quinta-feira, 22 de março de 2007

Pedradas no charco

Um dos argumentos dos criacionistas (e dos neo-criacionistas ou IDiotas) contra a evolução reside no que eles chamam a impossibilidade da abiogénese, ou seja, a formação da primeira molécula com capacidade de auto-replicação a partir de material não biológico. Na realidade a objecção é falaciosa uma vez que o evolucionismo é independente de qualquer hipótese abiogénica, ou seja, apenas explica a evolução das espécies a partir de ancestrais comuns sem propor qualquer teoria sobre como esses ancestrais surgiram.

Mas a abiogénese pode ser explicada, independentemente da teoria da evolução, apenas com base na química dos elementos, especialmente os constituintes dos compostos orgânicos, e na química destes compostos orgânicos, nomeadamente na sua capacidade de auto-organização (self-assembly) que consiste na formação (espontânea) de estruturas complexas a partir de componentes simples. Um exemplo de uma estrutura destas, que permite a realização de tarefas que os componentes isolados são incapazes de promover, é a membrana celular cuja formação é mimetizada facil e regularmente em laboratórios de todo o mundo.

Os detergentes são um exemplo mais banal de auto-organização de moléculas relativamente simples. Os detergentes, ou moléculas anfifílicas, para além de baixarem a tensão superficial da água - aumentam a molhabilidade da água, fácil de confirmar deixando cair uma gota de água em cima da bancada, deixar cair ao lado uma gota de água com detergente e confirmar que esta última se espalha mais - formam aglomerados auto-organizados de forma globular, as micelas, que dissolvem todo o «lixo» orgânico não solúvel em água (gorduras, etc.).

Claro que os criacionistas, que lêem todos pela mesma cartilha, citarão um artigo da Science de 3 de Outubro de 1980 (literatura state of the art no que ao criacionismo diz respeito) para afirmar que a síntese de moléculas orgânicas, como aminoácidos ou os fosfolípidos constituintes das membranas, de forma não «desenhada» é impossível.

O referido artigo constesta as premissas em relação à composição da atmosfera primordial usada na experiência de Urey-Miller, concebida para testar a hipótese de Oparin e Haldane sobre a origem da vida. Miller produziu grandes quantidades de aminoácidos (entre outras moléculas orgânicas) por descargas eléctricas através de uma mistura gasosa rica em metano, CH4 e amónia, NH3.

Não só as hipóteses de biopoeise (do grego bio, vida, + poiéo, produzir, fazer, criar) não pararam nos anos 50 do século passado como existem provas «extraterrestres» de síntese abiótica destes compostos, algumas de dimensões que as tornam difíceis de ignorar.

De facto, os 100kg do meterorito Murchison, que caiu perto da localidade homónima na Austrália em 1969, tornam-no complicado de passar despercebido. Para além disso, a sua análise e a discussão do que esse análise revelou produziu uma massa de artigos científicos que rivaliza em envergadura com o Murchy.

A análise do meterorito revelou que este apresentava aminoácidos comuns como a glicina, alanina e ácido glutâmico mas também aminoácidos menos comuns como isovalina e pseudoleucina. O relatório inicial indicava que as duas formas destes aminoácidos - alguns aminoácidos apresentam dois isómeros ópticos, como um objecto e a sua imagem no espelho, designados por L e D - estavam presentes em quantidades iguais (uma mistura racémica) mas análises posteriores revelaram que a forma L ou levógira se encontrava em excesso.

As proteínas que nos constituem são cadeias mais ou menos longas, dependendo da proteína, de aminoácidos. Na esmagadora maioria dos organismos são apenas incorporados os isómeros L, embora alguns caracóis do mar incorporem isómeros D, igualmente abundantes na parede celular de bactérias.

Mas as surpresas do Murchy não ficaram por aí. Detectou-se ainda a presença de uma mistura complexa de hidrocarbonetos (semelhante à encontrada na experiência de Miller-Urey) e verificou-se que essa mistura complexa de hidrocarbonetos dava origem a vesículos em água, estruturas auto organizadas que funcionam como as membranas celulares!

Como notou Dave Deamer da UCSC «Toda a vida hoje em dia é celular, e as células são definidas por membranas que separam o citoplasma do mundo exterior. Quando a vida começou, em algum ponto tornou-se compartimentada na forma de células. Mas de onde vieram as primeiras membranas celulares? Talvez fossem compostas de moléculas similares às que descobrimos em meteoritos».

1 comentário:

Francisco disse...

Excelente texto.

Como dizemos, brincando com criacionistas ("carinhosamente" chamados CRIAS) no ORKUT:

PAU NELES!

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...