No tempo áureo da Antiguidade Grega, três séculos antes de Cristo, o filósofo Epicuro introduziu, não tanto um princípio do prazer (há hoje uma certa confusão à volta da palavra "epicurismo"), mas mais um princípio de fuga da dor ou de procura da tranquilidade.
Epicuro foi contemporâneo do grande matemático Euclides e antecedeu um dos primeiros grandes sábios do helenismo, Eratóstenes de Alexandria, que na senda das ideias epicuristas escreveu o livro Sobre a Libertação da Dor. Epicuro era, de certo modo, um físico-químico, tendo retomado as ideias atomistas do filósofo pré-socrático Demócrito, conhecido por "o filósofo que ri", embora não haja representações fidedignas da sua face. Para Demócrito e para Epicuro todo o mundo é composto por átomos. "Tudo é átomos e espaço vazio", disse Demócrito. Ele tinha boas razões para rir uma vez que a sua ideia estava certa, apesar de na época não ser passível de confirmação experimental.
A mesma ideia foi depois celebrada pelo poeta latino Lucrécio no belo poema De Rerum Natura. Porém, só no século XIX, com o químico inglês John Dalton, o atomismo ficou alicerçado pela interpretação de experiências de química. Hoje sabemos de experiência feita que tudo é feito de átomos e espaço vazio. Por exemplo, nós somos feitos de átomos e espaço vazio, embora os nossos átomos estejam organizados de uma maneira prodigiosa no espaço vazio.
Epicuro foi atomista ao ponto de imaginar que também os deuses, que na altura estavam no Olimpo, eram feitos de átomos e espaço vazio. Mas os átomos dos deuses não se combinavam de nenhuma forma com os átomos dos homens. O filósofo recusou, portanto, a ideia de os deuses serem senhores das acções dos homens. Estes eram livres e não tinham que ter medo dos deuses, não tinham que sofrer a dor devida a eventual castigo dos deuses. O prazer, no sentido de ausência de dor, foi erguido como trave-mestra da sua filosofia: a procura dele era o impulso para uma vida que merecesse a pena ser vivida. A ideia é tão simples e atractiva que não se estranha que os seus seguidores se tivessem multiplicado e chegado até aos nossos dias. Só se estranha é que não haja mais.
Um dos grandes prazeres da vida é saber. O prazer da descoberta científica está bem patente na moderna obra do físico norte americano Richard Feynman, que é o autor do livro O Prazer de Descobrir as Coisas. Quando Feynman recebeu a notícia do Prémio Nobel, ficou naturalmente contente, mas disse que não lhe interessava ir recebê-lo porque o verdadeiro prazer tinha sido antes, precisamente o "prazer de descobrir as coisas". Mudou de ideias - tendo ido levantar o avultado prémio - depois de a mulher lhe ter explicado que a sua obsessão pelo prazer solitário estava a retirar prazer a outros... Não foi decerto por acaso que Feynman foi buscar inspiração às doutrinas de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, quando afirmou numa famosa palestra de 1959: "Há muito espaço lá em baixo!". Queria ele dizer que os átomos muito pequenos vogavam no imenso espaço vazio, pelo que era possível movê-los e arranjá-los. Foi o início da nanotecnologia, a engenharia que pretende fazer objectos átomo a átomo e que nos promete "admiráveis mundos novos". Se com a ciência o mundo é compreendido, com a técnica ele é transformado, desejavelmente para benefício do homem, mas aí já não se trata apenas de uma questão de ciência. Somos feitos de átomos, regulados por leis, mas dotados de livre arbítrio. Os deuses não mandam em nós!
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8 comentários:
É reducionista tomar Epicuro como um materialista e ateu da antiguidade clássica.
Muito dos seus textos apresentam uma filosofia de vida muito especial, uma espécie de espiritualidade sem Deus.
Se não sabiam comecem por aqui.
Os estóicos é que não gostavam muito dos epicuristas. Deviam precisar dos deuses para ter algo com que apatizar...
Obrigada, Carlos. Uma das grandes mais valias de um blogue como este é poder ler um post destes para começar o dia. É, sem dúvida, um prazer.
No essencial, considero isto um bom texto, mas com inevitáveis limitações (estamos todos a escrever ao ritmo da net).
O epicurismo/epicurianismo (tanto faz), não é uma filosofia de "fuga" à dor e aio castigo, como me parece, talvez injustamente, depreender-se do que V. escreve.
É uma filosofia pela positiva, da conquista do prazer. Neste aspecto, embora isto seja discussão complicada, principalmente para mim que misturo ecleticamente epicurismo-estoicismo-hedonismo, o estoicismo está fora desta discusão. Mas reduzir a discussão à recusa da dor dá grande confusão entre epicurismo e hedonismo.
Claro que não estou a criticá-lo, apenas a clarificar. Por isto, até me sirvo de uma frase sua para o que julgo ser uma das características essenciais do epicurismo: "Um dos grandes prazeres da vida é saber." E ter o prazer de se ter transformado esse saber em qualquer coisa eticamente importante. Com isto, talvez o que eu ache mais importante no epicurismo: a virtude é boa porque nos dá prazer.
Ainda uma coisa, marginal. Este blogue está excessivo para as ocupações médias dos leitores interessados. Moderem-se, meus amigos, dêem-nos tempo de digestão. Estou com dificuldade em acompanhar a pedalada!
Também tenho experiência da blogosfera para vos alertar para o risco deste ritmo de lançamento. Se depois o reduzem, os leitores abandonam-vos rapidamente, por perderem o hábito.
Ao nível a que escrevem, uma entrada por dia já será muito. Desculpem, não quis ser "patronizing".
Caro JVC
Aceito a crítica relativa à possível
confusão entre epicurismo e hedonismo no que respeita à "fuga da dor".
E também aceito a crítica relativa
ao ritmo elevado: leve-o à conta
de exageros de principiantes na
blosfera.
CF
Olá Manel!
Obrigado eu... Gostei muito da
marcha Centopeia (esta é uma
"private joke").
Carlos
Eheheh... foi de coração, ainda bem que te agradou. ;)
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