka!. Muitas coisas da experiência pessoal, personalidade, etc, se jogam na actividade de um cientista. Mas, a questão essencial não está no maior ou menor racionalismo do cientista A ou B: está em que o conhecimento é produzido e testado por um vasto conjunto de pessoas, muitas das quais nunca se chegam a conhecer. Foi para essa faceta do processo científico que eu quis chamar a atenção.
4. Lamento, mas não acho que a ciência seja cientismo nem que haja falta de humildade, em geral (há sempre excepções). Lembro-me que, há anos, num programa de televisão, se colocava o problema da instalação de um aterro numa zona com muitos aquíferos que podiam ser contaminados. O meu colega afirmava que havia uma probabilidade muito elevada de isso acontecer. Do outro lado, o autarca perguntava, intencionalmente: mas, pode garantir-me que de certeza isso vai acontecer? Ao que o meu colega respondeu o que honestamente podia responder: não lhe posso dar a certeza! Isso bastou para o autarca …
Fred Sólon disse...
Cá vou eu novamente pôr em risco convicções profundamente entranhadas. Deve ser por isso que não obtenho respostas directas (não vejo outra razão, pois sou educado e a minhas questões são sem dúvida pertinentes)
Não há uma única questão no seu comentário, que me parece bastante sofismático, aliás.
Sr. Paulo Mota
"Questão" deveria ter sido entendido como "problema". Mas se não entendeu o que eu queria “questionar”, repito:
O maior dogma da maioria dos cientistas é aceitarem acriticamente que o seu método é o melhor porque não há nenhum que se lhe compare em termos de resultados. Este é um claro apelo à ignorância: se não conhecemos melhor, então não há melhor. Isto é uma conhecida falácia.
Além desta há outras questões pertinentes no meu comentário, como por exemplo a incapacidade do método científico poder dar respostas a certos porquês que saem claramente do seu âmbito. Mas isto é capaz de ser demasiado complicado de perceber (ou não convém ser percebido) e fica assim para outra ocasião...
Saudações
teste
Eu não disse que não há melhor no sentido de 'não pode haver melhor'. Foi no sentido de que não existe - no universo do que existe, não do que hipoteticamente poderá existir -
Se tiver um método melhor olhe que é candidato ao Nobel.
É esse o significado de âmbito: só se aplica aí.
A visão segundo a qual os cientistas são individuos cépticos e movidos pelo prazer da descoberta é uma visão romântica da ciência, desde há muito desacreditada.
Como qualquer outra actividade, a ciência está subordinada à lógica do mercado, e por isso a sua finalidade primordial não é descobrir qualquer lei da natureza, mas sim produzir bens e serviços lucrativos. Como se verifica em qualquer investimento económico, «quem» financia a actividade cientifica está à espera de um retorno, de um proveito, que não tem nada a ver com um prazer do conhecimento. Disto resulta que a distinção que, eventualmente, se faça entre a ciência em si mesma e a utilização que lhe é dada é meramente teórica, pois as duas são cada vez mais indissociáveis. É que a ciência não é nenhum fim em si mesmo, mas é antes - e cada vez mais - um meio de que os homens se servem para atingir outros fins. É por isso que, por exemplo, o desenvolvimento da quimica é impulsionado pelos interesses de mutinacionais farmacêuticas, e que o desenvolvimento da astrofisica se deve muito aos interesses militares.
Por outro lado, o dito cepticismo dos cientistas também é contestável. Sendo seres humanos têm valores, emoções e «pré-conceitos» que influenciam o seu trabalho e a sua perspectiva da realidade. A começar pelo preconceito de que a visão cientifica da realidade é independente do sujeito gnoseológico, daquele que conhece. Ora, isto chama-se dogmatismo, já que se entende que é possivel conhecer a realidade tal como ela é.
A propósito disto chamo a atenção para as últimas «descobertas» do cientista e céptico António Damásio. Este afirmou, em entrevista ao Público, que os indíviduos calculistas (como os ditadores) sofrem de um qualquer deficiência neurológica, pois tomam determinadas decisões sem sentir qualquer compaixão pelo outro. E daqui ele conclui que a ciência está apta para distinguir as éticas correctas das incorrectas (chegando ao ponto de afirmar que Kant, como antes Descartes, se enganou!*). Ora, o que eu aqui vejo subentendido é um juízo de valor do Damásio, pois está a avaliar uma atitude partindo do pressuposto de que só é moralmente correcto (ou saudável, na sua linguagem cientifica e supostamente neutra) quem não rejeita o valor da compaixão.
