sexta-feira, 16 de março de 2007

Geração Gradiva II

A Gradiva, pela mão de Guilherme Valente, desempenhou um papel decisivo em Portugal, no que respeita à compreensão pública da ciência e à captação de jovens talentosos e entusiasmados pela ciência. A desvantagem de ser português era ainda maior antes da Ciência Aberta. Um londrino podia entrar numa qualquer livraria e comprar excelentes livros de divulgação científica — mas em Portugal isso não acontecia antes do aparecimento da Gradiva e depois da morte de Bento de Jesus Caraça e do fim da sua colecção Cosmos.

Para mim, ler os livros de Carl Sagan (Os Dragões do Éden impressionaram-me mais do que Cosmos) e de Hubert Reeves foi uma autêntica e maravilhosa libertação espiritual. Aquilo nem parecia ciência — não parecia a ciência bolorenta e tonta que o ministério da educação já naquela altura mandava para cima da cabeça dos pobres dos estudantes. Mas afinal era aquilo a verdadeira ciência.

Sensação semelhante tive quando descobri, ainda antes da Internet, os livros de filosofia que vinham do estrangeiro — chegavam-me pelo correio, e os editores e livreiros eram suficientemente generosos para me enviarem catálogos gratuitamente. Para alguém quase a acabar uma licenciatura em filosofia foi uma revelação. Afinal, a filosofia não tinha acabado algures com Kant e Hegel. Estava viva e actuante, e era muito estimulante. Poder ler aqueles livros foi a minha segunda libertação espiritual, e a confirmação de que a filosofia era o que eu queria. Tudo mudou: acabei por fazer sozinho uma espécie de segunda licenciatura secreta, algo paralela à que estava a terminar na faculdade.

Quando organizei o volume A Cultura da Subtileza, de M. S. Lourenço, na Gradiva, estava cada vez mais perplexo com o panorama editorial nacional em termos de filosofia. Tantos livros tão estimulantes que eu tinha em casa — e muitos mais que eu não tinha tempo ou dinheiro para comprar — mas os meus colegas, e o grande público, de nada sabiam. Muitos deles até acabavam por se zangar com a filosofia, que achavam desinteressante.

Enchi-me de impudência e propus uma ideia maluca ao Guilherme Valente: uma colecção de filosofia, na editora que eu mais amava, por causa da Ciência Aberta. Disse-lhe até que não me importava de traduzir o primeiro livro, de Thomas Nagel (Universidade de Nova Iorque) gratuitamente. Marcou-se uma reunião, levei-lhe uns livros e uns catálogos, falei-lhe da imensidão de livros desconhecidos no país e que tão importantes seriam para os mais novos, para os estudantes e para o grande público — a situação na filosofia era como a situação na ciência antes da Ciência Aberta. Não havia fortes razões para um editor de uma casa respeitável como a Gradiva aceitar os sonhos de um tonto que falava de uns livros e autores que ninguém conhecia.

Só uma pessoa de visão poderia ter feito o que fez o Guilherme: aceitou a ideia.

E foi assim que um miúdo em meio de um mestrado desatou a coordenar com o Guilherme uma colecção de filosofia na editora que fazia parte da sua história pessoal. Quando o Guilherme me perguntou que nome haveríamos de dar à colecção, não hesitei um segundo. Tinha passado a noite anterior sem conseguir dormir a imaginar este momento. Sem grande esperança de o convencer, disse-lhe: Filosofia Aberta.

O resto é história. Dirigi esta colecção com muito amor e entusiasmo durante dez anos e tenho a satisfação de não me ter acontecido como aconteceu com o Bento de Jesus Caraça, cuja colecção morreu com ele. Saí por falta de tempo, mas a colecção, felizmente, continua viva e de saúde. E melhor do que continuar um projecto em que se acredita, é ver o projecto a continuar vivo sem nós.

6 comentários:

Desidério Murcho disse...

