Obrigado ao Miguel e a jfqueiro pelos comentários ao meu post. Vejamos se consigo explicar algumas ideias melhor.
Os matemáticos não andam a contar maçãs, como bem nota jfqueiro, mas o trabalho abstracto que fazem aplica-se obviamente à realidade. Portanto, não se pode argumentar que o problema do barco de Teseu é um pseudoproblema ou um problema de mera definição vaga ou inexistente com base na ideia de que a noção de identidade, por ser lógica, não tem aplicação na realidade. É óbvio que tem: sabemos que qualquer objecto é idêntico a si mesmo, tal como sabemos que se um objecto tiver mais massa do que um segundo e este mais massa do que um terceiro, o primeiro terá mais massa do que o terceiro.
O problema é que em certas condições temos dificuldade em saber se um certo objecto ainda é o mesmo ou não. Podemos argumentar que saberíamos decidir se soubéssemos qual é a definição correcta do objecto. Só que isto é só outra maneira de dizer, com mais palavras, que não sabemos se é o mesmo objecto mesmo ou não. Ou podemos argumentar que a definição dos objectos é convencional — podemos definir como nos der na gana — e que, uma vez definido o barco de Teseu de determinada maneira, segue-se uma resposta cristalina e inequívoca. Certo. Só que isso é apenas transferir o problema original para este problema novo: por que razão havemos de definir o barco do chato do Teseu de uma maneira em vez de outra? Isto é outra vez o mesmo problema, mas disfarçado e com mais palavras.
Além disso, a ideia de que podemos definir os objectos como nos apetece é implausível. Imagine-se alguém a dizer que podemos definir água como nos der na gana para resolver as nossas inquietudes filosóficas. Bom, eu acho que essa pessoa não daria um bom químico, pois qualquer químico sério dirá que a água é H2O, ponto final. E qualquer teoria metafísica incompatível com a nossa melhor ciência tem tendência para não cativar muitos filósofos, por boas razões.
Como afirma o Miguel, o problema está relacionado com a passagem do tempo e a dinâmica, mas isso não elimina o problema — nem é verdade que a lógica não se aplique à passagem do tempo, porque nesse caso a lógica temporal seria uma impossibilidade e não é. E na lógica temporal é também verdade que qualquer objecto é idêntico a si mesmo.
Além disso, o que está em causa no problema do barco de Teseu é a identidade e não o terceiro excluído. A identidade é uma relação, o terceiro excluído não é uma relação — é uma proposição intuitivamente verdadeira e tomada como tal na lógica clássica (mas não noutras lógicas, como a intuicionista). Mas mesmo que use a lógica intuicionista não resolve facilmente o problema do barco de Teseu.
sábado, 17 de março de 2007
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21 comentários:
Confesso que também tenho dificuldade em distinguir o problema do pseudoproblema. Vou tentar queimar uns neurónios no assunto, avisando desde já do meu débil background filosófico.
Presumo que em análise está a questão da identidade dos objectos e do carácter mutativo dos mesmos.
Várias questões me parecem pertinentes:
1.a) a identidade como informação que descreve um objecto;
2.a) a unicidade da identidade do objecto;
3.a) o facto de que a identidade do objecto é diferente do objecto em si;
4.a) a mutabilidade da identidade do objecto devida à mutabilidade do próprio objecto;
5.a) e na sequência de 4.a, a história da identidade do objecto por correspondência da história do objecto;
6.a) de 5.a, perceber a identidade como cumulativa;
outra abordagem que me ocorre é:
1.a) a identidade como informação que descreve um objecto; (como atrás)
2.a) a unicidade da identidade do objecto; (como atrás)
3.a) o facto de que a identidade do objecto é diferente do objecto em si; (como atrás)
e agora a diferença conceptual:
4.b) a imutabilidade da identidade do objecto;
5.b) e porque 3.a, 4.b é admissível se permitirmos ao objecto que transite de identidades sucessivas e imutáveis pois o tempo confere história ao objecto;
6.b) de 5.b, perceber a identidade como uma propriedade transitiva dos objectos;
o problema do barco de Teseu peca por excesso de variáveis a considerar; ajudava muito se pudéssemos isolar cada característica e estudá-las separadamente, como é comum fazer nas ciências exactas, um método poderoso de análise.
O barco que é construído com os pedaços de madeira não é necessariamente de outra pessoa. O próprio Teseu poderia tê-lo feito, apimentando o problema. Isto é, o conceito de propriedade entra na identidade do objecto? quais as consequências? se eu comprar o barco do Teseu, continua a ser o «barco do Teseu»? e se eu o roubar? (aqui, a importância da história do barco na sua identidade.)
para mim, nenhum dos barcos no fim é o original. o original desapareceu para dar origem a outros dois barcos quase iguais. enfim...
o problema do barco de Teseu, é não ser um problema mas muitos. e continuo sem perceber se a sua «solução» é de alguma forma reveladora ou se se reduz apenas a um conjunto de trivialidades, valendo mais pelo exercício intelectual que outra coisa.
Carlos Daniel
O problema que coloca, o da identidade, não é despiciendo, nomeadamente, pelas múltiplas dificuldades práticas que pode suscitar. Um tal problema, porém, é solucionado, quando possível, pela comparação das qualidades ou estados relevantes previamente definidos (por convenção, naturalmente, de forma exaustiva ou não, para uma quantidade suficiente de qualidades ou estados relevantes possíveis) como pertença do objecto. Mas só se podem comparar objectos distintos (porque ao contrário do que afirma, qualquer objecto não é idêntico a si mesmo; qualquer objecto é um único objecto, ele próprio, e não outro, nem simultaneamente ele e outro, e apenas pode ser idêntico a outro).
Se, no caso em apreço a qualidade relevante definidora do barco de Teseu fosse “ter sido feito por Teseu”, tornar-se-ia claro que o barco “feito por Paula” não era o barco “feito por Teseu”, ainda que com os mesmos materiais, forma, etc. Mas teríamos, nesta condição, o caso mais interessante de o barco de Teseu poder ser não um, mas vários… em um.
A dificuldade da identificação resulta, no caso, de não terem sido definidas as qualidades relevantes do barco de Teseu. De qualquer modo, ainda que refeito com os mesmos materiais, o barco de Paula não é o barco de Teseu; se este continuar existindo (mesmo com outros materiais), o barco de Paula não é ele, mas um outro; se deixou de existir, o barco de Paula também não será o barco de Teseu, mas a sua reconstituição material e formal noutro tempo.
Obrigado a todos pelos comentários.
Mp-s: “A questão que se levanta é a de saber com que grau de precisão precisamos/queremos descrever os objectos e os fenómenos naturais.” O problema do barco de Teseu é um problema de metafísica e não de epistemologia. Não se trata de saber como podemos saber se o barco que está em casa de Teseu é o mesmo barco que estava lá há 3 anos, ou se é o barco que está em casa da Paula que é o mesmo barco que há 3 anos estava em casa de Teseu. Saber como podemos saber tal coisa é um problema da epistemologia e não da metafísica. O problema da metafísica é saber qual dos dois barcos é idêntico ao barco original.
Carlos, é tentador dizer que nenhum dos barcos é o barco original. Mas essa resposta levanta tantas perplexidades como qualquer outra e é por isso que este é um problema filosófico: qualquer resposta que encontremos levanta perplexidades. É um problema em aberto. Se aceitarmos a sua resposta, ficamos com a esquisitice de ter de dizer que quando tirámos uma tábua do barco original para a substituir por uma nova, o barco original desapareceu e ficámos com outro barco. Ou então dizemos que isso só acontece quando lhe tirarmos cem tábuas. Mas porquê cem e não uma ou mil? Qualquer número parece arbitrário.
Jmc, todo o objecto é idêntico a si mesmo. A identidade é uma relação que ocorre apenas entre um objecto e ele mesmo. Talvez só se consiga compreender isto adequadamente tendo alguma formação básica em ciência ou em lógica, não sei. Por exemplo, uma pessoa tem obviamente o mesmo peso que ela mesma; e tem o mesmo peso que outras pessoas. A identidade é uma propriedade relacional, como a propriedade complexa “ter o mesmo peso que”. Só que a identidade tem uma particularidade: para cada objecto, o único objecto com o qual esse está na relação de identidade é ele mesmo. Isto pode parecer uma complexidade lógica, mas é uma coisa muito simples, de facto. E isso é que é surpreendente: como pode uma coisa tão simples, a mais simples das relações lógicas, levantar um problema tão lixado?
Tem razão quando diz que nós próprios somos “barcos de Teseu”, claro. Na verdade, o problema aplica-se a qualquer objecto que ganha e perde partes ou propriedades ao longo do tempo. Os problemas da identidade levantam-se precisamente aí. No caso da identidade pessoal, por levantar problemas próprios, costuma ser tratado à parte do problema geral da identidade de objectos.
Finalmente, gostaria de fazer notar que o problema metafísico do barco de Teseu não tem qualquer interesse, do ponto de vista prático. É apenas um problema teórico importante e central da metafísica. Usei-o como exemplo porque penso que é muito intuitivo e faz as pessoas começar logo a pensar e a tentar resolver o problema — ou a tentar dissolvê-lo, dizendo que se baseia apenas em jogos de palavras. É precisamente por suscitar esta reacção intuitiva das pessoas sem formação filosófica que o usei como exemplo.
Eu não percebo muito de metafísica mas há umas questões que me fascinam na identidade pessoal.
Nomeadamente a questão da memória se será mesmo o elo que mantêm e define a identidade de si mesmo ao longo do tempo ou se essa identidade é uma identidade de consciência ou uma identidade física, nomeadamente a nível do cérebro.
Isto é, tirando alguns que acreditam em lendas urbanas sortidas, suponho que ninguém considere que há perda de identidade com transplantes de coração ou outros orgãos. Assim como suponho ser pacífico que todos considerem que essa identidade deixou de existir quando há morte cerebral. Isto é, a nossa identidade está intimamente ligada à actividade cerebral.
O Erro de Descartes do Damásio põe ênfase na dimensão ética da identidade pessoal indissociável da integridade física de determinadas zonas cerebrais - ilustrado fabulosamente por Phineas Gage. Mas a memória de Cage não foi afectada com o acidente...
E se pensarmos, por exemplo, num doente esquizofrénico ou bipolar agudo, em que não há lesões físicas, apenas desequílibrios químicos, qual é o eu? O EU medicado ou o EU sem medicação?
Será que há ou não uma continuidade na identidade da consciência nas duas situações? Há certamente uma continuidade nas memórias e uma continuidade da identidade física...
Por outro lado se considerarmos um amnésico, será que perdeu a identidade pessoal quando perdeu a memória? Supondo que nunca recupera a memória e que não teve lesões cerebrais permanentes, apenas um curto-circuito em áreas da memória, será uma nova pessoa?
Palmira, a questão que coloca é pertinente. Por exemplo a relatividade restrita diz-nos que o espaço-tempo é um continuo, ou seja que não existem relações de identidade fora do domínio mental. Isso reduz completamente o problema do barco de teseu a uma questão de linguagem. O que aqui queria sublinhar é que existe uma incompatibilidade total entre o objecto de estudo metafísico e o objecto de conhecimento da ciência. Ou seja que não faz sentido falar em metafísica sem linguagem e que não faz sentido falar de linguagem sem falar da mente que lhe dá significado e que não faz sentido falar de mente sem uma mente, outra mente, ou seja que tudo se reduz a um problema de comunicação.
Vamos lá a ver eu posso não perceber muito de metafísica mas sei o suficiente para afirmar que a metafísica é apenas um esforço de pensar a realidade. A metafísica não tem nada a ver com o sobrenatural...
O que lhe foi dito várias vezes é que não precisamos invocar sobrenaturalidades para explicar a realidade. Se o AP confunde metafísica com fenómenos sobrenaturais, o Desidério que me corrija se eu continuar a insistir que está enganado :-)
O que é 'não pensar a realidade'?
Caro aff: obrigado pelo seu comentário.
“A relatividade restrita diz-nos que o espaço-tempo é um continuo, ou seja que não existem relações de identidade fora do domínio mental. Isso reduz completamente o problema do barco de teseu a uma questão de linguagem.”
É falso que não existam relações de identidade fora do domínio mental. E mesmo que fosse verdade, daí não se seguiria que o problema do barco de Teseu é uma questão de linguagem.
Comecemos pela primeira: afirmar que porque o espaço-tempo é um contínuo, não há relações de identidade apenas mostra que não se compreende o conceito de identidade — provavelmente, confundiu-se a identidade numérica com a identidade qualitativa. Qualquer electrão é idêntico a si mesmo e só a si mesmo. Qualquer molécula de água é idêntica a si mesma e só a si mesma. A identidade numérica é a relação que cada objecto tem consigo mesmo e apenas consigo mesmo. O facto de o espaço-tempo ser um contínuo não implica que nenhum objecto é idêntico a si mesmo.
Imaginemos agora o absurdo de que os objectos não eram idênticos a si mesmos. Significa isso que o problema do barco de Teseu é um pseudoproblema linguístico? Não. Significa apenas que a resposta correcta ao problema é dizer “O barco nunca foi idêntico a si mesmo, desde o dia 1, por isso não há qualquer problema”.
“O que aqui queria sublinhar é que existe uma incompatibilidade total entre o objecto de estudo metafísico e o objecto de conhecimento da ciência. Ou seja que não faz sentido falar em metafísica sem linguagem e que não faz sentido falar de linguagem sem falar da mente que lhe dá significado e que não faz sentido falar de mente sem uma mente, outra mente, ou seja que tudo se reduz a um problema de comunicação.”
O objecto de estudo metafísico é seja o que for que existe na realidade. Quando o metafísico se pergunta pela identidade de uma molécula está a falar da mesma molécula de que fala o químico.
Quanto à ideia de que a metafísica seria apenas sobre a linguagem — essa é uma tese filosófica sobre a natureza da metafísica, que alguns filósofos defenderam. Mas que hoje em dia já se mostrou ser falsa, tanto quanto em filosofia alguma coisa alguma vez se mostra que é falsa. Mas o importante é que essa tese tem dificuldades tão grandes quanto qualquer outra. Está longe de ser óbvia e se não for fundamentada é apenas um preconceito filosófico como qualquer outro. Como diz Dennett: “Não há maneira de evitar os preconceitos filosóficos; a única opção é examiná-los ou não explícita e claramente algures no decorrer das nossas actividades.” Mas, como é natural, faz parte de ter um preconceito filosófico pensar que não é um preconceito filosófico, mas uma evidência.
Olá, Palmira e Parente! A diferença fundamental entre a filosofia e as ciências, por um lado, e a religião, por outro, é que as primeiras procedem com base nas provas e na argumentação; ao passo que a religião procede com base na tradição e na autoridade, o que não é nada promissor. As ciências, a filosofia e as religiões são tentativas de compreender melhor a realidade. Claro que as religiões têm outros aspectos, como a tentativa de dar conforto espiritual aos crentes e de ser uma forma de viver; mas incluem uma tentativa de compreender melhor a realidade.
Alguns cientistas ateus, sem nada saber de filosofia, procuram refutar a atitude religiosa e as suas afirmações refugiando-se num certo empirismo positivista, e penso que era isso que o Parente estava a criticar. Pessoalmente, penso que essa é uma péssima estratégia, porque deita o bebé fora com a água do banho. Se nos refugiamos nesse positivismo de vistas estreitas, a pintura e a poesia é um disparate e nada nos diz de interessante sobre o mundo, para não falar na história, que se torna em meras listas de factos e não na compreensão e interpretação desses factos, ou na filosofia, que fica relegada ao estudo da linguagem. Penso que é tão errado um cientista debater questões de religião sem nada saber de filosofia da religião como seria errado eu estar a debater questões sobre moléculas sem nada saber de química. Infelizmente é verdade que há falta de comunicação entre cientistas e filósofos. Mas é também para isso que serve o nosso blog.
Para se ser ateu não é preciso ser positivista e defender que a matemática estuda a linguagem e que só a física estuda a realidade. Ser-se ateu e filosoficamente ignorante é uma mistura algo explosiva. No fundo, não é muito diferente de ser religioso e histórica e cientificamente ignorante (muitas pessoas religiosas ignoram pura e simplesmente a história das religiões — cujo conhecimento explícito e rigoroso é em si um antídoto ao fanatismo religioso).
Caro mp-s: obrigado pelo feedback. O que diz está ok -- as nossas capacidades de compreensão são o resultado evolutivo da necessidade de compreender a realidade. Não é só isso, porque a socialização e a necessidade de comunicar e usar uma linguagem abriu-nos as portas a uma cognição mais sofisticada, que permite por sua vez compreender e estudar aspectos da realidade que não têm relevância para a sobrevivência.
Mas depois vê-se que está a pensar na identidade qualitativa e não na identidade numérica. Claro, nós somos levados a ver semelhanças e diferenças nas coisas -- na verdade, o nosso aparelho perceptivo está muito mais sintonizado para detectar diferenças, mudanças e movimentos súbitos, ou paragens súbitas, do que semelhanças. Mas a semelhança entre coisas -- a identidade qualitativa -- não é o mesmo que a identidade numérica.
Só agora me apercebo, tanto com o seu comentário como com outros, que muitas pessoas não perceberam o problema do barco de Teseu porque estão a pensar em identidade qualitativa. Mas, claro, aí não há qualquer problema porque a identidade qualitativa é relativa a propriedades -- quaisquer dois objectos são necessariamente diferentes em alguns aspectos (nomeadamente porque são dois e não um), mas podem partilhar muitas propriedades. Pense-se em duas moléculas de água: têm carradas de propriedades em comum e são indistinguíveis uma da outra. Mas não são numericamente idênticas uma à outra; são apenas muito semelhantes uma à outra.
Só mais uma: a identidade pessoal levanta problemas tramados e tanto quanto sei foi pela primeira vez estudada em filosofia por Locke, que concebeu a noção de pessoa que ainda hoje usamos em filosofia. Locke, como muitos outros filósofos, como Hume, achava que a identidade pessoal (identidade numérica e não qualitativa) era uma ilusão, uma ficção que dá jeito juridicamente, mas que é apenas uma ficção. Claro que eu sou hoje muito semelhante qualitativamente ao que era ontem, mas não sou, segundo esta teoria, numericamente idêntico ao que era ontem.
Outra coisa diferente é o papel da memória e de certas áreas do cérebro para a construção psicológica da (ilusão?) de identidde pessoal. Sobre isso, o Cardoso Pires escreveu um relato muito importante sobre a sua experiência da perda de memória: De Profundis.
Olá Desidério
Não quis implicar que a lógica não se aplica à passagem do tempo, apenas a lógica formal usual. Para tal é necessário outro tipo de esquemas analíticos: a lógica temporal(que fiquei agora a conhecer que existia; obrigado por esta nova descoberta) como diz, ou a física teórica ou um modelo estatístico, direi eu. O meu ponto está em que o problema com o Teseu é uma questão de modelação, de arranjar a forma correcta de modelar o problema, neste caso num quadro lógico, de forma a que a formulação intuitiva do problema seja analisável por esse modelo de forma consistente, isto é de forma a obtermos uma resposta satisfatória (claro que, o que resposta satisfatória quer dizer é outro problema!). No quadro da logica formal usual, o jfqueiro tem razão, isto é, as possíveis maneiras de modelar o problema levarão ou a uma tautologia ou a declarar que a formulação linguística de carácter intuitivo está errada do ponto de vista lógico. Daí, ou se toma uma atitude radical (ficando-se pelas maximas do Wittgenstein de que nada se pode dizer acerca do problema) e ficamos com o problema de que a estrutura analítica não nos permite analisar o problema que põe. Ou, doutra forma, tentamos buscar novas formas de modelar o problema a nível lógico (ou mesmo matemático; neste sentido, o exemplo da teoria de categorias, em relação ao problema da identidade, parece-me relevante (por enriquecer esse debate), onde a noção fundamental não é a de igualdade, mas a de equivalência).
Dito de outra forma. Para mim problema haveria se não houvesse formalização possível, num sistema lógico qualquer, do ''Problema Teseu''. Porquê requerer a formalização do problema? Para evitar, não a metafísica, entenda-me bem, mas os misticismos que levam a coisas como o relativismo pós-moderno ou lá como o chamam, de que movimentos como o criacionismo, por exemplo, se aproveitam para por as estruturas lógicas de interpretação do mundo (lógica, ciências, etc.) em descrédito, supostamente pondo a nú aporias que estes quadros explicativos não conseguem resolver.
Sobre:
''Alguns cientistas ateus, sem nada saber de filosofia, procuram refutar a atitude religiosa e as suas afirmações refugiando-se num certo empirismo positivista, e penso que era isso que o Parente estava a criticar. Pessoalmente, penso que essa é uma péssima estratégia, porque deita o bebé fora com a água do banho. Se nos refugiamos nesse positivismo de vistas estreitas, a pintura e a poesia é um disparate e nada nos diz de interessante sobre o mundo, para não falar na história, que se torna em meras listas de factos e não na compreensão e interpretação desses factos, ou na filosofia, que fica relegada ao estudo da linguagem.''
tem toda a razão e assino por baixo. A atitude análoga a nível dos filósofos, para mim, é a que descrevi no último parágrafo acima.
Mais uma vez parabéns, a si e a aos outros blogueiros pelo excelente blogue e pela iniciativa de constituírem um blogue com o carácter do DRN.
Um Abraço
Miguel
Caro Miguel: há imensas coisas muito técnicas escritas sobre o problema da identidade -- basta ler as revistas científicas de ponta da área, como a Nous, a Mind, Journal of Philosophy, etc. Mas é uma ilusão pensar que o problema tem alguma coisa a ver com falta de rigor no modo como foi formulado.
Claro que posso pôr a coisa em termos formais, com muita lógica à mistura e muitos símbolos, para impressionar as pessoas. Mas essa foi precisamente a atitude terrorista que fez os portugueses afastarem-se da ciência durante anos: porque a ciência, para ser séria, não podia ser divulgada sem carradas de equações e uma pessoa com uma formação intelectual média não podia entender algo de ciência sem a estudar formalmente durante 5 ou 6 anos. Isso é o primeiro passo para a destruição da Biblioteca de Alexandria. Por isso, eu divulgo a filosofia de forma que qualquer pessoa possa entender. Quem quiser ler papers técnicos sobre esta ou outras áreas, pode perguntar — mas não vai entendê-los sem estudar filosofia formalmente primeiro, tal como eu não entendo um paper técnico de biologia. Mas entendo os livros de Dawkins, do Fiolhais ou do Buescu.
O problema da identidade é este: uma verdade lógica simples é que para todo o x, x = x. Isto quer dizer apenas que todo o objecto é idêntico a si mesmo. Serão os objectos idênticos a si mesmos ou não, ao longo do tempo? Qualquer resposta enfrenta problemas. Digamos que diz que não, que basta um objecto no momento t1 ter menos um átomo do que em t0 e já não é o mesmo objecto. Isto é estranho porque significa que os objectos estão o tempo todo a ser destruídos e a ser criados.
A saída linguística e convencionalista é dizer que a identidade é um artificialismo lógico que não se aplica aos objectos. Mas isto deixa-nos exactamente na mesma, porque o problema não é lógico mas directamente metafísico: apenas acontece que temos uma lei da lógica que descreve um dos aspectos mais básicos da realidade -- que todas as coisas são idênticas a si mesmas. Negar isto levanta tantas perplexidades como afirmar que os objectos estão o tempo todo a ser criados e destruídos.
E não é menos mística a ideia de que a realidade é algo que escapa completamente às nossas categorias lógicas mais básicas, como a categoria da identidade numérica. Afinal, se a realidade escapa às nossas categorias, como sabemos que há uma realidade que escapa às nossas categorias? Dizer isso é um passo para o pós-modernismo e para a ideia de que a realidade é apenas uma construção humana, linguística, social. Assim, a solução linguística deixa-nos num dilema: ou a realidade está lá, mas é sempre outra coisa além das nossas representações dela (o que conduz ao misticismo porque depois é tentador dizer que para ter acesso a essa realidade temos de deitar os processos normais de pensamento pela janela e ir ler livros sagrados e jejuar para uma montanha) ou a realidade é ela mesma uma construção linguística (o que significa aceitar o absurdo de que os dinossáurios só começaram a existir depois dos seres humanos começarem a falar neles, no séc. XIX).
Conclusão geral: má filosofia, filosofia de café, pensada com os pés, é precisamente o tipo de doença cultural actual que nos dá as inanidades do pós-modernismo de trazer por casa e dos misticismos bacocos (note-se que não excluo a possibilidade de haver versões intelectualmente sérias de pós-modernismo e de misticismo, mas não conheço nenhuma). Daí o meu alerta para a destruição da Biblioteca de Alexandria. Hoje, o perigo não vem da multidão ignara que incendeia a biblioteca -- hoje o perigo vem de pessoas intelectualmente deformadas por filosofias da carochinha e preconceitos que, sem as pessoas se aperceberem, conduzem ao contrário do que elas querem defender (a racionalidade, a honestidade intelectual e a inteligência clara das coisas).
Diz Desidério Murcho que divulga a filosofia "de forma que qualquer pessoa possa entender." Mas sobre o problema inicial ainda não se saiu do sítio, mais "ismo" menos "ismo". Eu, pelo menos, ainda não entendi. Insiste Desidério Murcho em que a pergunta "Qual é o barco de Teseu?" é um problema genuíno sobre um objecto. Ora nós temos de respeitar a linguagem. Sem a linguagem, não existiria filosofia, nem existiriam blogs. O "barco de Teseu" não é um objecto, são três palavras. É legítimo interrogarmo-nos sobre o significado delas. Perguntar "Aquele é o barco de Teseu?" implica um entendimento do perguntante sobre o qual é esse significado. Se eu não sei o que significam as três palavras, não faço a pergunta.
Respeitar as palavras é também respeitar a realidade, porque as palavras são o que os humanos têm para descrever e estudar a realidade.
Por isso, por querer entender, pedi um outro exemplo, que iluminasse melhor a questão da identidade e o seu interesse. O exemplo da água não faz sentido: não propus "definir os objectos como nos apetece". A água sabemos o que é, o desgraçado do barco é que parece que não.
Quanto à "filosofia de café" e à "Biblioteca de Alexandria", não sei a que se referem nem que relação têm com a discussão em curso. Será terrorismo?
Caro Desidério
O seu comentário é uma magistral defesa da metafísica e da racionalidade, e um prazer de ler. Gostei imenso, e concordo totalmente com o que diz. Parece-me que os nossos pontos de vista coincidem, ainda que expressos em linguagem diferente. Eu falava de procurar métodos explicativos num quadro formal por tendência natural, dada a minha ocupação. Nada mais. Não querendo com isso, pelo contrário, contrariar ou de qualquer forma depreciar as tentativas de caracter metafísico ou filosófico.
Como disse antes (acho que de maneira pouco clara, perdoe-me) a metafísica é algo necessário (especialmente quando praticada da forma como o fez acima), e o que é de temer, concordo consigo, são aqueles que não a tomam a sério, filósofos ou não. Pois que o homem não é apenas racionalidade (se bem que não deva abdicar dessa racionalidade (ou pelo menos do bom senso) mesmo quando tenta ir além dela, o que para mim é o problema dos pós-modernismos, criacionismos e afins).
Abraço
Miguel
Caro Miguel: muito obrigado pela sua simpatia. O problema de "querer ir além da racionalidade" é que é uma coisa puramente arbitrária. Entramos no domínio do faz-de-conta.
Isto não significa que não devamos especular -- na verdade, temos de o fazer porque somos seres inteligentes e a ciência é filha da especulação. Mas então temos de especular a sério, com a cabeça, e não com os pés. O que significa respeitar as provas e a argumentação, pensar com cuidado, procurar activamente contra-exemplos e objecções e persistir em pensar racionalmente quando não estão dados à partida métodos claros para o fazer de forma mais ou menos mecânica e automática.
E esta é que foi a grande novidade introduzida pelos gregos antigos -- nenhuma outra civilização logrou sair da autocracia da tradição e da autoridade: nunca sairam das tradições sapienciais e do pensamento religioso ou místico, nunca desataram a fazer filosofia e por isso nunca descobriram a ciência.
Estou a mentir descaradamente!
Esta frase metalinguística é apropriada ao dia em causa.
Alguém ficou Murcho com os posts do Queiro, queira ou não queira!
Foi um anão que fala de problemas de anões...
- O que estará no topo da mesa? - pergunta o anão que pensou ser gigante.
Aparece um gigante e diz-lhe:
"olhando para a esquerda vejo um livro, olhando para a direita vejo uma caneta, o que querias ver?".
Azar aparecer um gigante... mas o anão não desiste:
- Então e o que está em cima da mesa é o livro ou a caneta?
- São os dois... responde honestamente o gigante.
- Isso não vale, eu quero uma só resposta! - e aqui começam os problemas de contagem do anão.
- Mas o conjunto é uma só resposta! ... esclareceria o gigante.
Irritado, o anão continuaria:
- "eu não quero respostas... quero apenas realçar as questões"
Pena é que estes anões não tenham a propriedade esfíngica de auto-destruição.
Para tornarem sério o seu discurso já recorrem, mesmo em português, a uma parafernália de nibelunguês - e só é duvidosa a existência de um tesouro!
(Pior... já não é novidade no nibelunguês misturarem-se nomes gregos com nomes actuais - é uma tendência neo-nibelunga para o povinho.
Numa situação real saber-se-ia o que o verdadeiro Teseu faria com a Paula... tudo em nome da boa tradição cretense e não da nova tradição cretina)
O honesto gigante poderá continuar a pedir exemplos para que ele possa entender o problema dos nibelungos, mas não conseguirá!
O murcho anão recolheu à gruta para privar com os seus... é assim há milhares de anos, e seria bom que assim continuasse!
Para tristeza do mundo, já basta a fome em África.
Tenhamos esperança, isto da sua presença em blogs poderá ser coisa de moda passageira.
Entretanto para acrescentar mais uns fundos para os tesouros nibelungos - que são constituídos por presentes embrulhados em sucessivas camadas, mas sem nada lá dentro, fica aqui a questão:
- Qual a questão nesta questão?
Poderá servir para alimentar anões esfomeados durante milhares de anos.
Pela minha parte volto à minha caverna de anonimato, com os mais respeitosos cumprimentos e sem outro desiderato a todos os que pensam glorificar o seu nome na divulgação de disparates embrulhados sob a forma de ciência popular.
O (re-)Comendador,
José Rafael Miguel Gabriel de Povinho e Silva
Terceiro Marquês de Povinho e Silva
Apanhei este «post» já muito tarde, pelo que um comentário mais profundo iria fora de prazo...
Apenas o seguinte, para o «desafortunado» que estiver a ler isto. Fico contente em ver que «ainda» se fale de metafísica, já que às vezes fica-se com a impressão de que depois de Heidegger é proibido falar da metafísica, pelo medo que isso seja teoria rançosa aristotélico-tomista... E em tempos de «pensiero debole», pior ainda.
Ora, parece-me que é muito importante colocar a metafísica no lugar imprescindível que lhe cabe, muito para lá (ou para cá) dos jogos linguísticos para mentes ociosas.
Possivelmente há que ir ainda a questões mais «primárias». Nestes «posts» sobre o problema do barco de Teseu e respectivos comentários usou-se muito um conceito que gostaria de ver discutido, por me parecer verdadeiramente central na metafísica: Que é a realidade? Parece-me ter visto nas várias intervenções a «noção» de que a realidade é uma espécie de «região-de-coisas», mais ou menos extensa, e um pouco ao modo «realista» tradicional. Será isso a realidade?
Estou de acordo com o Desidério quando diz que ciência, filosofia e religião procuram compreender a realidade. Mas sabemos o que é a realidade quando falamos dela? Não seria esta uma plataforma importante de reflexão e «diálogo» entre essas três âmbitos de «saber»?
Eis já um desafio para futuros «posts» e, quem sabe, para novas «descobertas»...
...ou a realidade está lá, mas é sempre outra coisa além das nossas representações dela (o que conduz ao misticismo porque depois é tentador dizer que para ter acesso a essa realidade temos de deitar os processos normais de pensamento pela janela e ir ler livros sagrados e jejuar para uma montanha)...
That's it!... sem os livros sagrados e a montanha! ;)
In a nutshell... matter is NOT reality... Consciousness IT IS!!!
Ou ainda, a (pseudo)realidade material ("maya") é apenas uma criação (colectivamente) consciente... da mente ausente! Bem, para além da rima, refiro-me ao estado transcendental chamado de "satori" (literalmente, "conhecer"), em que a separação do "eu" e "tu" é definitivamente ultrapassada, como relata o místico sufi que escreveu:
Eu vi o meu Senhor com a visão do conhecimento. E perguntei-lhe: "Quem és Tu?" Ele respondeu: "TU!"
Ora, isto até o "walrus" do Beatles sabe.. where's the problem, love?! ;)
I am he as you are he as you are me and we are all together.... forever!
Consciência universal...
Rui leprechaun
(...fonte eterna do Real! :))
PS: Quanto às versões intelectualmente sérias de pós-modernismo e de misticismo we'll get there... in due time... beware! ;)
Respeitar as palavras é também respeitar a realidade, porque as palavras são o que os humanos têm para descrever e estudar a realidade.
No, no!!! Niilismo iconoclasta, que nenhum verbo nos basta!!!
Ou melhor, nada a opor se nos referimos à realidade comezinha espaço-temporal a que, provavelmente, o "barco de Teseu" se refere.
Só que... e quando "saltamos" para além, sem espaço nem tempo nem "alguém"?!
Que linguagem há lá, se ela fica aquém e cá?!
Daí, a insolúvel dificuldade lógica da impossível descrição daquilo que É, já que a única possível aproximação é a constante negação... neti, neti... nor this nor that!
Pois o Único que É, nada é de tudo aquilo que não é!... ó Noé!!! :D
Self alone exists everywhere. It cannot be understood or known, for It alone is the Understander and the Knower. Its nature cannot be said to be positively as such. It is realised through endless denials as 'not this, not this'. The Self is [...] unthinkable.
Brihadaranyaka Upanishad (séc. IX aC)
So... IT IS as IT IS...
Rui leprechaun
(...Truth, Knowledge and Bliss!!! :))
PS: Ah! pré-modernismo prò intelectual abismo!!! :D
The whole modern conception of the world is founded on the illusion that the so-called laws of nature are the explanations of natural phenomena. Thus people today stop at the laws of nature, treating them as something inviolable, just as God and Fate were treated in past ages. And in fact both are right and both are wrong: though the view of the ancients is clear in so far as they have a clear and acknowledged terminus, while the modern system tries to make it look as if everything were explained.
Wittgenstein, "Tractatus Logico-Philosophicus"
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