quinta-feira, 29 de março de 2007

Ciência e banha da cobra

No livro Pensar Outra Vez afirmei, meio a brincar, que a palavra "ciência" devia ser banida do vocabulário por causa da confusão conceptual que provoca. A ideia é que a palavra está infelizmente demasiado associada a uma concepção positivista e errada da ciência, que desnorteia o pensamento.

A ideia é que tanto faz se estamos a fazer ciência, história, arqueologia ou filosofia ou matemática — o que faz a diferença é a abertura à discussão pública. Mill viu isso com uma clareza assombrosa, mas infelizmente o positivismo de Comte foi muito mais influente, tal como os neo-positivistas. A ideia de todos os positivismos é que podemos eliminar o factor humano, podemos inventar métodos automáticos de produção de Ciência (com maiúscula, claro): de um lado entram os dados (experiência), acrescentam-se uns pós de raciocínio lógico e matemático, e do outro lado sai a Ciência, objectiva e indisputável, a Verdade verdadinha mais verdadeira que há, sem que nos tenhamos de dar ao trabalho de discutir, duvidar, errar.

Acontece que isto é uma fantasia. Fazer ciência é como fazer qualquer outra coisa intelectualmente séria: temos de avaliar as coisas cuidadosamente, tenhamos ou não metodologias pré-determinadas, navegando muitas vezes à vista e sem bússola. Porque queremos descobrir verdades, procuramos também descobrir metodologias apropriadas ao que estamos a estudar. Mas para nenhum estudo é a leitura de livros sagrados e o respeito reverente pela autoridade um bom método, e para todos os estudos a base de qualquer método sério é a análise crítica das provas e da argumentação.

Nada há de especial na ciência que a diferencie da filosofia ou da matemática ou até da teologia. Todas estas actividades ou se fazem com pés e cabeça — abrindo-se à crítica, à correcção de erros, apoiando-se em provas e na argumentação — ou são fantasias semelhantes à bruxaria. É tão simples como isto. Tanto faz se estamos a discutir a existência de Deus, do calórico ou dos quarks, da Arca de Noé ou do Pai Natal, tanto faz se estamos a tentar descobrir a cura da tuberculose ou a natureza do tempo ou os benefícios do reiki. Em todos estes casos ou se trabalha seriamente — e fazer isso é fazê-lo com abertura crítica, como Mill tão claramente percebeu — ou é uma farsa.

Popper, não sendo positivista lógico, acabou por contribuir para mentalidade positivista actual por causa do seu simples e provavelmente errado critério de falsificabilidade. Entre outras coisas, Popper usa a falsificabilidade para distinguir a ciência de pseudociências como a psicanálise ou o marxismo (os exemplos são de Popper). Só que tem o defeito terrível de dar às pessoas a sensação de que uma coisa pode não ser ciência, por não ser falsificável, mas ser respeitável enquanto actividade intelectual. Mas mesmo que Popper tenha razão — e eu penso que não tinha porque em muitos casos a ciência não é falsificável — o que não é ciência não é coisa alguma de intelectualmente respeitável: é lixo intelectual. O grão de verdade no critério de falsificabilidade é apenas a abertura à crítica e a procura activa de alternativas credíveis. Mas se uma dada actividade intelectual não faz isto, não se pode dizer que é respeitável, apesar de não ser ciência; não é nem ciência nem qualquer outra coisa séria, é uma mera fantasia. É como o leite; se estiver estragado, está estragado, ponto final — não é queijo nem manteiga, nem água-pé. É apenas leite estragado.

109 comentários:

João Vasco disse...

Pensei que fosse mais ou menso pacífico que a filosofia NÃO é uma ciência. Que a fronteira entre ambas é um problema filosófico, etc...

Nesse sentido acho estranho que um filósofo defenda que fora da ciência só existe lixo intelectual..

Ludwig Krippahl disse...

Eu concordo com o Desidério. A única forma de obter conhecimento é propondo modelos que se possa confrontar com as observações e com outros modelos, num processo crítico e aberto. O que não for assim não leva a conhecimento.

Mas muita filosofia é assim. A filosofia de Russell, Dennett, Searle, entre outros é ciência com poucos dados experimentais, ainda muito especulativa mas que não perde de vista o objectivo de criar modelos concretos que se ajustem ao observável.

Muita filosofia é «lixo intelectual». Kierkegaard e afins pode ser boa literatura, mas como conhecimento não leva a nada...

Só não concordo que a falsificabilidade esteja ultrapassada. Está bem de saude desde Ockham. A confusão parece-me ser entre rejeitar uma hipótese por não ser falsificável -- essas rejeitamos todas -- e rejeitar uma hipótese por haver uma alternativa melhor. Aí a falsificabilidade não interessa pois só as falsificáveis chegam a esta fase.

sofia disse...

eu acho que o problema também se prende com a hegemonia da ciência nas nossas sociedades. para tudo se quer uma resposta científica, e quase que nos recusamo a aceitar que para algumas coisas não precisamos de ciência.
depois o problema da ciência séria é talvez também potencialmente ultrapassado pelo facto de que a seriedade de cientistas, às vezes não é o problema. e também não é percepcionado por eles como problema, pois eles são sérios...
desde os problemas que escolhem para a ciência estudar, às metodologias escolhidas, às interpretações tiradas, mesmo que sejam verdadeiramente sérias, estão sempre embuídas de valores, que embora não ponham em causa os resultados científicos em si, podem por a sua relevancia ou interesse. Em ambiente isto é crucial. diz-se que ciencia é feita pelo homem branco e de meia-idade. problemas que afectam mulheres, minorias raciais, populações desfavorecidas, não entravam na escolha de problemas a estudar. vai mudando, claro... devagarinho. enfim um problema este da interface da ciencia com a sociedade... que dá pano para mangas...

Desidério Murcho disse...

Caro Ludwig

É um prazer receber um comentário teu. Há muito que leio o teu blog com gosto pela inteligência, seriedade, precisão, rigor e lucidez. Podemos tratar-nos por tu?

No que respeita ao confronto com observações, depende da área de investigação -- acho que aí discordo um pouco da tua afirmação, que parece ter em conta apenas áreas empíricas de investigação. Nesse caso, a matemática, a lógica e grande parte da filosofia, por serem disciplinas não empíricas, não seriam intelectualmente respeitáveis, o que me parece inaceitável.

Concordo que muita filosofia é lixo intelectual, mas não me parece que se possa considerar que tenha valor literário. Não é água-pé nem queijo: é leite estragado. Mas a maior parte de tudo é lixo: a maior parte da poesia é lixo, a maior parte da pintura é um disparate, etc. E a maior parte da ciência é tecnicismo bacoco — quando não é cientismo, como me parece que acontece no caso da “memética”, que me cheira a aldrabice. Por isso, quando digo que algo é lixo intelectual, faço-o com a consciência de que é provavelmente inevitável que exista. Temos é de criar uma cultura e uma mentalidade que filtre a falta de qualidade. Mas, como diria o Mill, até por contraste temos mesmo de ter coisas de má qualidade, para vermos em que medida as boas são boas.

Também discordo da ideia de que rejeitamos hipóteses que não sejam falsificáveis. Nesse caso, rejeitaríamos todas as hipóteses da lógica e da matemática, para não falar das da filosofia. O critério da falsificabilidade aplica-se apenas, se se aplica de todo, às ciências empíricas.

O ponto fundamental do meu artigo é este: a falsificabilidade, mesmo nos casos em que se pode aplicar, é apenas uma forma sensata de avaliar criticamente as coisas. Nos casos em que não se pode aplicar (como nas ciências não empíricas, ou na filosofia), temos outras formas sensatas de avaliar criticamente as coisas.

Depois há algumas confusões de fundo relacionadas com o critério de falsificabilidade, mas isso fica para outra ocasião. Sucintamente, não é possível falsificar verdades necessárias, e a ciência produz muitas verdades necessárias (como “A água é H2O”), pelo que o critério tem de ser encarado como epistémico e não como metafísico. Mas depois faço outro pequeno artigo sobre isto.

Uma vez mais, é um prazer poder discutir ideias contigo.

Ricardo Alves disse...

«Nada há de especial na ciência que a diferencie da filosofia ou da matemática ou até da teologia. Todas estas actividades ou se fazem com pés e cabeça — abrindo-se à crítica, à correcção de erros, apoiando-se em provas e na argumentação — ou são fantasias semelhantes à bruxaria.»

Desidério,
permita-me discordar. É da própria natureza da teologia não estar aberta à correcção de erros, e não se apoiar em provas materiais.

A matemática é um caso diferente: não é ciência mas sim uma linguagem. Não é por isso que deixa de ser uma actividade intelectualmente respeitável (como o Direito ou a Poesia, já agora...)

O que diferencia a ciência do resto é aceitar como critério principal de correcção o ajustar-se à realidade material (que é sempre teimosa). O que a teologia, a filosofia, ou mesmo a matemática não aceitam, por razões diferentes.

Anónimo disse...

Bom, já não percebo nada: no seu artigo é dito "Mas mesmo que Popper tenha razão (...) o que não é ciência não é coisa alguma de intelectualmente respeitável: é lixo intelectual"; no seu comentário diz: "Nesse caso, a matemática, a lógica e grande parte da filosofia, por serem disciplinas não empíricas, não seriam intelectualmente respeitáveis, o que me parece inaceitável".
Em que é que ficamos? Só há salvação na Ciência ou a gente ainda pode ler Camões (para dar um exemplo institucional)?
Cumprimentos
Marvl

Desidério Murcho disse...

Olá, Ricardo! Está a usar "ciência" como sinónimo de "ciência empírica", que é precisamente o tipo de confusão conceptual que a palavra "ciência" provoca. Dizer que a matemática é apenas uma linguagem é em si uma tese filosófica sobre a natureza das entidades matemáticas (como os números e os conjuntos), que dá pelo nome de "formalismo" e cujo expoente máximo foi Hilbert. O formalismo foi em grande parte refutado por Gödel. Mas mesmo que não tenha sido definitivamente refutado não podemos pura e simplesmente presumir que é verdadeiro -- seria como presumir pura e simplesmente que Deus existe.

A teologia pode perfeitamente ser intelectualmente séria. Só tem de obedecer aos mesmos critérios de qualquer outra actividade académica séria. Se obedece ou não, não sei, porque não leio teologia. Mas a teologia filosófica que conheço, isto é, a parte da filosofia da religião que se ocupa de questões teológicas, é perfeitamente séria, intelectualmente: é crítica, não é dogmática, obedece a padrões de rigor lógico e intelectual, os filósofos criticam abertamente as posições uns dos outros, etc. Exemplos: Plantinga, Swinburne, Rowe, Davies.