Mas verdade seja dita: esta ideia de Damásio de certa forma confirma a sua teoria acerca da impossibilidade em separar a razão das emoções. De facto, subjacente à sua análise racional estão determinandos valores que influenciaram a sua conclusão de que há valores saudáveis e normais, e que por sinal coincidem com os primeiros...
*Diga-se que as incursões de Damásio pela filosofia só mostram como ele não percebeu nada de Descartes, de Kant ou mesmo de Espinosa.
Caro Luis Pedro,
Diga lá onde é que se pode ganhar assim tanto dinheiro, porque me dava jeito.
As grandes descobertas científicas foram todas realizadas sem uma previsível aplicação económica. foram descobertas porque esses cientistas tinham curiosidade em perceber porquê?. Que tenham servido para desenvolvimento tecnológico e material só significa que é um conhecimento muito sólido e que constitui uma muito boa explicação da realidade.
Dogmatismo é afirmar que a realidade não pode ser conhecida! Convença-se de que a parede à sua frente é um produto da sua imaginação e caminhe através dela. Vai ver que consegue ... um galo na cabeça (essa é a minha previsão).
Claro que os cientistas têm preconceitos. Como toda a gente. Mas, os preconceitos não são todos no mesmo sentido. Em ultima análise, a soma deles anula-se, porque a ciência é uma actividade colectiva envolvendo um sistema fiável para testar ideias diferentes. Continuo a afirmar que a parede está lá!
PGM disse:
«é apenas o método mais eficaz que a humanidade já conseguiu inventar para colocar questões sobre a realidade e obter respostas consistentes. Nenhum outro lhe chega perto»
Parece-me que ainda sei ler. "Nenhum outro lhe chega perto" é uma expressão que exclui todos os outros métodos, conhecidos e não conhecidos.
PGM disse:
«Dogmatismo é afirmar que a realidade não pode ser conhecida!»
Não. Isto é apenas cepticismo. Dogmatismo é supor que de todas as vezes que vamos contra uma parede faremos um galo porque isso vai de encontro com o que dizem as leis da física. Mas pode haver situações em que as leis da física não se aplicam, nada o impede do ponto de vista lógico ou metafísico.
Olhe que não... Olhe que não, Paulo Mota. Um céptico é aquele (como disse o céptico acima) que afirma que não é possivel conhecer a realidade. Pirro, diz-lhe alguma coisa? E o empirista Hume, conhece? Eram ambos cépticos e punham em causa a possibilidade do conhecimento. Dogmático era Descartes que, apesar de fazer uso da dúvida metódica e de ser um solipsista temporário, acreditava na possibilidade de se atingir a verdade.
Mais: para quem, como o Paulo, se considera um cientista céptico, é muito estranho depois ter tantas certezas acerca daquilo que os seus sentidos lhe «dizem» acerca de uma parede. Você vê uma parede, sente-a quando lhe bate, não é? Mas ela também tem côr, não é verdade? Ou será que não? Hummm... Parece-me que a dúvida metódica cartesiana não faz parte do seu método de trabalho. As suas certezas cientificas parecem-me muito semelhantes às certezas do senso comum, não acha?
Quanto à ciência ser uma actividade colectiva, isso não a torna imune aos preconceitos, até porque os preconceitos de que eu falava no outro post são mais colectivos do que individuais: consistem na partilha de certos valores e principios, conscientes ou não, numa visão do mundo que depois determina aquilo que se pretende explicar ou resolver. Aliás o trabalho em grupo dos cientistas contribuiu também para isso, já que todos estão empenhados em resolver problemas cuja solução é dada por teorias partilhadas por todos de antemão. Como eu disse, a função principal dos cientistas não é descobrir as leis que regulam os fenómenos da natureza, mas sim servirem-se da ciência para produzir serviços que são depois comercializáveis. Você não fica rico com a sua actividade porque é um trabalhador como qualquer outro. Não é você que financia o seu trabalho, e é nessa medida que não é você que decide o que deve investigar ou resolver.
Continuo a pensar que a sua visão do que é a ciência é muito romântica. E este é mais um dos tais preconceitos que é partilhado pelos cientistas e que molda a sua visão do mundo e daquilo em que consiste a sua actividade.
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