sábado, 24 de março de 2007

Ciência e erro

Um dos aspectos que provoca por vezes confusão na compreensão da natureza da ciência é o facto de os cientistas errarem. É uma tentação argumentar que, dado que os cientistas se enganam e defendem por vezes teorias incompatíveis entre si, a ciência está afinal ao mesmo nível da bruxaria ou de qualquer outra manifestação cultural, nomeadamente religiosa. É apenas um método de descobrir verdades, entre outros — nem melhor, nem pior.

O tipo de erro aqui em causa é profundo e está origem de muitas ideias insustentáveis. É uma pena que não se estude com mais atenção John Stuart Mill, que no seu Sobre a Liberdade (1859), um livro pleno de sabedoria e sofisticação epistemológica, declara: “As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento.”

A ciência nasceu precisamente desta convicção profunda: que somos falíveis e que por isso as mitologias, as afirmações dogmaticamente estabelecidas, incluindo as religiosas, nos afastam da verdade porque procuram impedir o livre fluxo de discussão e análise crítica. A ciência não é um método infalível de descobrir verdades. É melhor do que a leitura intensa de livros sagrados, por exemplo, e melhor do que as visões que temos quando jejuamos no alto de uma montanha; mas não é infalível. Ora, é um erro pensar que só devemos confiar num método se for infalível. Isto é um erro porque se não tivermos métodos infalíveis temos de nos contentar com os melhores dos falíveis.

Esta estratégia tem outra vantagem. Dado que não temos a ilusão de pensar que os nossos métodos são infalíveis, criamos mecanismos de controlo de erros. O mais importante desses mecanismos é cada cientista ou cada filósofo submeter as suas teorias à análise crítica aberta e frontal dos seus pares. Compare-se isto com a atitude religiosa, em que as afirmações dos livros sagrados e dos dirigentes religiosos são tidas como vinculativas e a discordância punida com a excomunhão (ou com a morte).

Em conclusão, e ao contrário do que por vezes se pensa, é precisamente porque na ciência se erra que as suas afirmações merecem mais confiança do que as das tradições sapienciais ou religiosas, que se outorgam falsamente a propriedade sobre-humana da infalibilidade.

9 comentários:

Attila disse...

Um versão simplificada do que queres dizer (acho eu) e’ que em ciência existe uma competição intensa de ideias, onde apenas sobrevivem as melhores.

Ora nesta afirmação existe um aspecto crucial que e’ a palavra “melhor”. Em ciência “melhor” tem de ser OBJECTIVAMENTE “melhor”, pelo que a ciência apenas se pode pronunciar acerca de assuntos onde seja possível ter um debate baseado em factos qualitativamente e quantitativamente absolutos.

Ou seja, a ciência pode provar que a o sol anda em redor da terra, mas não se deve pronunciar sobre a existência de deus.

Manel disse...

A nível do espaço público, social, político, nem a ciência nem ninguém se pode pronunciar convictamente sobre a existência de deus. O problema é que isso é um estado ideal das coisas, que na realidade não existe. Penso que enquanto a laicicidade não for sólida [oração claramente optimista, não sei se realista], a clareza da ciência, com todos os erros e correcções que a legitimam, é indispensável na barricada. Porque no que toca a liberdades cívicas e a ética social e política, é de uma barricada que se trata.

Attila disse...

Mas a clareza da ciência nasce do facto que aceita com naturalidade a relatividade da sua própria verdade. A politização da ciência leva regra geral a uma distorção desta realidade.

Por exemplo ninguém pode com honestidade intelectual afirmar que a ciência prova que o "Sim" ou o "Não" ao aborto estão correctos. A ciência apenas fornece dados objectivos e depois cada pessoa conclui subjectivamente aquilo que quer concluir.

Anónimo disse...

Desidério:

Acho que o texto não indica como resolver o verdadeiro problema da ciência, que é o fechamento dos cientistas (ou de muitos deles) dentro de um conjunto estanque de valores – pois é disso que se trata: valores metodológicos. (Mas também acho que “cassete” do Desidério contra os métodos ditos alternativos está mais afinada do que nunca. Por isso, parabéns!)

«é um erro pensar que só devemos confiar num método se for infalível. Isto é um erro porque se não tivermos métodos infalíveis temos de nos contentar com os melhores dos falíveis»

Claro. Mas o problema não é esse. O Problema é que os cientistas vêem normalmente os seus métodos como infalíveis, pois a maior parte deles nem se dá ao trabalho de os questionar. Isto é evidente. Quem questiona o método cientifico sem usar a metodologia científica? Certamente que não os cientistas, pois isso é para eles contra natura. E até suspeito que para alguns mais ferrenhos adeptos da ciência dura é mesmo uma “religião” revelada (pelos Mills, pelos Darwins e pelos Einsteins).

Não se trata de escolher bem, como fazem alguns cientistas mais conscientes das suas próprias limitações e das limitações do método que usam. Trata-se escolher bem mas deixando espaço ou considerando potenciais alternativas - que não o são à luz do método cientifico, claro, e que por isso são liminarmente rejeitadas.

Saudações

JV disse...

Se a assim porque é vocês chamam aos neo-criacionistas IDiotas?

E já agora como é que prova que o tempo existe?
E como é que explica a teoria da evolução aos seus alunos sem lhes explicar primeiro determinados pressupostos metafísicos, como por exemplo a existência de uma realidade independente do observador, a existência de espaço e a existência de um tempo que se prolonga até a um passado remoto. Ou como é que se pode ficar pelas questões técnicas do evolucionismo sem a partir delas analisar as suas consequências filosóficas.

Attila disse...

Zazie que fixe... é sempre porreiro ler um comentario teu...

Sobre o facto dos cientistas serem estanques:

O metodo cientifico é estanque por natureza. Cientificamente não é possivel discutir o creacionismo porque se trata de uma crença. Ora isto não quer dizer que os creacionistas sejam idiotas; porque é sempre possivel discutir esta teoria sob o ponto de vista filosofico ou religioso.

Ps. a natureza estanque do metodo cientifico é simultaneamente uma das suas forças e fraquezas...

Palmira F. da Silva disse...

IDiots:

Intelligent Design is Involved in the Origin of The Species :-)

Já agora e para saber com quem falo, qual é o novo nick da Zazie? JV?

zazie disse...

O meu nick é o mesmo de sempre, Palmira. Deixei um comentário muito normal que até foi depois comentado por outra pessoa.

Pergunte ao "nosso" filósofo se, por influência académica, também decidiu mandá-lo para o maneta.

":O))

Mas já tem lá um print screen para confirmar. Posso fazer mais outro deste

Beijinhos.

É tão bom este tom caseiro, ao nível primata do Pai Esperança

Marco Oliveira disse...

A ciência é uma descrição mental e racional do mundo que nos rodeia. O Carl Sagan dizia que ainda mal começamos a nossa aventura que é conhecer o universo.

Misturar religião e ciência geralmente dá asneira.

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Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...