Muitíssimo obrigado pelas suas palavras!

Joana disse...

Eu devo confessar que fiquei com uma certa alergia a Filosofia no secundário que não passou na licenciatura.

A leitura recomendada de alguns artigos na Crítica foi o início da cura. Continuada com uns livros da Gradiva...

Agradeço efusivamente ao professor Desidério os textos claros, de linguagem acessível e directa, que foram decisivos na minha descoberta da Filosofia.

lino disse...

Meu caro:
Já sabia parte da história mas não com este pormenor. Tinha a noção de que a filosofia, na escola pública, andava muito atrasada, mas não tanto.
Afinal,no fim dos anos sessenta e princípios dos anos setenta (no tempo da outra senhora),ja eu possuía e tinha lido Feuerbach, Nietzsche, Russel, Heidegger, Sarte, Marcuse e alguns outros.
E acho que não me fez mal nenhum, como julgo que sabe.
Quando descobri a Crítica, há mais de 3 anos, foi o despertar.

Um abraço.

Renato Martins disse...

Sem duvida. A colecção Filosofia Aberta é tão acessível que recordo-me que cheguei a ler alguns volumes mesmo antes de entrar para o ensino superior. Esse paralelismo com Carl Sagan é pertinente e é algo que devia ser mais discutido por Portugal e pela Europa. Carl Sagan na ciência, Karajan na Música Clássica, foram individuos que tomaram consciência que as massas tambem podem ser educadas, quebrando assim o monopólio do conhecimento só para alguns. Alguns desses com uma linguagem inacessível, repetindo uma sebenta, e, como dizia Paul Davies, nem percebem bem muitas vezes o que estão a dizer, acabando por entrar em contradições. A filosofia deve descer ao quotidiano, o que quer dizer ( e isto fala-se cada vez mais) ser prática (embora não exclusivamente).

Carlos Fiolhais disse...

Depoimento recebido de Guilherme Valente:

"Li com grata emoção o texto do Desidério. Queria afirmar
para o blog o seguinte:

O meu nome apareceu, de facto, na colecção «Filosofia Aberta», como
coordenador, ao lado do nome do Desidério Mas eu quero que fique
registado que o mérito da colecção é todo dele. Foi ele, afinal, quem
propôs todas os livros, obras admiráveis que vou lendo e continuando a
descobrir, para meu prazer e enriquecimento pessoal, e também à medida que
delas vou necessitando para o combate cívico em que estamos empenhados.

Mas para além da colecção houve um convívio filosófico e humano que muito me enriqueceu, revelando um jovem com uma singular seriedade e coragem
intelectual, uma autoexigência de trabalho e rigor de pensamento e -- muito tocante para alguém como nós -- uma vontade decidida e livre de enfrentar o obscurantismo que continua a sufocar o nosso Portugal.

Em Londres, com muito mérito, o Desidério está a confirmar, seguramente, tudo o que facilmente se adivinhava que faria. É necessário agora que volte. Precisamos dele, é aqui o seu lugar."

Anónimo disse...

Excelente, ó Desidério! Parabéns!!!

Deveras, nada há de mais estimulante do que perseguir um sonho... viva o eterno ideal, já que só ele é real!!! :)

Posto isto, será que o idealismo também está representado nessa colecção? Hope so!

Aliás, já vi aí um título que me interessa: "Será Que Deus Existe?", de Richard Swinburne.

É que estamos mesmo na altura certa para prosseguir o milenar debate do "Deus ou não Deus?"... crentes e ateus! :)

Ah! E este "princípio do testemunho" obviamente agrada-me muitíssimo:

With the absence of any reason to disbelieve them, one should accept that eye-witnesses or believers are telling the truth when they testify about religious experiences.

Ora é isso mesmo que eu faço e sempre senti no relato espantoso desses antiquíssimos livros do Oriente mágico e sagrado...

Rui leprechaun

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