O que não se pode é confundir "teologia" popular, que é apenas propaganda e tentativas frustradas de doutrinação (banha da cobra), com a filosofia da religião e com a teologia filosófica.

Desidério Murcho disse...

Marvl, comecemos por aqui:

1) Ciência empírica
2) Ciência formal
3) Não-ciência
4) Pseudociência

Estas coisas andam todas confundidas nas cabeças de muita gente, e em parte por causa de Popper e de uma compreensão errada do problema filosófico da demarcação. O problema da demarcação não é o problema de distinguir 1 de 3, mas sim 1 de 4. Claro, poesia não é ciência, mas não tem menos valor por isso -- pode ser boa ou lixo, mas por outros motivos. O ponto é que se uma coisa parece 1 mas não é, muito provavelmente não é 3, mas sim 4. E 4 é apenas leite estragado, não é outra coisa qualquer: é apenas ciência muito mal feita, tão mal feita que é pseudociência.

Isto também provoca outra confusão que é pensar-se que toda a ciência é boa; claro que não. Mas mesmo a pior ciência é feita com critérios de seriedade que a numerologia ou a astrologia não têm, por exemplo.

A confusão é pensar que os únicos critérios de seriedade científica são os critérios para 1, e depois inventa-se uma história implausível acerca das actividades claramente científicas que não são empíricas, como a matemática ou a lógica (que têm muito mais rigor e sofisticação intelectual do que a biologia, por exemplo).

E isto para não falar da filosofia, que é ainda outra categoria, porque não é empírica nem formal, mas é claramente uma actividade que obedece aos mais elevados padrões de seriedade académica. Como a história, por exemplo, mas esta é parcialmente empírica -- mas o trabalho mais importante da história, o trabalho interpretativo, não pode ser testado com o critério da falsificabilidade.

Em suma, há mais aves no pátio do que pardais e o leite estragado não é água pé. :-)

JoaoMiranda disse...

Quem defende que só é ciência o que é falsificável devia apresentar um resultado experimental possível que refute:

1. o princípio da selecção natural

2. as várias versões da teoria das cordas

3. a causalidade (a ideia de que os fenómenos ocorrem porque são causados por outros fenómenos)

4. a geometria euclidiana

5. a teoria de que o tempo passa e que determinados intervalos de tempo se seguem a outros intervalos de tempo.

Lembro que para provar que uma teoria é falsificável não basta apresentar um resultado experimental imaginário que a tornaria falsa. É necessário provar que esse resultado imaginário é uma possibilidade lógica. Por exemplo, eu posso imaginar um triângulo euclidiano em que a soma dos ângulos internos é 190. Mas a questão é: pode esse triângulo existir?

Ludwig Krippahl disse...

Caro Desidério,

Tenho todo o gosto que me trates por tu, e muito obrigado pelos comentários amáveis.

Penso que discordamos na ideia que há áreas não empíricas da investigação. Ou melhor, do conhecimento. Eu proponho que não há, e que, enquanto fontes de conhecimento, a matemática e a lógica são tão empíricas como a química ou a física.

Por exemplo, considera o operador "bloma", que é parecido com a soma mas faz corresponder a cada par de números a sua soma menos 1. Matematicamente, bloma e soma são dois operadores semelhantes, com propriedades bem definidas e isso tudo. Mas o bloma não serve para nada. Não corresponde a algo observável, não dá conhecimento, e por isso ninguém o usa. Esse e uma infinidade de outros. Também na lógica e na filosofia, ou mesmo na química e na biologia, podíamos definir conceitos ou modelos sem qualquer relação com a realidade. Mas qualquer especulação intelectual que vise produzir conhecimento tem que estar ligada a algo observável.

Quando queremos conhecimento temos filtrar a especulação com o observável. Soma em vez de bloma. É aqui que entra a falsificabilidade: poderá esta ideia encaixar em algo que observo? Se pode é falsificável, pois pode também não encaixar.

Também me parece que discordo do que dizes acerca das verdades necessárias, mas deixo isso para depois do teu artigo... :)

João Vasco disse...

1. bastava que nenhum ser vivo se reproduzisse. As pedras não obedecem à selecção natural, se os seres vivos, tal como as pedras, não se reproduzissem (e não existisse hereditariedade na reprodução), a teoria da selecção natural seria falsa.


2. isso é fácil: essas teorias propõem experiências, que por serem caras ainda não puderam ser realizadas, que se não tiverem determinados resultados as refutarão.

4. daí a afirmação do Ricardo segundo a qual a matemática não é uma ciência.

etc..

João Vasco disse...

Desidério:

Escreveu no artigo que «Fazer ciência é como fazer qualquer outra coisa intelectualmente séria: temos de avaliar as coisas cuidadosamente, tenhamos ou não metodologias pré-determinadas, navegando muitas vezes à vista e sem bússola. Porque queremos descobrir verdades, procuramos também descobrir metodologias apropriadas ao que estamos a estudar.»

Então concordamos que existem OUTRAS actividade intelectualmente sérias e não dogmáticas que não são científicas.

Nesse caso, não faria sentido usar estas características para delimitar/definir a ciência.

Nesse sentido concordo com o Ludwig: faz mais sentido ter em conta o confronto com o mundo observável.

Ludwig Krippahl disse...

Caro João Miranda,

1- Em parte, a selecção natural é um conceito tautológico: se a característica herdável X confere maior sucesso reprodutivo, X tenderá a ser mais frequente na população pela definição de sucesso reprodutivo. Mas o importante desta ideia é que a sua aplicação é falsificável. Aplica-se aos pardais, mas não ao fogo florestal ou à chuva. As condições colocadas na hipótese que algo evolui por selecção natural são falsificáveis, e em geral até são falsas, excepto nas populações de seres vivos.

2- Penso que são falsificáveis em principio, mas essa deixo para o Ricardo Alves :)

3- A causalidade é falsificável e foi falsificada para algums sistemas. E experiência de Aspect por exemplo:

http://en.wikipedia.org/wiki/Bell_test_experiments

É claro que isto só se aplica a uma definição específica de causalidade, mas isso é um problema geral. Se não dizemos claramente as coisas, também não podemos saber se são verdade ou não :)

4- A geometria euclidiana, como conceito, é tautológica. Se isto então aquilo, e é sempre verdade pela definição de isto ou aquilo. Se se aplica ou não em cada caso, em alguns sim, noutros não. Perto de um buraco negro não serve de nada, por exemplo.

5- Depende da definição de tempo. Mas deve ser falsificável: se o tempo parar, então é falsa.

JoaoMiranda disse...

««Por exemplo, considera o operador "bloma", que é parecido com a soma mas faz corresponder a cada par de números a sua soma menos 1. Matematicamente, bloma e soma são dois operadores semelhantes, com propriedades bem definidas e isso tudo. Mas o bloma não serve para nada. Não corresponde a algo observável, não dá conhecimento, e por isso ninguém o usa.»»

Eu uso o bloma todos os dias para determinar o número de nodos de malhas compostas. Se eu juntar uma malha com 201 nodos com outra de 101 nodos o resultado é bloma(201,101)=301. Já tentei soma(201,101) e não funciona para o fim em causa.

João Vasco disse...

«Eu uso o bloma todos os dias para determinar o número de nodos de malhas compostas. Se eu juntar uma malha com 201 nodos com outra de 101 nodos o resultado é bloma(201,101)=301. Já tentei soma(201,101) e não funciona para o fim em causa.»

Substitua-se "bloma" por troma, um operador definido como subtraimdo 3 à soma da raiz quadrada do segundo elemento com o primeiro.
A questão é que se podem inventar operadores, geometrias, etc.. à vontade.
E não existe nenhum critério exterior ao mundo observável para dizer que são menos válidas que os outros.

João Vasco disse...

"à vontade" ponto e vírgula: claro que existe uma coerência lógica a que têm de corresponder, o formalismo tem de ser rigoroso.
Mas mesmo isso deixa liberdade para as "tromas" e outras que tais...

Ricardo Alves disse...

Caro Desidério,
eu pressuponho que o nosso universo tem três dimensões espaciais da mesma forma que pressuponho que o «Deus» criador do universo não existe: comparando as consequências de cada uma dessas hipóteses com a realidade observável. É por isso que concluo que a matemática que descreve um espaço a três dimensões espaciais tem sentido físico, e a matemática que descreve um espaço a vinte e quatro não tem. Não é por isso que a matemática que descreve «coisas que não existem fisicamente» deixa de ser estimulante (até pode ser muito mais estimulante intelectualmente, admito-o).

Quanto à «teologia séria», fico à espera de uma que se deixe corrigir pela ciência «empírica» e que não desague simplesmente no panteísmo.

Tudo isto para dizer que não acho que haja ciências não empíricas. O que existem são outras actividades intelectuais, muitas das quais devem merecer respeito quando são sérias, e que têm graus e domínios diferentes de utilidade (a matemática é útil para as ciências, o direito para a democracia liberal, a poesia para os estados psicológicos de cada um, etc).

Cumprimentos,

Luís Aguiar-Conraria disse...

Parece-me que há muitos comentadores que usam “"ciência" como sinónimo de "ciência empírica", para usar as palavras de Desidério Murcho. Mas também me parece que o Desidério pretende usar “ciência” como sinónimo de seriedade, ou de actividade intelectual séria.
Se a primeira definição é, obviamente, demasiado restritiva, o que Desidério propõe em alternativa também me parece tão vasto que perde qualquer interesse operacional. No limite, deixa de fazer distinção entre Ciência e Metaciência (ou entre Física e Metafísica).

Ricardo Alves disse...

Todas as teorias de supercordas que não quebrem a supersimetria de forma a resultar num universo (teórico) compatível com aquele que observamos (experimentalmente) são incorrectas (enquanto teorias físicas) embora possam estar certas (enquanto teorias matemáticas). Há muitas linhas de investigação em supercordas que são abandonadas por não conduzirem a universos semelhantes ao nosso.

Concretamente, o valor da energia de vácuo (relacionado com a quebra de supersimetria) tem de ser conciliável com a cosmologia que se observa.

Quanto à geometria euclidiana, está refutada enquanto teoria física. O que não quer dizer que os seus resultados não estejam correctos em primeira aproximação. ;)

Para melhor precisão, ou até para explicar determinados fenómenos (por exemplo, o facto de se observarem galáxias que estão atrás de outros corpos, e que portanto não deveriam ser visíveis) tem que se usar a geometria riemanniana. Que portanto está mais correcta.

