Pouca gente saberá que Samuel Jesserun de Mesquita existiu. Sendo judeu, o seu nome, à semelhança do seu corpo, deveria ter sumido no ano 1944, em Auschwitz, sem deixar qualquer rasto.
Mesquita foi um pacato professor de origem portuguesa, nascido no ano de 1868, em Amesterdão, que ensinou técnicas de gravura artística na Escola de Arquitectura e Artes Decorativas de Haarlem. Criou também uma obra que ficou desamparada na noite de 31 de Janeiro para 1 de Fevereiro desse ano de 1944, quando tropas nazis o levado de sua casa, com a mulher e o filho.
Um professor-artista sem ninguém, nem nada que o recorde, depressa desaparece na bruma dos tempos.
Quis, no entanto, o destino que Mesquita se cruzasse com um dos maiores artistas gráficos do século XX, autor de misteriosas e excepcionais imagens que deliciam os matemáticos: Maurits Cornelis Escher.
Escher é conhecido e reconhecido. E é-o justamente. Mas, talvez, não o fosse, ou não o fosse com a mesma grandeza, se o mestre Mesquita não tivesse surgido na sua vida.
Aos treze anos de idade, Mauk, como era chamado familiarmente o jovem Escher, entrou para a escola secundária. Reprovou por duas vezes e saiu em 1918 sem o diploma, ainda que quem hoje reveja os seus ensaios académicos não possa deixar de pôr em causa a apreciação que os professores fizeram deles.
O pai, percebendo o seu talento para as artes, que se evidenciava sobretudo no trabalho minucioso em madeira, a que dedicava grande parte do seu tempo, mandou-o estudar Arquitectura na escola que Mesquita dirigia.
Escher logo deu a perceber que o seu lugar também não seria nesse curso. Com a apreensão do pai e o incentivo do director, mudou-se para Artes Decorativas, onde, sob orientação desse homem de aspecto calmo e olhar penetrante, desenvolveu magistralmente as técnicas que iriam marcar a sua obra, entre as quais a xilogravura.
Mas, Escher era um espírito peculiar que não se dava bem em escolas. Vendo isso, Mesquita desobrigou-o da condição de aluno e aconselhou-o a seguir a sua vida. Este acontecimento não pôs, no entanto, fim a uma relação que, mais do que de professor e aluno, já era de profundo respeito, admiração e amizade. Nos vinte e dois anos que se seguiram, até à morte do professor, o contacto que mantiveram foi estreito e influenciou significativamente o legado de ambos.
Com frequência, Escher mandava cópia dos seus trabalhos ao mestre, aceitando sugestões; Mesquita pedia opiniões ao ex-aluno. Escher tinha, num local bem visível do seu estúdio, a fotografia do mestre; Mesquita tinha no estúdio, pregada na porta, a xilogravura Ar e Água do ex-aluno.
Quando, em finais de Fevereiro de 1944, Escher entrou na casa vazia de Mesquita e viu as suas gravuras espalhadas pelo chão, revoltas pelo vento agreste que entrava pelas janelas partidas e pela porta deixada escancarada, só teve um pensamento: recolhê-las e levá-las para um lugar seguro.
Logo no ano seguinte, e apesar da grande mágoa, muito próxima da depressão, que aquele acontecimento lhe tinha provocado, entregou essas obras ao Museu da Cidade de Amesterdão e com outras que antes haviam sido guardadas, organizou uma exposição em memória do seu professor.
De uma dessas gravuras Escher não conseguiu, porém, separar-se: é aquela que o leitor pode ver ao lado e que “foi encontrada junto às escadas, mesmo por trás da porta de entrada, calcada pelas cardas das botas dos alemães”. Estas são palavras escritas pela sua mão, imaginamos com que sentimento, no verso da folha.
Documentos consultados:
Crato, N. (1998). Os estranhos mundos de Escher. Expresso, 28 de Novembro, 196-198.
Ernest, B. (1991). O espelho mágico de M.C. Escher. Taschen.
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