domingo, 11 de março de 2007

Teseu e a metafísica

Uma das disciplinas filosóficas mais enigmáticas é a metafísica. Não se deve confundir a metafísica com espiritismo. Fazer essa confusão é como confundir astronomia com astrologia. A metafísica estuda aqueles aspectos mais gerais da realidade que são insusceptíveis de serem estudados empírica ou formalmente. Mas este estudo é filosófico, racional, e não místico nem religioso. Para se ficar com uma ideia do que é a metafísica, vejamos um dos seus muitos problemas centrais: o problema da identidade ao longo do tempo.

Teseu tinha um barco de madeira, composto por um certo número de pranchas e pregos. Com o tempo, algumas das pranchas foram ficando velhas e ele acabou por substitui-las por pranchas e pregos novos. Ao longo de muitos anos, Teseu foi substituindo várias pranchas do seu barco, à medida que iam ficando velhas. Contudo, sem ele o saber, a Paula foi juntando as pranchas velhas, à medida que o Teseu as deitava fora. A certo ponto, a Paula conseguiu reunir todas as pranchas velhas que o Teseu foi tirando do barco, assim como os pregos. E então teve a ideia de juntar as pranchas todas e fazer um barco, com os pregos originais do barco de Teseu.

Quando a Paula acabou de fazer o seu barco olhou para ele e percebeu que agora tinha um problema. Aquele barco que tinha acabado de fazer era ou não o barco de Teseu? Afinal, tinha sido feito unicamente com as pranchas do barco de Teseu. E foi construído exactamente da mesma maneira, com cada uma das pranchas no lugar que ocupava originalmente. Por isso, num certo sentido, este novo barco é o velho barco de Teseu. É exactamente o mesmo barco do qual o Teseu foi retirando pranchas uma a uma, à medida que ficavam velhas.

Contudo, se o barco que a Paula acaba de reconstruir é o barco original de Teseu, o barco que Teseu tem em casa não pode ser o seu barco original. Mas então quando desapareceu o barco original? Não faz muito sentido dizer que o barco original desapareceu mal Teseu lhe tirou uma prancha. Pois se deixou de ser o seu barco original mal lhe tirou uma prancha, também teria de deixar de ser o seu barco original mal alguém lhe tirasse uma pequena lasca — ou um átomo. Isto está longe de ser plausível.

O problema é que também é muito implausível dizer que o barco original de Teseu agora é dois, pois uma coisa não pode ser duas. Mas então qual dos dois é o barco original de Teseu? Se for o novo, teremos de dizer que o barco da Paula não é o barco original de Teseu. Mas como pode tal coisa ser verdade? Afinal, o barco da Paula é exactamente igual ao barco original de Teseu — tem a mesma forma e é constituído exactamente pelas mesmas pranchas e pregos. Se insistirmos que o barco da Paula não é o barco original de Teseu, teremos de dizer que pode haver dois objectos diferentes constituídos exactamente pelos menos átomos e exactamente com a mesma forma. Só que isto é outra vez muito implausível. Em que ficamos?

Quem tiver interesse em descobrir a metafísica, pode começar por ler Riddles of Existence, de Earl Conee e Theodore Sider (Oxford, 2005). É um livrinho estimulante e imaginativo. Como a melhor filosofia.

23 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pela forma simples e didáctica como escreveu sobre a metafísica.

Faltava um blogue deste tipo e com esta qualidade.

Desidério Murcho disse...

Olá, António

Obrigado pelas suas palavras!

Anónimo disse...

O exemplo não ilumina muito.
Tudo gira em torno de uma pergunta: qual é o barco de Teseu? Pressupõe-se assim que existe tal coisa, o barco de Teseu. Se se definir previamente o que é essa coisa, a pergunta fica respondida automaticamente, se não tautologicamente. Exemplo de definição: o barco de Teseu é o barco que é propriedade de Teseu e que ele usa quotidianamente. Outro exemplo de definição: o barco de Teseu é o barco constituído pelas tábuas e pregos iniciais. Com qualquer das definições, a resposta é instantânea (embora diferente num caso e noutro), e o problema desinteressante.
A ênfase numa designação à qual não se atribuiu previamente sentido torna o problema apresentado um jogo de palavras. Ou estou a simplificar abusivamente? Gostaria de ver um exemplo melhor.

Desidério Murcho disse...

Obrigado pelo comentário.

Não me fiz entender. O problema nada tem a ver com a designação escolhida. Pode chamar X ao barco original de Teseu. Depois de a Paula ter feito o que fez, qual dois barcos é X? Ou nenhum deles o é? Qualquer das respostas que der levanta perplexidades.

Anónimo disse...

Obrigado também.

Suponho que o problema persiste. A designação não importa, concordo. Mas a pergunta "qual dos dois barcos é X?" refere-se a quê, então? Sabemos exactamente o que são, de que são feitos, os dois barcos. Que dúvida resta?