Conclusão: as teorias científicas são aproximações à descrição da realidade; a teoria científica A é mais correcta quando dá uma descrição melhor do que a teoria B; ambas (A e B) podem estar certas do ponto de vista formal e matemático. Mas a ciência é mais do que a verdade formal. É a adequação à realidade.

Luís Aguiar-Conraria disse...

Caro Ricardo
Caro Ricardo, é verdade que as diferentes Teorias das Cordas têm algumas implicações que podem, em princípio, ser testadas (apenas não o foram por limitações tecnológicas, que se espera que sejam superadas num futuro mais ou menos próximos). Mas também é verdade que têm outras implicações, quase metafísicas (como universos paralelos, bramas, etc) que não poderão ser testadas. Podemos assim concluir que, de acordo com o teu critério, a Teoria das Cordas não é Ciência?

Também dizes: “a teoria científica A é mais correcta quando dá uma descrição melhor do que a teoria B” Isso quer dizer que o sistema Ptolomaico estava mais correcto do que Copérnico? É que a capacidade preditiva do modelo Ptolomaico (com a Terra no centro do Universo) era melhor do que a capacidade preditiva de um modelo Coperniano (que estava, na sua essência, correcto, apenas falhando porque assumiu órbitas circulares em vez de elípticas).

Anónimo disse...

Viva!

Desidério, ajuda-me aqui com isto

--Sucintamente, não é possível falsificar verdades necessárias, e a ciência produz muitas verdades necessárias (como “A água é H2O”), pelo que o critério tem de ser encarado como epistémico e não como metafísico--

Estou a ler o Platinga sobre isto e ele diz que uma verdade pode ser necessária e ainda assim revisível. O tipo apoia-se no que o Quine diz na segunda parte dos "2 dogmas do empirismo". Mas se é revisível é falsificável? Ou estou a ver mal.

Estas coisas das necessidades metafísicas e necessidades epistémicas não são fáceis. Podes esclarecer sff?

Abraço

JV disse...

A negação da metafísica também é uma teoria metafísica?
Quer dizer,o positivismo também é uma teoria metafísica?
O único conhecimento que existe vem da experiência?
A verdade é descoberta ou construída?

JV disse...

Godel descobriu que até no domínio da Matemática é possível formular proposições que não se podem demonstrar nem refutar seguindo as regras da lógica matemática.

Quais são as implicações que se devem tirar daqui?

Desidério Murcho disse...

Olá a todos! Obrigado pelas reacções. Não posso responder a tudo... mas aqui vai alguma coisa.

Caro Ludwig: Dizes "Eu proponho que não há, e que, enquanto fontes de conhecimento, a matemática e a lógica são tão empíricas como a química ou a física."

Penso que há dois aspectos misturados no que pensas, e que se tornam mais manifestos pelo que explicas depois. Há um aspecto metafísico e um aspecto epistemológico. E a confusão é que me parece que passas de um para outro sem te dares conta.

Por acaso eu concordo com o aspecto metafísico, porque nisso ando às avessas com o que a generalidade dos filósofos hoje pensa (ei, mas somos o futuro: cada vez mais filósofos são realistas como eu). Ou seja, penso que é o mundo que manda na matemática e na lógica, tal como manda na física ou na biologia. Este é o aspecto metafísico em que concordamos. Uma lei da lógica ou da matemática é tanto uma lei do mundo como uma lei da física -- apenas tem maior grau de abstracção.

Mas daqui não se segue que a fonte do conhecimento da lógica ou da matemática seja empírica, nem que os seus métodos de controlo e crítica sejam empíricos -- isso é falso e nem sequer faz sentido. Faz-se matemática e lógica pensando, e não fazendo experimentações empíricas. Mas daqui não se segue que o que se descobre não se relacione com o mundo. Um realista como eu diz que sim, que se relaciona. E isto significa que não podemos aceitar a tese epistemológica dos empiristas, que é basicamente a tua ideia: que todo o conhecimento substancial resulta da experiência. Eu acho que todo o conhecimento substancial é sobre o mundo (haveria de ser sobre o quê?), mas uma parte importante desse conhecimento é obtido sem ser através da experiência -- pelo pensamento apenas. (Usa-se o termo "a priori" em filosofia para isto.)

Ricardo e Luís: o que pretendo é chamar a atenção para a confusão que usar "ciência" como sinónimo de "ciência empírica". Mas não quero usar "ciência" como sinónimo de actividade cognitiva séria. Não temos termo para tal coisa porque os cientistas nos roubaram a palavra -- originalmente, "scientia" era mesmo "actividade cognitiva séria, que produz conhecimento e não fantasias sobre o Pai Natal". :-)

Mas quero chamar a atenção para isto: mais importante do que saber se algo é ou não "ciência" no sentido de "ciência empírica", é saber se é uma actividade cognitiva séria. A confusão é que grande parte das coisas importantes que pessoas como o Carl Sagan dizem sobre a importância da crítica (os cientistas usam o termo "céptico" como sinónimo de "crítico", ao passo que em filosofia se usa o termo "céptico" no sentido de alguém que nega a possibilidade do conhecimento!) se aplica não apenas à ciência (empírica) mas a qualquer área cognitiva séria. E isso provoca confusão e nem sequer tem o efeito desejado, porque depois lá vem o fadinho "ah e tal e o camandro, mas isto que eu faço não é ciência porque a ciência é muito limitada e a astrologia é uma abordagem mais rica da realidade". A mim não me importa se é mais rica ou mais pobrezinha; desde que seja uma actividade cognitiva, tem de obedecer a padrões de rigor cognitivo. Ponto final. Tal como se for pintura tem de obedecer a padrões de rigor artístico, e tanto faz se estamos a pintar homens nus musculados e com um ar convidativo ou pescadinhas fritas de rabo na boca com arroz de tomate.

Desidério Murcho disse...

Luís: pois, o que Plantinga está a dizer é precisamente que a revisibilidade (que está directamente relacionada com uma leitura epistémica da falsificabilidade), por ser uma noção epistémica, é perfeitamente compatível com a necessidade -- ao contrário do que se pensava até... bom, até Plantinga, Kripke e outros terem acendido a luz.

A necessidade é uma noção metafísica. Uma verdade é necessária ou não independentemente do que pensamos sobre isso e a necessidade não é epistemicamente transparente (não sabemos automaticamente se algo é ou não uma verdade necessária). De modo que podemos perfeitamente ter a crença de que algo é uma verdade e depois rever essa crença -- mas este trabalho epistémico tanto pode ser feito com afirmações contingentes como com afirmações necessárias. Tanto faz. O que pessoas como Quine e os positivistas e também Popper pareciam pensar é que se uma crença é revisível então o conteúdo dessa crença, a afirmação em si, ou a proposição, é contingente. Mas isto é falso.

Ludwig Krippahl disse...

João Miranda,

Eu até apostava que não blomou, mas somou e depois subtraiu um. Não posso garantir sem ver o código, mas ficaria muito supreendido se tivesse definido a função "bloma" para fazer esta operação antes de ler o meu comentário :)

Ponto principal: é muito mais provável que alguém defina bloma como soma - 1 que soma como bloma + 1. E isto deve-se a uma aspecto empírico da aplicação destas operações.

Anónimo disse...

Caro João Miranda,

Então já se esqueceu do que lhe disse há tempos no Blasfémias sobre o enunciado da Teoria da Evolução por meio de Selecção Natural? As três premissas? A diferença entre aptidão e adaptação?

1) Existe um diferencial de sobrevivência;
2) Existe um mecanismo que gera variação fenotípica;
3) Os indivíduos sobreviventes transmitem as suas características para as gerações seguintes.

O ponto 1) é experimentalmente testável;
o ponto 2) foi descoberto de várias formas;
O ponto 3) é basicamente estudo estatístico, fenotípico e genético de populações.

A teoria da evolução não serve para explicar porque é que os seres vivos evoluem. Para isso não é preciso selecção natural. Bastaria que todos os seres vivos fossem diferentes uns dos outros... Ela explica é porque é que tantos seres vivos parecem "desenhados" para a vida que levam. Dos bicos dos tentilhões às barbas das baleias, etc.

Anónimo disse...

Ludwig,

O Jónatas Machado publicou um texto no Ciência Hoje, sobre a "premissa naturalista".

http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=21209&op=all

É parte do colóquio ou isto é novo?

Ludwig Krippahl disse...

Desidério,

Concordo que se faz matemática e lógica pensando. E bioquimica. Eu trabalho em bioinformática, e isto é só escrever no teclado, ou pensar porque raio não correm as coisas como eu queria :)

Não concordo é que só o pensar dê conhecimento. Nem me parece que haja conhecimento metafísico ou a priori -- parece-me uma contradição de termos. Mas vou ver se organizo melhor as ideias, que isto já dá para um post...

Desidério Murcho disse...

Pois, Ludwig, acabaste de tropeçar no fundamental: há ou não conhecimento a priori, conhecimento que não tenha origem nos sentidos e que não seja meramente linguístico e trivial? (Não se chama conhecimento metafísico ao conhecimento a priori porque já não usamos o termo "metafísico" como Carnap e Wittgenstein usavam, algo à balda, como sinónimo de "não empírico".)

Uma pista importante para isto é a resposta de Chomski ao problema da pobreza do estímulo na aprendizagem de uma língua. Mas fico a aguardar o teu post...

Um filósofo que fez nome a tentar refutar de vez a existência de conhecimento a priori foi Quine. Mas fê-lo desgraçadamente com argumentos a priori. :-) Espero que os teus argumentos sejam empíricos!

Ludwig Krippahl disse...

Francisco,

Obrigado pelo aviso. Penso que esse artigo foi o que o Jónatas Machado pôs no meu blog (3 vezes) e no Conta Natura, pelo menos. É basicamente o que ele defendeu no colóquio, sim.

Desidério,

O que proponho é que tudo o que vem a priori apenas dá peças para fazer modelos. Com essas peças podemos fazer infinitos modelos. Mas só conhecemos algo quando descobrimos como um modelo se adequa a esse algo. Não basta as peças nem o modelo, e a adequação do modelo tem que ser descoberta por observação.

As peças e os modelos não são conhecimento. São imaginação.

Quanto à linguagem, é verdade que no nosso desenvolvimento temos estímulos muito pobres para complexidade das regras que aprendemos. Mas durante a os nossos antepassados tiveram muitos estímulos que seleccionaram as estruturas certas no cérebro que nos predispõem logo à partida para as regras que precisamos aprender.

