segunda-feira, 19 de março de 2007

BATE, QUE É PROFESSOR!



(minha crónica do "Público", 16/3/2007)

Quando um tema chega aos humoristas é, geralmente, porque não tem piada nenhuma. É o caso da violência de que têm sido vítimas alguns professores portugueses, que foi glosada por Ricardo Araújo Pereira numa crónica na "Visão" com o título "Escolas S+M" (escolas Sade e Masoch). E os "gatos fedorentos" já propuseram sarcasticamente que se contratassem ciganos para professores.

O mesmo tema foi tratado mais a sério pelo escritor MMnuel António Pina na sua coluna do "Jornal de Notícias", cujo título também chamava a atenção: "Já espancou um professor hoje?" O meu título de cima, escolhido com a mesma intenção, significa que estou tão indignado como ele. Tal como o psiquiatra Daniel Sampaio, autor na última "Pública" da crónica "Afinal quem manda lá em casa", está indignado com a violência juvenil dentro de casa.

Afinal quem manda na escola? Os professores portugueses cada vez menos. Eles têm sido bastante maltratados. Não é apenas a violência física, por parte de alunos ou dos seus pais, mas também a violência, mais subtil, que consiste na progressiva retirada do poder que detinham. As duas poderão até estar relacionadas.

Em primeiro lugar, o poder tem sido retirado aos professores pelas pseudopedagogias não directivas que têm presidido à educação nacional. Na linguagem rebuscada que entre nós ficou conhecida por "eduquês", essas correntes falam de "ensino centrado no aluno". Tal ideia não é nossa e está longe de ser inovadora, pois a "escola nova" é bastante velha: já o pedagogo suíço Édouard Claparède escrevia nos anos 30 do século passado que "a concepção funcional da educação e do ensino consiste em tomar a criança como o centro dos programas e dos métodos escolares". E não tem dado bons resultados, porque é uma ideia absurda. Faz parte da essência da escola - a instituição que a sociedade inventou há séculos para preparar as crianças e os jovens para a vida - que os professores ensinem e que os alunos aprendam. O professor sempre foi o centro da escola no sentido em que ele é que ensinava - um verbo agora proibido -, ao passo que os alunos aprendiam - um verbo agora pouco praticado. O aparecimento da "escola para todos" em finais do século XIX (que em Portugal demorou muito a chegar e que, infelizmente, ainda demora, com a tragédia do abandono escolar) colocou o professor ainda mais no centro da escola. A expressão "ensino centrado no aluno" ficou completamente excêntrica, até porque a sala de aula não pode ter numerosos centros.

Mas há uma outra forma de retirar poder aos professores, que, ao contrário da pedagogia que fala "eduquês", é uma invenção nacional recente. Trata-se da ideia perigosa de que os pais dos alunos devem avaliar os professores. Quando ela foi desmentida, já se tinha espalhado... Aqui o conceito é mesmo novo, pois não tem antecedentes na história da educação, nem há nada parecido noutros sistemas de ensino. O ensino, em vez de ser centrado no aluno, passaria a ser centrado nos pais do aluno. Claro que a ideia não iria dar bons resultados, porque também é absurda. A escola é a instituição na qual a sociedade e as famílias decidiram delegar parte da sua autoridade na educação das crianças e dos jovens. É bom que a escolham. mas têm de confiar na escola, o que significa em primeira linha confiar nos professores. Os pais não têm a capacidade nem a independência para julgar os professores. A ameaça da avaliação dos professores pelos pais não passa de uma forma de populismo que, apesar de instrumentalmente útil na luta do poder político contra os sindicatos, pode ter graves consequências a prazo. Com as agressões de pais a professores, essas consequências podem estar à vista...

Curiosamente, os sindicatos dos professores têm estado irmanados com o sistema educativo vigente há décadas, ao falarem "eduquês" e ao defenderem a centralidade do aluno. Já que os sindicatos o não fazem, não haverá ninguém que defenda os professores?

8 comentários:

Fátima André disse...

Carlos,
obrigada pelo post e por ter acedido à minha sugestão. Haja alguém (fora das Ciências da Educação) que defenda a Pedagogia e denuncie a pseudo-pedagogia. Há que ter a coragem de (re)tomar o brilho de ensinar e aprender... pois, só a sabedoria, por excelência, nos poderá tornar melhores_«A COISA MAIS PRECIOSA QUE TEMOS!»

Fátima André disse...

Em abono da verdade, os professores não são consultados para nada, por isso, digamos, é verdade, os professores são os que menos mandam na escola. Qual orientação curricular, qual decreto ou medida mereceu o humilde parecer do professor? Sabe Deus o que os doutos fazem com os pareceres dos especialistas (recordo o que fizeram ao parecer do Professor João Barroso sobre a Autonomia das Escolas). O 115-A está a anos-luz desse parecer... sabe-se lá por que ruelas se perdeu...
O Ministério da Educação - nosso directo aliado-inimigo, mais não tem feito nos últimos tempos que induzir na sociedade portuguesa um sentimento negativo acerca dos professores. Leia-se no Jornal a Página da Educação, 165 do corrente mês (entrevista com a Prof. Manuela Esteves da FPCE.UL)- «Nenhum sistema educativo melhora enquanto hostilizar os professores». Pudera, com amigos destes, quem precisa de inimigos?

Desidério Murcho disse...

Carlos chama-nos a atenção para uma ligação causal nada desprezível: quanto mais na escola se desprezam os conteúdos cognitivos para seguir a moda do "eduquês", mais a escola perde autoridade. Quando os pais sentem que os seus filhos vão para a escola só para passar tempo e fazer brincadeiras tontas, perdem o respeito pela escola e pela figura do professor.

