quarta-feira, 14 de março de 2007

BIBLIOTECA COSMOS


Divulgar significa, segundo o “Novo Dicionário Aurélio”, “tornar público ou notório, publicar, propagar, difundir, vulgarizar”. O último termo tem em comum o vocábulo “vulgar”, que significa “pertencente ao vulgo (povo), comum”. Divulgar a ciência é, portanto, “tornar a ciência pública ou notória, publicá-la, difundi-la, vulgarizá-la”. Se a ciência é um empreendimento humano invulgar (não é nem pode ser praticada por todos) ela pode ser vulgarizada (isto é, pode ser conhecida e apreciada por todos).

A divulgação da ciência tornou-se ela própria vulgar nos países mais desenvolvidos, sendo até considerada condição para o desenvolvimento. Fala-se hoje muito de “compreensão pública da ciência” ou, numa expressão mais simples, de “cultura científica”, querendo dizer maior e melhor inserção da ciência na sociedade. Os anglo-saxões usam termos como “popular science” e “scientific outreach”.

Há muitas maneiras de divulgar a ciência. Mas os livros sempre foram e continuam a ser insubstituíveis. A existência de muitos e bons livros de ciência num país é um indício inequívoco de cultura científica.

Se hoje em dia a Gradiva e a sua colecção “Ciência Aberta” são emblemáticas, a editora “Cosmos” e a sua colecção “Biblioteca Cosmos” foram pioneiras, tendo marcado a cultura científica nacional nos difíceis anos 40 do século passado. A colecção “Biblioteca Cosmos” deve-se praticamente a um só homem: o seu director, o matemático e divulgador científico Bento de Jesus Caraça, professor no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras da Universidade Técnica de Lisboa, em quem os proprietários da editora “Cosmos” delegaram responsabilidades. O objectivo de Caraça, ao criar a colecção em 1941, vem claramente expresso no seu prefácio ao primeiro volume, “O Homem e o Livro”, do engenheiro soviético e divulgador científico M. Iline (pseudónimo de Ilya Marshak):

“(...) dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornando acessível a todos aquilo que as condições materiais de vida e as necessidades profissionais da especialização tornam sempre difícil, e por vezes sempre impossível, adquirir – uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas.

Quando falamos em tornar acessível, entendemo-lo de duas maneiras – pelo preço dos volumes, o qual será tão baixo quanto possível, e pela forma de tratar os problemas, que será simples, concisa, em linguagem ao alcance de todos.

Procurará realizar-se a síntese destas duas exigências – simplicidade máxima na forma de exprimir, rigor máximo na forma de expor. Obra de vulgarização, procurará sê-lo no sentido alto do termo – aquela vulgarização que não abaixa nem deturpa, que traz ao nível do homem comum o património cultural comum
” (sublinhados no original).

Mais adiante, o prefaciador pergunta e responde sobre a viabilidade do seu projecto:

É possível pôr ao alcance de todos a cultura geral? (...) Não é verdade que, como se vê afirmar com frequência, vulgarizar é sempre baixar? (...) O que se pretende vulgarizar é, precisamente, o que pertence ao domínio geral, e aí não há nada que não possa ser aprendido pelo comum dos homens. É a eles que é dirigida esta Biblioteca

A “Biblioteca Cosmos” foi bastante popular. Ao longo de sete anos e num período dominado pela Segunda Guerra Mundial, foram publicados 145 números, correspondentes a 106 títulos (a colecção termina em 1948 logo após a morte do seu director). Só no primeiro meio ano da colecção surgiram 10 números. A tiragem total da colecção foi de cerca de um milhão de volumes! A primeira secção – Ciências e Técnicas (dividida em Matemática e Cosmologia, Ciências da Natureza, Ciências Biológicas, Ciências Psicológicas e Sociológicas e Filosofia e História da Ciência) era, sem dúvida, a mais querida de Bento de Jesus Caraça. Nela foram publicados 48 dos 106 títulos, com predomínio das ciências biológicas. Ele mesmo foi o autor de um popular título em dois volumes: “Conceitos Fundamentais de Matemática”. Esta obra, que poderá não ser completamente acessível ao público comum, vendeu, em quatro edições, cerca de 15 000 exemplares! O preço ajudava porque a preços actuais cada volume da “Cosmos” custava cerca de dois euros… As outras secções pretendiam mostrar os outros mundos para além da ciência mas, em muitos casos, associados a ela: Artes e Letras, Filosofia e Religiões, Povos e Civilizações, Biografias, Epopeias Humanas e Problemas do Nosso Tempo.

Num período em que a ciência portuguesa não podia brilhar (em 1947 foram demitidos da função pública os físicos Mário Silva e Manuel Valadares e os matemáticos Rui Luís Gomes e o próprio Bento de Jesus Caraça), a maior parte dos volumes tinha autores portugueses. Refiram-se, além de Caraça, Aurélio Quintanilha, Rómulo de Carvalho (que na altura ainda não se tinha revelado como poeta), Henrique de Barros e Abel Salazar. Entre os poucos autores traduzidos, além de M. Iline (autor também de “100 000 Porquês”, publicado mais tarde na colecção em apreço), o físico soviético George Gamow (autor de “O Sr. Tompkins no País das Maravilhas”) e os biólogos inglês J. H. S. Haldane (co-autor de “A Biologia na Vida Diária”) e francês Jean Rostand (autor de “A Vida e os seus Problemas”).

Fica-se a pensar como teria prosseguido essa colecção se o seu mentor não tivesse prematuramente falecido... Estavam, em 1948, anunciados 45 volumes para publicação, dos quais 14 na primeira secção, de autores como António da Silveira, Mário Silva, Rui Luís Gomes, Alfredo Fernandes Martins e Orlando Ribeiro.

A “Biblioteca Cosmos” foi um feito cultural invulgar. E o relevo da ciência e da técnica nessa verdadeira enciclopédia do conhecimento humano foi percursor, entre nós, da moderna cultura científica.

3 comentários:

Miguel G Reis disse...

O livro de Bento de Jesus Caraça é um monumento, ao esforço de compreensão e de transmissão dessa mesma compreensão da matemática. Li-o om extraordinário prazer, e acho que continua a ser dos melhores livros de divulgação da matemática jamais escritos em Portugal.

E este postal é um justíssimo e excelente tributo a esse grande português e a essa colecção fantástica de livros.

Abraço
Miguel

zé do telhado disse...

Quero crer que entre os principais Colaboradores do Professor Bento de Jesus Caraça, também na Cosmos, estavam seus dedicados assistentes no ISCEF, conhecidos, na época por "os meninos do Professor Caraça", nomeadamente Costa Leal, Morbey Rodrigues e Amaro Duarte Guerreiro, este doutorado em Estatística, no Reino Unido, nos anos da II Grande Guerra e Director-Geral, durante muitos anos, do INE. Amaro D. Guerreiro escreveu, para a Biblioteca Cosmos, "Quadro económico do mundo", em 1943 e "O ferro", em 1948.

Serôdio Inverno disse...

Não saberia indicar quem o responsável pela parte artística destas edições?

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