Para o individuo parece que isto surge a priori, mas na verdade é muito a posteriori, fruto de muita experiência, muita tentativa e erro, e a grande custo para muitos que nem descendentes deixaram.

JoaoMiranda disse...

««As pedras não obedecem à selecção natural»»

Claro que obedecem. O princípio da selecção natural diz que se uma entidade for um replicador pode evoluir. As pedras não são replicadores, logo as pedras obedecem ao princípio da selecção natural quer evoluam quer não evoluam.

é aliás por isso que a existência de pedras não serve para refutar o princípio da selecção natural.

Anónimo disse...

Bom, atendendo que o trabalho é uma realidade empiricamente comprovável (ainda que provavelmente não falsificável) só agora vejo a grande discussão que para aqui vai.
Se não se importam, ponto de ordem à mesa sobre o que está em cima da dita:
1. de que falamos quando falamos de "ciência" (seus ramos e flores várias, uns mais empíricos do que outros)
2. os critérios da dita (mormente o da falsificabilidade, com exemplos vários, entre os quais os das cordas, que, esteticamente, sempre achei deliciosos; a selecção natural também, ainda que mais trivial; das blomas não percebo puto - ia a escrever "bromas", já podem ver...)

Vamos lá a ver, caro Desidério, o critério da "seriedade" não me parece ser critério operacional nesta coisas de definir ciência e conhecimento (que não me parece que sejam a mesma coisa). Se qualquer assunto pode ser encarado "seriamente" (é o método, não é?) teremos que aceitar que pode ser séria uma discussão sobre o sexo dos anjos. Era o que pensava a escolástica (bom, devo acrescentar que nem tudo na escolástica me parece desaproveitável :).
2. Esta parte só pode ser vista após a primeira.
Desculpem, mas tenho que ir fazer o jantar (aí está uma verdade necessária)
Marvl

Anónimo disse...

Caro João Miranda,

Então pense em dunas, ou perturbações em películas líquidas a vibrar. São replicadores.

Desidério Murcho disse...

Marvl: o que está em causa é precisamente isso, a reificação da ciência. A ciência, se for boa, é boa apenas porque obedece aos melhores critérios de rigor cognitivo. Não pode ser boa por nenhuma outra coisa, a não ser que acreditemos que é coisa sobrenatural. O que isto significa é que a melhor ciência está a par da melhor história, por exemplo. Mas nenhuma das duas se parece com a discussão do sexo dos anjos se esta discussão se basear na autoridade e da reverência pela tradição, excluindo as virtudes epistémicas fundamentais, o controlo público de erros, a procura de contra-exemplos, a possibilidade de pôr em causa os pressupostos.

Ludwig: conhecimento a priori é o seguinte: um agente A sabe a priori que P se, e só se, A sabe que P pelo pensamento apenas, sem recorrer à experiência empírica. É irrelevante se esta capacidade que ele tem foi adquirida ao longo de gerações por um ou outro processo, que envolva a experiência. O que conta é o modo como o agente A sabe que P e não o modo como as suas capacidades cognitivas resultam da evolução natural da espécie.

Nota: o João Miranda tem razão porque quando temos uma condicional, algo da forma "Se P, então Q", como "Se for um animal, obedece às selecção natural", qualquer coisa que não seja P confirma vacuamente a verdade da condicional. As condicionais com antecedentes falsas são verdadeiras, apesar de isso ser tão contra-intuitivo como o facto de os objectos caírem à mesma velocidade se não tiverem atrito, independentemente do peso.

antfilfon disse...

Desidério:"O que pessoas como Quine e os positivistas e também Popper pareciam pensar é que se uma crença é revisível então o conteúdo dessa crença, a afirmação em si, ou a proposição, é contingente. Mas isto é falso."
Tenho tendência a discordar desta proposição, nada me leva a crer que não existam pensamentos aprioristicos fora dos estados mentais, como a sensação de dor ou a de cor ou de alegria, ou de unidade, ou a de exclusividade, que não sendo contingentes apenas são racionalmente operacionais na contingência. As proposições tautológicas são um comprovativo disso, são tautológicas no sentido em que não acrescem conhecimento mas sabemos que não acrescem conhecimento porque sabemos que a regras que as formaram obedecem exclusivamente a principios que servem a uma certa descrição da realidade. Ver por exemplo a noção de Grupo em matemática, é uma descrição formal de regras observáveis na natureza e apenas e só por isso aplicáveis à explicação dos seus fenómenos. Se fosse uma noção aprioristica teria precedido a noção de operador aritmético. A prová-lo basta ver que existem diversos povos com diferentes sistemas de numeração, a noção de soma por exemplo só faz sentido a partir da noção de medida e de quantidade e muitos povos não têm essa noção, ela é contingente. Não se pode por isso dizer que a refutabilidade é um mau critério para definir ciência. A teoria da evolução é a melhor explicação que foi até agora descoberta, mas pode haver outras, apesar da teoria da relatividade explicar muitos fenómenos ela não explica os fenómenos directamente observáveis, mas não podemos concluir que não os explica por causa de uma realidade apriorista mas apenas que os explica porque as ferramentas conceptuais que a constituem resultam de uma experiência que é contingente. Não é possível rever uma crença sem outra crença e essa outra senão deriva da primeira não é demonstrável senão empíricamente logo pode ser refutável.

Ludwig Krippahl disse...

Desidério,

Essa definição de conhecimento a priori é problemática, pois inclui nesta categoria uma catrefada de conhecimento que é empírico, resultado de experiências.

Eu sei digerir comida, bombear sangue, identificar caras, chorar, engolir, chuchar e muitas outras coisas que nunca aprendi por experiência empírica minha, mas que resultam desta longa experiência empírica que é a evolução. Este é conhecimento empirico, e não a priori.

Eu proponho definir o a priori como aquilo que um agente racional pode concluir em virtude apenas da sua racionalidade, sem qualquer experiência sua ou de outros. E o que me parece é que nada disso é conhecimento, porque é auto-contido e não se refere a algo (o conhecimento tem que ser intencional, no sentido de ser sempre acerca de algo).

Ludwig Krippahl disse...

mp-s,

O João Miranda está a confundir duas coisas. A afirmação "Se o João Miranda nasceu em Marte, então é extraterrestre" é uma afirmação não falsificável. Mas é falsificável a afirmação "O João Miranda é extraterrestre".

Ele está a usar uma formulação condicional da teoria da selecção natural que é não falsificável, mas o relevante dessa teoria é a sua aplicação (falsificável) aos seres vivos.

Anónimo disse...

Ludwig,

Da última vez que se falou deste tema no Blasfémias a questão era a redundância da afirmação

«Os animais mais bem adaptados são os que sobrevivem porque estão mais bem adaptados.»

que é uma definição circular. Foi este resumo simplista que levou o Popper a afirmar que a teoria de Darwin não era falsificável.

Anónimo disse...

As que são mais bonitas têm tendência a integrar colecções - acho (as pedras)
Ó Desidério então você insiste em que uma eventual discussão sobre o sexo dos anjos que seguisse as "virtudes epistémicas fundamentais, o controlo público dos erros, etc." era ciência? Não lhe parece que o método é inseparável do objecto? Ou antes, que a definição do objecto tem que obedecer igualmente a esses critérios? Obviamente que isto é a propósito da sua afirmação de que a teologia pode ser rigorosa.
O que não quer dizer que não haja "verdade" nas lendas (pessoalmente gosto muito da frase de Herculano de que "todas as lendas são verdadeiras"). E que elas não possam ser estudadas de forma útil e interessante. É é uma verdade de outra natureza (transmite-nos conhecimento social, por exemplo). Por isso, já agora, pedia ao ricardo alves que de manhã dizia que a "poesia pode ser útil para os estados psicológicos de cada um" que revisse a sua posição. Como alguma matemática, a poesia pode ser completamente inútil - mas nem por isso menos interessante e divertida (a inteligência humana tem muitas formas, a linguagem pode ser uma delas, seja a priori ou a posteriori)
Cumprimentos
Marvl

Desidério Murcho disse...

Marvl, parece-me que está a fazer uma confusão. E por isso entendi-o mal. Se está a dizer

"Não há anjos; podemos discutir o sexo deles seriamente?",

então eu digo-lhe obviamente que não. Mas isso não refuta a minha tese. Por isso é que eu pensei que estava a dizer isto:

"Podemos discutir o sexo dos anjos seriamente?"

Responder que não a isto refuta a minha tese, mas só se presumirmos que há anjos.

Compare isto com:

"Podemos discutir seriamente os fenómenos meméticos?"

Como agora já não é nada óbvio que não memes, já parece menos óbvio que não se possa discutir tal coisa seriamente, certo?

JoaoMiranda disse...

««Ele está a usar uma formulação condicional da teoria da selecção natural que é não falsificável,»»

A formulação condicional do princípio da selecção natural
é o única que existe.

«« mas o relevante dessa teoria é a sua aplicação (falsificável) aos seres vivos.»»

Pois, mas isso não é o princípio da selecção natural.

JoaoMiranda disse...

««
Então pense em dunas, ou perturbações em películas líquidas a vibrar. São replicadores.»»

Mesmo que os considere replicadores, não são replicadores com características hereditárias.

Desidério Murcho disse...

Ludwig, a tua def. de conhecimento a priori só se aplica a conhecimento inferencial porque estás a falar de raciocínio. Mas o conhecimento define-se em termos proposicionais e não inferenciais: um agente A conhece uma proposição P e conhece-a a priori se e só se a conhece sem recorrer à experiência.

Fazer a digestão não é conhecimento proposicional, é saber-fazer. No que respeita ao saber-fazer não se fala em conhecimento a priori precisamente por não ser proposicional. Mas fala-se, claro, em conhecimento inato, mas isso é outra coisa. Eu sei inatamente fazer a digestão, mas não sei inatamente andar de bicicleta -- tenho de aprender pela experiência. Mas nada disto é conhecimento proposicional e por isso é um coisa muito diferente de saber que 100 menos 5 é 95.

Nenhuma def. de conhecimento a priori ou a posteriori é completa se for apenas inferencial, como a que propões, pelo simples motivo de que é impossível conhecer C, em que C é a conclusão de um raciocínio com premissas P1-PN, sem conhecer P1-PN. E conhecemos C a priori se, e só se, conhecemos P1-PN a priori. Basta que uma das premissas não seja susceptível de ser conhecida a priori para que C não possa ser conhecida a priori.

Anónimo disse...

Desidério
Os anjos pertencem à categoria inefável do sobrenatural - como deus. Admitir que eventualmente se pode chegar um dia à conclusão que eles existem (e que, como os memes, eles possam ser discutidos) é admitir que o sobrenatural pode um dia ser uma categoria científica - o que seria a negação da própria ciência e de tudo o que você disse sobre.
Já agora, não sendo anjo, o meu sexo é feminino (desculpe não pôr o meu nome todo, mas dá-me mais jeito assim).
Saudações
Marvl

Anónimo disse...

Caro Desidério,

Não é um pouco estranho falar seriamente de uma ideia que é arbitrária? Claro que importa mostrar que essa ideia é arbitrária. Mas como prosseguir a partir daí?

Como discutir seriamente os atributos morais de Osíris?

Ou como procurar, de forma séria, a cor dos fins-de-semana?

Não nos diz a seriedade para começar por evitar malabarismos semânticos e os não-problemas?

JoaoMiranda disse...

Aliás, uma das consequências importantes de o princípio da selcção natural ser uma verdade necessária não falsificável é que, para provar que existe evolução na natureza eu não preciso de a abservar. Basta-me provar que os seres vivos são replicadores, que existe diversidade de características hereditárias relacionadas com a sobrevivência e que existe alguma segregação dessas características. Se estas condições se verificarem, a evolução é inevitável. Isto que dizer que uma experiência concebida para verificar o princípio (condições de ocorrência implica consequência) é um erro científico.

Anónimo disse...

Caro João Miranda,

Assumir que, numa geometria plana, o caminho mais curto de um ponto a outro é em linha recta não precisa de confirmação experimental. É um teorema.

Nesse aspecto, assumindo que as premissas da teoria da evolução estão correctas, surge uma consequência lógica: a população futuras não será uma população qualquer.

Verificar que uma e outra coisas ocorrem no mundo real é completamente diferente.

O mundo não é euclidiano e isso provou-se experimentalmente. Localmente essa geometria é boa, muito longe de buracos negros e a escalas longe da quântica. Mas noutros casos há outras geometrias que funcionam melhor.

No caso da selecção natural, verificaram-se que as premissas tinham paralelo com a vida real. Como tal, concluiu-se que era muito provavelmente por causa disso que os registos fósseis, os genes, etc., observados na Natureza são assim.

Mas podia ser por outra razão qualquer. Bastava que ainda não se tivesse descoberto o ADN ou coisa parecida e seria mais difícil dar crédito a Darwin. Bastava que Lamarck estivesse correcto. Bastava que os deuses aparecessem e criassem 20 espécies novas à nossa frente.

Imagine o João Miranda que Darwin não pensou em tudo. Que, além das 3 premissas, existe outra. Quais as consequências para a evolução? Ninguém sabe. A evolução das espécies ocorreu da forma prevista por Darwin o que significa que são provavelmente apenas essas 3 premissas que permitiram toda a variedade na Terra.

antfilfon disse...

Caro João Miranda,

A sua tese é um perfeito disparate. A teoria da evolução é falsificável com muitas outras, basta para isso que surja uma explicação mais completa e mais simples para os mesmos fenómenos que ela explica. É tão simples quanto isso.

antfilfon disse...

mais ou tão completa.

Anónimo disse...

Se o Desidério não levar a mal, gostaria de fazer uma pequena contribuição para definir conhecimento a priori. Decorre de uma pequena distinção que nem sempre é feita ou percebida e que gera quase sempre grandes confusões. É a diferença entre uma proposição ser conhecida a priori e ser conhecível a priori. Há plausivelmente proposições que são conhecíveis a priori, isto é, sem o concurso da experiência, e que no entanto não são conhecidas. Pense-se, por exemplo, numa proposição da matemática que possa ser conhecida a priori (conhecível a priori) e contudo não é actualmente conhecida por ninguém. Isto é apenas um indicador de que nem tudo o que é conhecível a priori é de facto conhecido, e desfaz a confusão habitual de que se uma proposição é conhecível a priori então tem forçosamente de ser conhecida.

Penso eu de que...

antfilfon disse...

luis rodrigues,

Obrigado pelo esclarecimento, também há árvores na floresta que caem e ninguém está lá para ver. É só um aparte ...

Ricardo Alves disse...

Caro Luis Aguiar-Conraria,
não vejo porque a hipótese de «universos paralelos» não seja testável no futuro. Se a única teoria de super-cordas que funcionar tiver que os presumir, então teremos um argumento poderoso.
O MP-S deu um exemplo semelhante quando lembrou que a gravitação newtoniana presumia uma interacção à distância, que não explicava. Hoje sabemos explicar essa interacção à distância.

Anónimo disse...

Aliás, basta o João Miranda arranjar outra teoria científica que tenha as mesmas consequências em termos de sucessão de espécies e adaptação, que explique o registo fóssil e tudo o mais que a teoria de Darwin explica para poder começar a fazer Ciência: a verificar se as premissas de que parte a sua teoria ocorrem no mundo real (se é que elas são verificáveis). Se ocorrerem, temos uma bela alternativa à teoria de Darwin. Se não ocorrerem essa teoria fica na gaveta.

Um exemplo é explicar o Grand Canyon com um dilúvio. Não é de todo idiota que uma grande enxurrada dê origem a socalcos. Se for mesmo muito grande, a vales e desfiladeiros. Será que isso explica o Grand Canyon? Há muitas coisas que nos dizem que não. Essa questão pode ser colocada. E a resposta é que a hipótese diluviana está errada. Não foi dilúvio coisa nenhuma.

JoaoMiranda disse...

««
O mundo não é euclidiano e isso provou-se experimentalmente.»»

Esse é mais um erro. Não se pode provar experimentalmente que o universo não é euclidiano. Por um lado, não existe um referencial independente da tese que se pretende provar. Por outro, é possível interpretar o mesmo objecto físico usando diferentes geometrias.

Ver:

http://ablasfemia.blogspot.com/2005/06/os-limites-do-falsificacionismo-ii.html

JoaoMiranda disse...

««A sua tese é um perfeito disparate. A teoria da evolução é falsificável com muitas outras, basta para isso que surja uma explicação mais completa e mais simples para os mesmos fenómenos que ela explica.»»

Isso não tem nada a ver com a definição de falsificável. Uma teoria falsificável não é uma teoria que pode ser substituida por outra melhor. Uma teoria falsificável é uma teoria pode ser concebida uma experiência em que um dos resultados possíveis refuta a teoria.

Anónimo disse...

«Não se pode provar experimentalmente que o universo não é euclidiano.»

O João Miranda nunca viu uma lente gravitacional?

JoaoMiranda disse...

««Nesse aspecto, assumindo que as premissas da teoria da evolução estão correctas, surge uma consequência lógica: a população futuras não será uma população qualquer.

Verificar que uma e outra coisas ocorrem no mundo real é completamente diferente.»»

Verificar o quê:

1. as premissas?
2. a consequência?
3. a relação entre a consequência e a premissa?

Destes 3 o único ponto que precisa de ser verificado empiricamente é o 1. O 2 segue ao 1. O 3 é uma verdade necessária.

JoaoMiranda disse...

««O João Miranda nunca viu uma lente gravitacional?»»

Uma lente gravitacional não prova a geometria do universo. Trata-se de um fenómeno que tanto pode ser interpretado como um fenómeno geométrico não euclidiano como pode ser interpretado como um fenómeno físico numa geometria euclidiana.

Anónimo disse...

«Por um lado, não existe um referencial independente da tese que se pretende provar.»

Referencial independente da tese? Já lhe tinha dado um exemplo. Suponha que o tampo da sua mesa tem geometria esférica. Desenhe triângulos, meça ângulos e calcule áreas. Faça previsões com cálculos e compare. Vai ver que o tampo da sua mesa não é esférico, a menos que tenha um raio infinito...

Esta é uma maneira (difícil) de provar que a superfície da Terra não é plana. E pode-se fazer o mesmo teste à geometria do espaço no meio do espaço. Se houver massa por perto, a geometria euclidiana não funciona.

JoaoMiranda disse...

««
Referencial independente da tese? Já lhe tinha dado um exemplo. Suponha que o tampo da sua mesa tem geometria esférica. Desenhe triângulos, meça ângulos e calcule áreas. »»

Meço os ângulos como? Como é que eu sei que o meu medidor de ângulos é euclidiano?

«« E pode-se fazer o mesmo teste à geometria do espaço no meio do espaço.»»

Como? Onde é que eu tenho um instrumento que seja garantidamente euclidiano para medir os ângulos e as distâncias?

Anónimo disse...

«1. as premissas?»

As premissas, sim. Procurar outras premissas que possam interferir também é outra maneira de prosseguir na investigação. Procurar outras teorias.

«O 2 segue ao 1»

Mas o 2 pode seguir de outras premissas. Se essas premissas estiverem presentes, há alternativas.

JoaoMiranda disse...

««Mas o 2 pode seguir de outras premissas. Se essas premissas estiverem presentes, há alternativas.»»

Mas isso já não tem nada a ver com o princípio da selecção natural.

JoaoMiranda disse...

Já agora, Francisco Burnay, sabia que não existe nenhuma forma de medir o tempo que seja independente de fenómenos físicos? Todos estes fenómenos baseiam-se no pressuposto de que são períodicos, mas como não existe nenhum fenómeno que seja garantidademente períodico, é apenas possível avaliar um relógio por comparação com outro relógio. Da nesma forma que não existe nenhuma forma absoluta de medir distâncias e ângulos. Todos os instrumentos de medição são calibrados relativamente a fenómenos físicos que se pressupõe serem ou gerarem figuras geométricas cujas relações entre si são euclidianas. Mas não existe nenhum referencial euclidiano incontestável.

Anónimo disse...

«Uma lente gravitacional não prova a geometria do universo.»

As lentes gravitacionais são uma consequência da Relatividade Geral, que assume uma geometria não-euclidiana.

Anónimo disse...

Belo post, excelente discussão! Concordo com o que escreveu Desidério - complementado/contextualizado pelo (primeiro) comentário do LA-C, sobre o uso da palavra ciência.

Tiago Mendes

Anónimo disse...

O João Miranda sabia que todas as medições se baseiam em fenómenos físicos? Não é só o tempo.

Se o João Miranda levar um relógio atómico para Mercúrio e passado uns anos o for lá buscar, vai conseguir provar que não existem referenciais absolutos de tempo.

Se assumiu que existiam, sem saber se existiam ou não, acabou de provar que é plausível afirmar que não existem. Se nada acontecesse, outras conclusões se tirariam sobre a mesma plausibilidade.

JoaoMiranda disse...

««As lentes gravitacionais são uma consequência da Relatividade Geral, que assume uma geometria não-euclidiana.»»

Uma geometria é um instrumento matemático. Não é uma característica física. O universo só pode ter características físicas. A geometria é que pode ser descrita de forma mais elegante por uma ou outra geometria. Para dar um exemplo, eu posso descrever uma esfera com uma geometria euclidiana ou com uma geometria não-euclidiana como a geometria esférica. Ambas as opções descrevem o mesmo objecto.

JoaoMiranda disse...

««O João Miranda sabia que todas as medições se baseiam em fenómenos físicos?»»

Pois, mas então explique como é que consegue medir experimentalmente a geometria do universo. Todos os seus instrumentos de medida pertencem ao universo e têm uma geometria que é desconhecida a priori. Por onde começar? Onde é que está o seu referencial geométrico?

Anónimo disse...

«Uma geometria é um instrumento matemático. Não é uma característica física.»

Então o João Miranda também não pode dizer que o mundo tem 3 dimensões. É só uma forma elegante de explicar como medir volumes.

Mas é que a questão é toda essa. Pode ser terrivelmente deselegante e nós não sabermos. E podemos descobrir.

Anónimo disse...

«Pois, mas então explique como é que consegue medir experimentalmente a geometria do universo.»

A geometria do Universo será aquela que o descreve melhor. Há geometrias que descrevem mal o Universo e a euclidiana é uma delas. A relatividade galileana não bate certo. A precessão da órbita de Mercúrio prevista por Newton não bate certo.

As partículas não são bem ondas e não são bem partículas. Se as julgarmos desse ponto de vista, vamos encontrar discrepâncias experimentais. O João Miranda pode então dizer-me que o conceito de partícula é filosófico, ou uma definição matemática como um ponto, e que não há filosofia empírica mas a questão não é essa.

Anónimo disse...

Acho que foi o Kant que disse que a única geometria que fazia sentido era a euclidiana. Mas justificá-lo filosoficamente é que não faz grande sentido para mim...

JoaoMiranda disse...

««Então o João Miranda também não pode dizer que o mundo tem 3 dimensões. É só uma forma elegante de explicar como medir volumes.»»

A dimensionalidade é uma forma simples de descrever a conectividade entre diversos pontos do universo.

Existe pelo menos uma outra forma de fazer: o universo pode ser visto como uma linha em que pontos distantes dessa linha estão relacionados como se estivessem próximos permitindo saltos e permitindo que um objectos ocupe várias zonas da linha separadas entre si.

JoaoMiranda disse...

««Acho que foi o Kant que disse que a única geometria que fazia sentido era a euclidiana. »»

Isso é porque o Kant descende de primatas cuja sobrevivência dependia da avaliação correcta das distâncias no meio de uma floresta.

Anónimo disse...

«o universo pode ser visto como uma linha em que pontos distantes dessa linha estão relacionados como se estivessem próximos permitindo saltos e permitindo que um objectos ocupe várias zonas da linha separadas entre si.»

Por exemplo (a menos de alguns detalhes de potência). E se isso não for possível, é uma maneira de dizer que o Universo não é assim. Pode ser que seja e nós não saibamos. Afirmá-lo nessas condições é perda de tempo. Mas se conseguirmos fazê-lo, é uma forma de provar que a ideia não é assim tão descabida. O João Miranda só tem de encontrar uma maneira de fazer a experiência.

Anónimo disse...

«Isso é porque o Kant descende de primatas cuja sobrevivência dependia da avaliação correcta das distâncias no meio de uma floresta.»

Ou seja, Kant parte de uma experiência empírica e rejeita experiências empírias que desconhece alegando razões filosóficas. Próprio de um primata, de facto.

(Note-se que não tenho a certeza que foi ele que disse isso.)

Anónimo disse...

O nome do Kant anda a ser enxovalhado por estes lados...
Para Kant, a geometria (assim como a aritmética) é conhecimento a priori, ou seja, independente da experiência empírica (ou florestal). E porquê? Porque segundo ele o espaço e o tempo são intuições da sensibilidade, e não propriedades dos objectos.
Ele não rejeitou qualquer experiência empírica. Muito pelo contrário. O que ele procurou fazer foi estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento (onde se inclui todo o conhecimento empírico). Como diz uma frase famosa dele, «todo o conhecimento começa com a experiência, mas não deriva todo desta».
O que ele rejeitou foi o conhecimento metafisico, e daí a sua distinção entre o fenómeno (cognoscivel), e a coisa em si (incognoscivel, mas pensável).
Lembro também que ele procurou fundamentar filosoficamente a Fisica Newtoniana, e não a Fisica Einsteiniana (como é óbvio). Portanto o que estava em causa era a geometria euclidina. Procurou com isso garantir a necessidade e universalidade daquela, já que eram postas em causa pelo cepticismo e empirismo de Hume, ou seja pela teoria de que a mente é uma tábua rasa (ou um balde vazio, como mais tarde Popper também contestará).
Em suma, convém não esquecer que a grande obra de Kant se intitulava «Crítica da Razão Pura» e não «Critica da Experiência Empírica e\ou Florestal».

antfilfon disse...

luis pedro, não acho que Kant esteja a ser enxovalhado, o que ele escreveu no sentido em que o descreve está certo e continuado pela epistemologia de Piaget por exemplo. No entanto a hipótese de um dualismo inerente à possíbilidade de um conhecimento aprioristico para lá da experiência empírica, no que respeita à falsificabilidade de uma teoria cientifica, que é o que aqui se foi discutindo julgo que é errado. Não sou especialista em física e não percebo nada de teoria das cordas mas julgo que a teoria em si, totalmente construida aparte a experiência sensível, eventualmente comprovável, tem uma forma como poderia ter outra completamente distinta. Surgiu de uma maneira que foi fruto das circunstãncias. Poderia ser traduzida numa outra linguagem que não a matemática? Poderia. Mas essa linguagem teria necessáriamente de representar de algum modo o mundo sensível, e nesse sentido ser refutável por fenómenos até agora não observados. A presunção que a experiência sensível humana é a única experiência sensível é precisamente refutada pelo facto de haver o conhecimento que não deriva directamente dela mas que não existe sem ela.

Desidério Murcho disse...

Olá, Marvl! Do facto de os anjos serem ou não sobrenaturais nada se segue. O próprio conceito de sobrenatural é incoerente, mas nada impede o seu estudo sério. O Ludwig fez um post brilhante sobre isto e eu concordo com ele.

João Miranda: estás a usar uma noção metafísica de falsificacionismo, e nesse sentido tens razão -- qualquer teoria científica que descreva um facto necessário do mundo é metafisicamente não falsificável. Popper pura e simplesmente não entendia isto porque achava óbvio que tudo o que dizia respeito ao mundo empírico era contingente, a necessidade tinha de dizer respeito apenas às verdades matemáticas. Mas o papel heurístico do falsificacionismo pode ser captado entendendo-o como um princípio epistémico e não metafísico. Mas aí pouco mais quer dizer do que "honestidade intelectual": se acaso descobrísses empiricamente que as coisas não são como a tua teoria diz que é, muda de teoria". Isto parece simples e obviamente aceitável, mas isto é precisamente o que Popper via que nem o marxismo nem a psicanálise, nem a astrologia fazem.

Desidério Murcho disse...

Francisco: se acharmos que algo é um pseudoproblema, achamos que a discussão disso é disparatada. Mas isso só significa que há razões definitivas para pensar que é um pseudoproblema -- o que por sua vez significa que discutimos seriamente se era ou não um pseudoproblema, em vez de supormos apenas que era.

Agora imagine que você pensa que discutir P é um disparate porque P é obviamente um pseudoproblema. Só que eu acho que P não é obviamente um pseudoproblema, acho que é um problema interessante e substancial. Será que não posso discutir seriamente P? Posso. Desde que o faça seguindo os mais rigorosos padrões de seriedade intelectual, estou a fazê-lo.

Pense, por exemplo, na ovnilogia, ou na astrologia ou na numerologia. As pessoas que estudam estas coisas não estão a fazer disparates porque partem de pressupostos que você e eu consideramos obviamente falsos ou até sem sentido. Elas estão a fazer disparates porque não seguem quaisquer padrões de virtude cognitiva: aceitam tudo o que confirme as suas ideias, mas ignoram tudo o que as refuta, embrulham a discussão em palavreado oco e não pertencem a uma comunidade que avalie criticamente o que eles dizem. Claro que uma coisa decorre da outra: se fossem críticos e não dogmáticos em relação às discussões no interior dessas áreas, rapidamente chegariam à conclusão que são os próprios pressupostos dessas áreas que não aguentam qualquer discussão crítica. Mas o defeito fundamental dessas áreas é a discussão no interior delas ser dogmática e irracional. Ou melhor: não há discussão, há aparência de discussão.

Joao Galamba disse...

Caro Desidério,

Reconheces (tomo a liberdade de te tratar por tu) que o estudo das ciências humanas é sobretudo interpretativo (hermeneutico), e que não faz muito sentido utilizar termos como "brute data" ou "factos" nesta área, sem que isso implique que estes sejam meramente "subjectivos"? Ou seja, não achas que a epistemologia que saiu da revolção cientifica do séc xvii não tem grande aplicação nas ciencias humanas?

Cumprimentos,
Joao Galamba

Anónimo disse...

Caro Desidério,

Como disse,
«Ou melhor: não há discussão, há aparência de discussão.»

Não é o que se passa com a teologia? A menos que se inclua todo e qualquer debate sobre o divino, o religioso ou o mítico dentro dessa categoria, não é a teologia um assunto que interessa apenas a teístas?

Mais acima falou de teologia séria, de filosofia da religião e teologia filosófica. Não será que isso cai dentro da mesma categoria de filosofia a que o Ludwig se referiu como "lixo intelectual"?

Anónimo disse...

Para o aff: tenho sérias dúvidas que seja conhecível a priori que caem árvores na floresta. Há contra exemplos para essa tese. Mas não deve ter sido isso que o aff queria dizer. Ou foi?

Luís Aguiar-Conraria disse...

"não vejo porque a hipótese de «universos paralelos» não seja testável no futuro."