Por outro lado, quanto mais o ministério da educação afasta os professores de biologia da biologia, os de matemática da matemática e os de filosofia da filosofia, substituindo estas disciplinas por fantasias sem dignidade cognitiva, menos qualidade se pode esperar do seu trabalho -- porque ensinar biologia ainda é o que de melhor os professores de biologia sabem fazer. Se o ministério os obrigar a ser amas, animadores culturais, agentes de propaganda para a cidadania e (já não falta muito) catequistas, é natural que as suas competências sejam sofríveis — o que provoca o desprezo e a falta de respeito dos estudantes, dos pais e da sociedade em geral.

JooGoo disse...

Gostei do post e concordo com tudo aquilo que diz.

Não seja, contudo, tão duro com os humoristas, pois são eles, e não os políticos e eruditos, que com o seu discurso brejeiro fazem chegar à opinião pública a verdadeira dimensão do problema.

JooGoo

JJSilva disse...

Concordo com grande parte do artigo. A única concepção que escola que pode dar frutos é aquela em que o professor detem a autoridade. Não pode ser de outra maneira.
Há uma questão pertinente que muito bem frisou. Onde estão os sindicatos quando a autoridade do professor é posta em causa dentro e fora da escola? As vezes fico com a sensação de que ninguém defende os professores.
A única discordância que manifesto é em relação à avaliação dos professores por parte dos pais. Embora muitos pais mereçam nota negativa (quem os avalia?!), acho que o sistema de avaliação dos professores tem méritos. Além do mais, será essa avaliação que retira autoridade aos professores?
É essencial que haja uma mudança no discurso pedagógico, mas também no discurso do ministério e dos sindicatos e que se tomem medidas para que se minimize este problema da violência nas escolas e os professores sejam tratados com o respeito que merecem.
Mas, há já alguns sinais positivos que apontam nessa direcção.

Rui Fonseca disse...

Leio o seu artigo e destaco dele o último parágrafo:

"Já que os sindicatos o não fazem, não haverá ninguém que defenda os professores?"

E fico perplexo porque para mim a resposta é óbvia: quem é que pode e deve defender os professores se não eles mesmos?

Estamos, em Portugal, habituados a esperar que os nosso problemas sejam resolvidos pelos outros. Os sindicatos, por exemplo: fizeram um trabalho, que beneficiou muitos professores (os efectivos), prejudicou outros (os eventuais) e muito mais os que não têm hipótese de entrar porque o sistema está fechado.

Fechado, para muitos que poderiam realizar funções docentes de forma mais capaz do que muitos que têm o seu posto de trabalho assegurado, independentemente da competência com que o desempenham.E isto desde a primária até à universidade.

A questão da violência nas escolas, demonstra até que ponto, não existe solidariedade do colectivo. Como é que se compreende que numa escola que emprega dezenas, ou centenas, de pofessores estes se mostrem incapazes de dominar "pequenos terroristas"?

E se acaso o assunto não é de "pequeno terrorismo" mas de vandalismo adulto, não há esquadra de polícia a quem possam pedir que faça o que deve?

Há diferença entre a ameaça à integridade física, seja de quem for, se ela for praticada na rua ou na escola?

Quanto à apreciação paternal do mérito dos professores: admitamos que não estamos de falar da escola pública mas de uma escola privada.
Aceitará o director, que frequentemente é o empresário, que os pais dos seus alunos não se pronunciem acerca dos professores, aceitando passivamente, que eles tirem os seus filhos daquela escola para os colocarem noutra?

Seguramente, não.

Então qual a diferença entre esta situação e a da escola pública?

Nenhuma.Na escola pública pagamos as propinas sob a forma de impostos, mas o direito de os pais se pronunciarem não pode ficar diminuído por esse facto.

Há um aspecto relevante em tudo isto que o seu artigo não aborda, mas é crítico: os professores têm sido recrutados sem provas de admissão. Entram muitos que não têm competência pedagógica nem vocação profissional. Enquanto os professores não reconhecerem este facto continuarão a ser vítimas dos equívocos para que não querem olhar.

Porque a escola, é preciso dizê-lo, tem muita gente competente ao seu serviço mas também nela há muito joio que deveria ser separado.

Declaração de interesses - Não sou professor, não há professores na minha família mais próxima.

Camarelli disse...

o problema é complexo. quando as pessoas se apercebem da quantidade de licenciados desempregados, em trabalhos precários ou empregos que não exigem qualquer dos conhecimentos adquiridos nas faculdades, o ensino cai no desprestígio.
eu não sei o que se passa em casa dos alunos nem sequer estou perto da realidade das escolas mas parece-me plausível que um sistema que não compensa quem estuda e ainda por cima tendo a cunha por tradição, é um sistema que desautoriza a escola. não são só os professores mas também a necessidade do conhecimento que estão desvalorizados.
é uma preversidade inerente ao modelo económico que está a afastar a sociedade dos ideais de universalidade dos direitos fundamentais, dos quais a educação faz parte.
partir para uma guerra não vai resolver o problema mas sim agravar e eventualmente gerar ódios. a culpa não é dos professores mas também não é dos pais. niguém quer filhos doutores nas caixas de supermercados, não foi para isso que investiram dinheiro e tempo na educação dos filhos. há que entender isto, há seres humanos em todo o lado a lutar pela vida com cada vez mais dificuldades.
no meu entender, o problema reside na economia e na justiça social globais (política, portanto), assuntos que escapam muitas vezes quando se faz uma análise local dos problemas.

Fernando Martins disse...

Caro Doutor Fiolhais:

Gostei imenso do seu texto, que subscrevo quase na totalidade. Publiquei em diversos Blogues (Ciências Correia Mateus, GeoLeiria, XadrezLeiria, AstroLeiria e Geopedrados) com referência ao autor e ao Blog.

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossí...