quarta-feira, 28 de março de 2007
CIÊNCIA EM PALCO
Hoje, 27 de Março, é Dia Mundial do Teatro. No Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, foi lançado o número zero da revista "Partilha de Cena", publicada pela Máfia - Associação Cultura de Coimbra. Dedicado ao tema "Teatro e Ciência", além de três peças de teatro sobre temas científicos e de um texto do bioquímico americano Carl Djerassi, a revista inclui o seguinte texto meu. Como falo do "Hamlet", aproveito para referir que essa peça está em cena no Teatro da Trindade em Lisboa, com tradução, cenografia e interpretação no papel principal de André Gago.
A arte tem em comum com a ciência a criatividade e a procura do belo, embora o façam por caminhos diferentes. A arte tem a capacidade de tocar as pessoas ao transmitir sentimentos e emoções. Não admira por isso que a cultura científica, que é a ciência no seio da sociedade, encontre um meio privilegiado de expressão através da arte. Entre as várias formas artísticas, o teatro ocupa um lugar único. O teatro, que é a representação da vida, transmite sentimentos e emoções através de pessoas vivas e ao vivo.
É sintomático da aproximação entre teatro e ciência que aquele que é considerado o maior dramaturgo de todos os tempos – William Shakespeare (1564-1616)– tenha sido contemporâneo da revolução que marcou o início da ciência moderna. O bardo inglês viveu no tempo do astrónomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), no intervalo temporal entre Nicolau Copérnico e Galileu Galilei. E escreveu, provavelmente em 1600-1602, o “Hamlet”, a história da terrível vingança de um príncipe da Dinamarca que contém várias referências astronómicas: é famosa, por exemplo, a asserção “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”. E não é menos sintomático que o pai do teatro português, Gil Vicente (1465-1536?), também tenha recorrido, no seu “Auto da Feira”, que foi representado para o rei D. João III no Natal de 1527, a um discurso de teor astronómico. Diz Mercúrio, o deus-mensageiro: “E porque a astronomia/ anda agora mui maneira / Mal sabida e lisonjeira / Eu à honra deste dia / Vos direi a verdadeira. / Muitos presumem saber / As operações do céu.”
Clássicos do “teatro científico” (expressão que se entende, mas decerto inadequada, pois o teatro, como qualquer outra forma artística, pouco tem de científico mesmo quando aborda temas de ciência) são as peças em língua alemã “Galileu” de Bertolt Brecht, sobre a vida do grande sábio italiano, “In der Sache J. Robert Oppenheimer”, de Hainer Kipphardt, sobre o físico norte-americano que dirigiu a equipa científica do projecto da bomba atómica, “Os Físicos” de Friedrich Dürrenmatt, uma comédia em que Newton e Einstein são malucos internados num manicómio, ou mais recentemente, e em língua inglesa “Copenhaga”, de Michael Frayn, “Einstein”, de Gabriel Emanuel, e “QED” (sobre Richard Feynman), de Peter Parnell.
O Teatro Aberto de Lisboa teve em cena com assinalável êxito em 2003 a peça “Copenhaga”, sobre um famoso encontro na capital dinamarquesa entre os físicos Werner Heisenberg e Niels Bohr, com encenação de João Lourenço e participação de Cármen Dolores. Desse espectáculo o encenador partiu para a montagem de “Galileu”, com Rui Mendes no principal papel, que esteve, também com êxito, em palco em 2006. Merecem ainda referência de entre o teatro representado entre nós as peças do bioquímico norte-americano Carl Djerassi, como “Esse espermatozóide é meu”, pela companhia do Teatro Trindade de Lisboa, e “Oxigénio", pela Seiva Trupe do Porto. A companhia do Teatro Trindade, dirigida por Carlos Fragateiro, desenvolveu um notável projecto de teatro-ciência que incluiu os musicais “O último tango de Fermat”, “Picasso e Einstein” (ver apontamentos no meu livro “Curiosidade Apaixonada”, Gradiva, 2005) e “Os sonhos de Einstein”.
Entre outros espectáculos de teatro-ciência, que nem por serem de menor projecção foram menores, merecem também destaque “Astrocirkus”, do grupo Trupilariante no Teatro Nacional Dona Maria, a “Breve história da Lua”, de António Gedeão, na Barraca, cenas de “Galileu” numa produção de Margarida Mendes Silva no Teatro Académico de Gil Vicente em Coimbra, e “Além as estrelas são a nossa casa”, pela Escola da Noite em Coimbra.
O grupo Marionet de Coimbra tem tido uma actividade de grande mérito nesta área. Depois de se ter estreado com “Revolução dos Corpos Celestes”, um original de Mário Montenegro muito bem representado pelo próprio no Museu Nacional da Ciência e da Técnica no ano de 2001, levou ao palco “O Nariz” (sobre a anosmia, a ausência de olfacto), “LED” (sobre a viagem do electrão no interior de um computador) e, mais recentemente, “Bengala de Cegos”, sobre a vida e obra do matemático Pedro Nunes (1502-1578). Todos estes textos são do autor e actor Mário Montenegro, um engenheiro electrónico de formação que encontra nos palcos a sua realização plena. Além da Marionet, dois grupos que integram a MAFIA – Federação Cultural de Coimbra também fizeram “teatro científico: "Flatland", da Camaleão, e "Câmara Escura", do Projecto BUH!.
Porque os últimos são sempre os primeiros (ou porque, como também se diz, o maior amor é sempre o último) é não só oportuna como justa uma palavra sobre a última peça da Marionet, representada em Coimbra no Teatro Académico e Gil Vicente e, a seguir, em Aveiro no Estaleiro do Teatro Efémero. O título “Bengala de Cegos” remete para o facto de os marinheiros portugueses do tempo dos Descobrimentos se terem aventurado no mar quase sempre sem terem os conhecimentos suficientes de matemática e de astronomia, que eram precisamente a “bengala” que lhes faltava e que o cosmógrafo-mor do reino lhes queria dar, apesar de nunca ter posto os pés do navio. Na peça, desafiado por sua mulher (a espanhola D. Guiomar), a embarcar para o Brasil, ele responde que só atravessará os mares quando a ciência proporcionasse a segurança necessária. Pedro Nunes, cujo nónio foi utilizado por Tycho Brahe, foi talvez o maior cientista português de todos os tempos. Só para dar um testemunho da sua relevância na cena científica internacional, refira-se que um dos maiores astrónomos que viveu entre Copérnico e Galileu, Cristopher Clavius (1538-1612), foi um admirador confesso de Nunes. Clavius, jesuíta alemão que depois de ter estudado na Universidade de Coimbra dirigiu as observações astronómicas do Vaticano e mudou o calendário de juliano para gregoriano, quase terá sido discípulo directo de Pedro Nunes em Coimbra e citou-o nas suas obras várias vezes. Clavius é um dos personagens da peça “Galileu” de Brecht, aparecendo a confirmar as observações efectuadas pelo cientista pisano com a primeira luneta.
Embora haja criatividade em ambas, há uma certa liberdade na arte, que não é permitida na ciência. Por exemplo, Clavius aparece a apoiar as teses de Galileu na peça de Brecht atrás referida, o que não é inteiramente verdade (Clavius era ptolomaico e não copernicano). Mas ciência em palco não significa que, apesar de se se revelar viva, a ciência seja exactamente representada em palco tal como é “ao vivo”, nos institutos e laboratórios. Ciência em palco significa trazer a ciência para diante dos nossos olhos, para o palco das nossas atenções, fazê-la passar para a sociedade. É, portanto, uma forma, uma das melhores formas, de fazer cultura científica.
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