Ricardo, nesse caso, e de acordo com a dedinição que usas, no futuro, tais teorias poderão ser científicas. Para já não. A definição que tu usas é uma definição de "ciência" contingente. A mesma teoria pode ou não ser científica de acordo com a capacidade tecnológica de a testar ou não. Sinceramente, parece-me uma definição demasiado redutora (e sem grande interesse).

antfilfon disse...

Não luis, claro que não foi, quis apenas sublinhar o paralelo entre o desconhecimento que existe na infinitude do mundo material com o suposto desconhecimento de verdades aprioristas contidas nos sistemas formais, no seguimento do propósito da metafísica. Parece-me que se pode fazer esse paralelo um pouco para mostrar como ambas as realidades cognoscíveis têm algo em comum. Ambas contêm realidades que que apesar de não sendo referenciáveis, no sentido interpretativo uma da outra, entre si só o podem vir a ser na medida em que a verdade formal se ajusta à experiência sensível, pela observação e descrição. Daí que a refutabilidade de uma teoria passa necessáriamente pela experimentação e nada tem a ver com a metafísica.

antfilfon disse...

Ou de outro modo, a matemática não é refutável.

Desidério Murcho disse...

Caro João Galamba:

Não sei se todas as ciências sociais são hermenêuticas, porque a classificação das ciências em sociais ou naturais nunca bate certo com nada. Por isso é melhor falar de casos concretos: a história e a sociologia, por exemplo, não podem ser encaradas como meras colecções de factos. Concordo. Só que a física e a biologia também não são meras colecções de factos. São muito mais do que isso, e envolvem a interpretação cuidadosa dos factos, das observações. Tal como a história ou a sociologia.

Esta história dos factos e da hermenêutica confunde as coisas, acho eu. O fundamental, como tentei defender no artigo, é obedecer a um conjunto de virtudes cognitivas, sem as quais é impossível fazer boa investigação — seja em história, em sociologia, em pedagogia ou em física, biologia ou matemática. O que temos de fazer é procurar as melhores metodologias em função do objecto de estudo. Acontece que essas metodologias nunca podem incluir a aldrabice do respeito reverente pela autoridade e pela tradição, o fechamento à discussão aberta e pública, o impedimento de procurar activamente contra-exemplos e explicações alternativas mais plausíveis, meros jogos de palavras baseados na citação terrorista, etc.

Por exemplo, em muitas das tolamente chamadas “humanidades”, como em filosofia, é muito comum os estudantes aprenderem a fazer trabalhos académicos assim: primeiro, o estudante já sabe o que quer defender; depois, o trabalho consiste em arranjar carradas de citações de autores que concordam com essa perspectiva, e ignorar os outros, ou referi-los só de passagem para os denegrir. E está feito o trabalho. Isto é pura aldrabice intelectual e é rigorosamente equivalente a um biólogo que ignore todos os dados empíricos que refutam a sua tese, dando atenção apenas aos dados empíricos que são compatíveis com ela. Chama-se a isto “supressão de dados”. Um bom trabalho académico, pelo contrário, procura activamente os melhores argumentos e razões contra a teoria que se está a defender; e se tais razões forem poderosas e não houver respostas honestas convincentes, então o investigador deve mudar de ideias. Numa palavra, este é o insight de Popper: ele percebeu que os astrólogos são basicamente aldrabões intelectuais porque nunca estão dispostos a mudar de ideias independentemente das razões contrárias com que forem confrontados.

Desidério Murcho disse...

Caro Francisco: não a teologia filosófica não interessa só a teístas. Claro que os ateus têm uma tendência para não se interessar muito por filosofia da religião, mas há bons filósofos da religião, que fazem teologia filosófica, e que são ateus. E isso é muito importante, pois se não fosse assim a filosofia da religião seria realmente um disparate em que toda a gente concordaria com o pressuposto de que existe o deus teísta, quando precisamente isso é uma das coisas mais importantes que a filosofia da religião tem por missão discutir. Atenção que a teologia filosófica ou natural é muito diferente da teologia revelada — esta sim, é mera apologética religiosa e não me parece que possa ser feita com seriedade intelectual precisamente porque nunca se pode pôr em causa a veracidade da revelação nem da tradição.

Joao Galamba disse...

Caro Desidério,

O meu comentário é motivado por aquilo uma certa exclusão (desconsideração) da hermeneutica nos seus escritos sobre filosofia (que acompanho ´ha alguns anos, sobretudo no antigo critica na rede). Parece-me claro que as suas simpatias vão para a filosofia dita analítica, tradição que considero muito redutora, sobretudo em filosofia política e ciências sociais em geral. Considero que o seu atomismo e, sobretudo, a sua abordagem a-historica, introduziram alguma aridez e sobre-especialização na "disciplina", afastando-a de outras áreas do "saber".

Cumprimentos,
Joao

Joao Galamba disse...

Caro Desidério,

Escreveu: "em que toda a gente concordaria com o pressuposto de que existe o deus teísta, quando precisamente isso é uma das coisas mais importantes que a filosofia da religião tem por missão discutir."

Um filosofo como Paul Ricoeur, cristão, rejeita em absoluto que esta deva ser a preocupação da abordagem filosofica da religião. Ricoeur aceita o anti-platonismo de Nietzsche e evita esse tipo de onto-teologia. A questão que tem interesse para ricoeur não é saber se uma entidade (Deus) existe (ou seja não é uma questão que passe por considerações epistemológicas) mas a da reapropriação de mitos fundadores (para ricoeur estes são constitutivos da condição humana) e sua reinterpretação após as filosofias ateias de Nietzsche e Freud. Ou seja, há um desfasamento (e absoluta falta de inteligibilidade) entre filosofos da religião da tradição analítica e os mais preocupados por questões de significados da tradição continental e hermeneutica em particular.

Desidério Murcho disse...

Caro João

A acusação de que algo é redutor é sempre vazia, porque tudo é sempre redutor: não se pode discutir tudo ao mesmo tempo. Por que razão discutir se deus existe é redutor, mas recusar essa discussão e discutir as representações sociais que se fazem da religião já não é redutor? Eu acho que as duas coisas devem ser discutidas.

Estou em crer que não conhece bem a filosofia analítica, dado que o atomismo e a abordagem a-histórica não caracterizam a filosofia analítica de modo algum. Basta ler as muitas revistas especializadas dedicadas à história da filosofia ou os muitos livros dedicados à história da filosofia para o perceber. Acho aliás curioso que hoje em dia tanta gente fale da filosofia analítica, precisamente quando deixou de fazer grande sentido falar disso. Por comparação, fiz uma licenciatura em filosofia sem nunca ter ouvido falar de tal coisa. Isso, claro, não era reducionista. Era mais ou menos a mesma coisa do que acontecia em Portugal nos anos 70, em que se tirava um curso de física ou de biologia como se Einstein ou Darwin nunca tivessem existido.

Quanto à minha exclusão da hermenêutica nos meus escritos, não me parece que se possa dizer isso de alguém que organizou um livro chamado Textos e Problemas de Filosofia, que procura ensinar os estudantes a ler textos importantes da tradição filosófica. O que se passa é que não finjo que a filosofia analítica não existe nem procuro escondê-la.

Se estamos habituados a que se fale apenas no mundo a preto e branco, quando aparece alguém que fala no mundo a cores, parece que quer excluir o preto e o branco. Mas isto é uma ilusão. O preto e o branco estão lá. Só que estão lá também as outras cores todas. Para quem pensa que a filosofia da religião se reduz a Habermas e Ricoeur e Nietzsche, pode parecer um tremendo reducionismo falar de outros autores que nem conhecemos. Pois, mas se formos ler as revistas da especialidade e os livros publicados na área nas mais reputadas universidades, esses autores são apenas três entre uma imensidão de outros. E estão longe de ser os mais discutidos.

Ricardo Alves disse...

«Ricardo, nesse caso, e de acordo com a dedinição que usas, no futuro, tais teorias poderão ser científicas. Para já não.»

São teorias científicas quando são as melhores que existem, e permitem prever factos que de outra forma não seriam explicáveis. A lei da gravitação de Newton também nada dizia sobre uma interacção à distância, limitava-se a assumir que existia. Poderemos vir a ter uma teoria de supercordas que preveja novos factos observáveis, e também que preveja universos paralelos.

«A definição que tu usas é uma definição de "ciência" contingente.»

Justamente: a ciência é sempre contingente.

Luís Aguiar-Conraria disse...

"São teorias científicas quando são as melhores que existem, e permitem prever factos que de outra forma não seriam explicáveis."

É esta a tua definição de teoria científica???? Então a teoria de Copérnico não era científica?

"a ciência é sempre contingente."

A ciência até pode ser, agora a definição de ciência...

Anónimo disse...

Peço desculpa pela minha intromissão neste debate, para o qual não tenho "pedalada".
Há uma frase que, se não estou em erro, li em " Sonhos de uma teoria final" de Steven Weinberg e que me parece próxima da realidade, ( não me peçam os filósofos para definir o que é realidade).
A frase é: "A filosofia da ciência é muito importante... para os filósofos da ciência".

Anónimo disse...

Anda muita gente aqui a falar do que não sabe, nem consegue deduzir.

Anda muita gente aqui a fazer extrapolações interpretativas de teorias que não conhece em profundidade.

Anda muita gente aqui a ler livros de ficção científica by Stephen Hawking e Carl Sagan.

João Vasco disse...

joãomiranda:

Se eu medir a distância que um corpo percorre, e o tempo que demora a percorrer tal distãncia durante um intervalo de tempo; eu meço experimentalmente a velocidade média com que o corpo percorreu essa distância.

Claro que existe uma conta de dividir pelo caminho, mas não é a existência de várias deduções que faz com que a medida não tenha sido experimental.


Da mesma forma quando o princípio da selecção natural é formulado na forma condicional, isso não é ciência - é um raciocínio dedutivo, análoga à conta de dividir no caso anterior.

O princípio de selecção natural é científico (e falsificável) porque se observa que os seres vivos correspondem às condições necessárias para que o princípio se aplique. E isso é falsificável.


Uma analogia mais simples: se eu deduzir que os seres vermelhos são BRAZÚVIOS (e os que não são vermelhos não são), e depois observar que certos búzios são vermelhos, a afirmação "os búzios são Brazúvios" é falsificável.

Da mesma forma a afirmação "os seres vivos estão sujeitos às regras da selecção natural" é falsificável. Por isso é que é científica.

Joao Galamba disse...

Caro Desidério,

A minha preferência vai para a a dita filosofia continental, uma tradição que me parece claramente subrepresentada no livro que refere (com algumas excepções como Sartre ou Hegel) ao não incluir toda a tradição inspirada em autores como Hegel, Nietzsche ou Heidegger.
Pode rejeitar a designação "filosofia analítica", mas ela é abundantemente utilizada e contrastada com a filosofia continental (é ler os blogues de filosofia estrangeiros e ver como a dicotomia e a falta de comunicação íncompatibilidade?- entre as duas são evidentes).
Para quem se identifica com a tradição continental, há muitas áreas da filosofia que deixaram de fazer sentido. A mais evidente é a epistemologia (Charles Taylor tem varios artigos onde defende este ponto e tem mesmo um cujo titulo -se não me engano- é an end to epistemology. A fiosofia continental (designação fluida caracterizada sobretudo por "family resemblance") redefiniu os termos nos quais se faz filosofia bem como as suas preocupações fundamentais. Problemas como dicotomia sujeito/objecto (e toda a metafisica que esta pressupoe), verdade como representação correcta da realidade, Idealismo vs. realismo, etc... foram abandonados (Ser e Tempo é um exemplo claro nesta área). Mas Heidegger não refutou a Epistemologia de Locke ou Frege: ele questionou o seu ponto de partida como sendo algo auto-evidente, e mudou o assunto. Este ponto parece por em causa o seu argumento de que a argumentação e espirito critico são semelhantes em filosofia ou ciência.

A filosofia continental é sobretudo uma Practical Philosophy (como a definem autores como Arendt ou Gadamer), cuja preocupação principal é a utilização de uma nova ontologia (daí eu ter utilizado o termo "atomismo") que, por sua vez, permite uma interpretação/critica da nossa condição histórica.

Não conheço a sua opinião sobre estes autores, mas parece-me evidente que há um enorme fosso entre eles e a maioria daqueles que destaca nos seus escritos.

Cumprimentos,
Joao

ps: haver livros de história da filosofia escrita por autores da área que eu considero pertencerem à tradição analítica não refuta o meu ponto de esta área ser quase exclusivamente a-histórica. É o facto de se tratar a filosofia como algo que lida com problemas concebidos como context-free e que não tomam incluem a temporalidade como algo constitutivo do pensar filosofico.

Joao Galamba disse...

e para concluir:
No livro que refere, a organização do índice revela a tradição na qual o Desidério se situa (mesmo que inconscientemente). Podemos dizer que um livro como Sources of the Self, de Charles Taylor é um livro de história, mas é também, e sobretudo, um livro de filosofia, que comporta em si uma parte significativa do pensamento filosofico Ocidental. É uma espécie de Fenomenologia do Espírito, diferente da de Hegel porque utiliza uma ontologia heideggeriana (tem semelhanças com mas é algo diferente do pensamento dialéctico hegeliano). Quando Taylor escreve sobre epistemologia ou linguagem ele acaba por defender sempre o erro de se separar algo como Filosofia Moral ou Filosofia do Conhecimento. Para Taylor esta separação e os termos em que os debates são conduzidos JÁ pressupõe determinados preconceitos historicamente particulares e que contém em si mesmos (e aqui entra a componente hermeneutica) elementos de uma orientação moral historicamente situada.

Desidério Murcho disse...

Caro João

A sua percepção das diferenças entre a filosofia analítica e continental não é historicamente rigorosa, em grande parte porque parece confundir os filósofos, de uma ou outra tradição, com os comentadores.

Husserl é um filósofo continental, mas o seu trabalho é muito mais a-histórico do que o de Bernard Williams ou Martha Nussbaum.

Leiter é um filósofo de formação analítica, mas faz história da filosofia e trabalha sobre Nietzsche, Foucault e outros dos chamados filósofos continentais.

Habermas é um filósofo continental, mas os seus livros têm muito menos referências históricas do que os de Jonathan Wolff ou Rawls, que são analíticos.

Não há diferenças substanciais entre os chamados filósofos continentais e analíticos. Em ambos os lados se encontra maior ou menor lucidez e clareza, e maior ou menor tecnicismo, maior ou menor vitalidade filosófica ou cinzentismo.

Há é uma diferença fundamental entre duas maneiras de estudar e investigar filosofia.

1) Numa, estudam-se os filósofos como se fossem Profetas, que são infinitamente parafraseados e reverenciados, mas nunca genuinamente discutidos porque isso é blasfémia.

2) Noutra, discutem-se as ideias dos filósofos, perguntamo-nos se eles terão razão e porquê, em vez de aceitarmos passivamente que a epistemologia morreu ou que a própria filosofia morreu.

1 não me interessa porque o que me interessa é o debate filosófico de ideias filosóficas.

Anónimo disse...

Se a filosofia continental é acrítica
então Fichte, Schelling e
Hegel não criticaram Kant, Heidegger não criticou Husserl e aí por diante.
E o estatuto glorioso de filosofia crítica está reservado à filosofia analítica.

Cumprimentos

Desidério Murcho disse...

Caro Silvestre: precisamente! O que eu digo é que quando as pessoas caracterizam a filosofia analítica de certa maneira não estão a ser rigorosas, porque confundem a atitude acrítica que algumas pessoas têm perante os filósofos, encarando-os como Bíblias que só nos resta interpretar infinitamente, como diz Savater, dos filósofos eles mesmos. Será preciso lembrar quão críticos são os textos de Nietzsche ou Foucault?

Portanto, não sou eu que reivindico a crítica apenas para a filosofia analítica. Quem o faz são as pessoas pouco rigorosas que acusam a filosofia analítica de ser logicista ou redutora ou sei lá o que mais. Acusações quase sempre baseadas no profundo desconhecimento da bibliografia básica.

A filosofia analítica não é prática? Então a ética aplicada não é prática? Discutir se o aborto é permissível não é uma questão prática?

Joao Galamba disse...

Desidério,

E´claro que há excepções. Eu não pretendi definir nada, mas apenas apontar uma caracteristica que, na minha opinião, caraterizará uma tradição filosófica. Entre Kripke e Heidegger, Davidson ou Gadamer, há um mundo de diferenças. Para este último a filosofia é um humanismo que deve evitar qualquer tendência formalista. Fala do Habermas como alguém que não faz grandes referências históricas, mas o seu philosophical discourse of modernity /se não me engano no título) então é o quê? Husserl é um caso especial. Tentou fazer da filosofia uma ciência exacta, mas também introduziu o conceito de Lebenswelt (não sei se é assim que se escreve) o que acaba por perverter essa tentativa.
A minha "definição" não é rigorosa
porque o tema não é passível de rigor. Mas as distinções não são menos úteis por isso.
Cumprimentos,
Joao

Joao Galamba disse...

Desidério,

A ética aplicada, se resultar de uma aplicação de uma teoria moral, não é prática, no sentido que Gadamer dá à coisa. Para alguém como Gadamer a prática não é, nem resulta, nunca uma aplicação de uma teoria.
É este o corte com a filosofia tradicional que Heidegger introduziu: a filosofia tradicionalmente tratou o conhecimento a partir de uma situação semelhante à de um detached observer (para Heidegger, Kierkgaard terá sido uma das raras excepções) e com isso "inventou" uma série de problemas que para ele não passam de pseudo questões (por exemplo a questão da prova da existência do mundo).

Joao Galamba disse...

...ou da existência dos valores, ou da sua objectividade ou subjectividade, etc... Tudo isto são pseudo-problemas. Sobre isso Rorty escreveu abundantemente (apesar de eu discordar de muito do que Rorty escreve, reconheço que ele foi um dos grandes contribuidores para a "morte" da filosofia analítica e dos seus problemas tradicionais)e ele vem da filosofia analítica (ele utiliza este termo, o memso que o Desidério acha -e está, obviamente no seu direito- que não é rigoroso.

Desidério Murcho disse...

Caro João: o que se passa é que

1) o termo induz em confusões pelo que já expliquei (confunde-se os filósofos de uma ou outra tradição com o que os professores fazem com eles nas aulas e nas suas publicações) e

2) as coisas mudaram tanto nos últimos 30 anos que a divisão deixou de fazer em grande parte sentido.

Os comentários de Rorty e outros poderão ter sido relevantes nos anos 50, ou relativamente à filosofia dessa altura. Mas hoje são mais enganadores que outra coisa.

Quanto à ideia de que grande parte dos problemas tradicionais da filosofia são pseudoquestões, também essa não é uma característica distintiva dos chamados filósofos continentais dado que Carnap e muitos outros filósofos, como Wittgenstein, consideravam também que muitos problemas da filosofia, ou até toda a filosofia, era apenas confusão e pseudoquestões.

Finalmente, quanto à ideia de que a filosofia é uma das humanidades, filósofos como Bernard Williams e outros defenderam essa perspectiva, mas nem por isso Rorty deixaria de dizer que são analíticos.

O que eu quero dizer é o seguinte, João: se se interessa pela filosofia, borrife-se para essas classificações e vá até onde o levar o seu estudo, sem atender a divisões entre insulares e sintéticos. :-)

Em geral, quando se quer fazer essa oposição marcada entre duas “correntes” filosóficas é porque as pessoas querem acabar com uma delas. Eu não quero acabar com nenhuma delas, até porque em Portugal não temos uma nem outra. Eu quero é estimular a filosofia de qualidade no nosso país, para que os estudantes portugueses tenham as mesmas oportunidades de se tornarem filósofos de renome internacional que têm os seus colegas dos países mais desenvolvidos.

Joao Galamba disse...

Desidério,

Aceito a sua sugestão.
Um abraço,
Joao

Desidério Murcho disse...

João, vi agora no seu perfil que está aqui ao lado no LSE? Eu estou no KCL! Somos vizinhos.

Joao Galamba disse...

Eu estive quatro anos na LSE, mas a bolsa acabou-se e agora estou em PT. Mas acho que pelo que já deu para ver das minhas preferências filosóficas, estou no departamento errado. Quando der um salto a londres dou um toque.
Um abraço

(e ve lá se também destacas uns livritos da área mais "humanistica". O Charles Taylor é um all rounder e evita os "barroquismos" de alguns autores mal afamados. O Sources of the self era uma boa aposta para os que "vale a pena traduzir" -é um livro magistral)
Joao

Desidério Murcho disse...

João, podes escrever tu uma apresentação do livro do Taylor para a Crítica (criticanarede.com) e eu publico com gosto. Eu divulgo obviamente o que conheço, gosto e acho interessante. Felizmente há muitos mais livros no mundo do que aqueles que eu divulgo publicamente. É preciso é haver mais gente a divulgar bons livros!

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