Desidério Murcho disse...

A dúvida é saber qual dos dois é o barco original, e porquê; ou se nenhum deles é o barco original, e porquê.

O problema é sobre a identidade, que é a mais básica das relações lógicas que qualquer objecto tem -- todo o objecto é idêntico a si mesmo e apenas a si mesmo.

Imagine que todos os dias viaja no barco de Teseu. E pensa naturalmente que viaja sempre no mesmo barco em que viajou no dia 1. Um ano depois a Paula conta-lhe que fez um barco da maneira descrita. No dia seguinte você continua a dizer que o barco em que viaja é o barco é que viajou no dia 1? Ou não? Ou dirá que o barco em que viajou no dia 1 está agora em casa da Paula?

Anónimo disse...

Talvez não valha a pena insistir com este exemplo, porque nos estamos a repetir. Se a pergunta é "Qual dos dois é o barco original?", é necessário previamente, para tornar a pergunta inteligível (e não apenas uma sequência de palavras), atribuir um sentido à expressão "barco original". Uma vez atribuído um sentido preciso a essa expressão, a pergunta é facilmente respondida.

Quanto à situação concreta sugerida: quando a Paula me contar o que aconteceu, eu então saberei -- o que não sabia antes, mas apenas por falta de informação -- que, algum tempo depois do dia 1, foram substituídas algumas tábuas. Tempos depois, mais tábuas. No fim, todas as tábuas eram novas, e as velhas foram usadas para construir um barco. Se não colocar a mim próprio nenhuma pergunta ininteligível, não terei problema algum com a situação.

Talvez um exemplo melhor para ilustrar o que se pretende seja obtido com um corpo humano. Aí a questão da identidade tem verdadeiro interesse, até por motivos jurídicos. Não falo das mudanças naturais que um corpo vivo vai constantemente sofrendo. Com o aumento do tipo de órgãos que se podem transplantar -- até já caras se transplantam -- um dia poderão criar-se situações difíceis de deslindar. Penso obviamente no cenário de um transplante de cérebro, hoje tecnicamente impossível, mas talvez não inconcebível no futuro, para permitir a um cérebro vivo num corpo paralisado mudar para um corpo em bom estado mas em morte cerebral. Contudo, mesmo aí basta dizer que um indivíduo corresponde a um cérebro para resolver a questão da identidade.

Desidério Murcho disse...

Caro jfqueiro: não é verdade que se trate apenas de uma questão de definição. Nós não precisamos de definições para referir as coisas no mundo. Você pode estar perante o barco de Teseu e aponta para ele e diz "É deste barco que estou a falar". E um ano depois vai a casa da Paula, e ouve a história, e pode perguntar: "Este barco para o qual estou agora a apontar é o barco para onde apontei há um ano, ou não?" E qualquer resposta que dê levanta perplexidades.

Por outro lado, se não há um problema com o barco de Teseu porque é só uma questão convencional de definição, então também não há qualquer problema com o exemplo que dá, porque seria então apenas um caso de definição também. Bastaria definir o João de uma dada maneira, e depois de todos os transplantes de órgãos seria fácil saber qual das duas pessoas seria o João -- bastaria consultar a definição. O problema, o verdadeiro problema, é que seja qual for a definição que apresentar, essa definição enfrenta fortes razões para a considerarmos má. E o mesmo se aplica ao barco de Teseu.

Espero que agora as coisas tenham ficado mais claras.

Anónimo disse...

Caro Desidério Murcho,

Eu próprio disse, no fim do meu texto anterior, que, apesar de talvez mais interessante, o exemplo do corpo humano acaba por ser análogo ao do barco: adoptada uma definição, não há problemas de identidade.

Creio que o problema de fundo é outro. Num texto anterior seu, lê-se: "O problema é sobre a identidade, que é a mais básica das relações lógicas que qualquer objecto tem -- todo o objecto é idêntico a si mesmo e apenas a si mesmo."

Ora eu suspeito de que aos objectos físicos -- barcos, corpos, etc. -- não se aplicam "relações lógicas", pelo menos no sentido rigoroso do termo. Estas são reservadas às entidades mentais, entre as quais os objectos matemáticos. Afinal, estava-se a falar de metafísica.

Desidério Murcho disse...

Olá! As relações lógicas aplicam-se aos objectos, tal como as relações numéricas. Por exmeplo, se um objecto é maior do que um segundo e este maior do que um terceiro, então o primeiro é maior do que o terceiro. E todos os objectos são idênticos a si mesmos. Etc.

A lógica e a matemática não se ocupam de sonhos, mas da realidade. Usam é modelos altamente abstractos para o fazer. Mas não podemos confundir os modelos com o que estamos a modelar. Seria como pensar que a cartografia estuda mapas. Bom, estuda mapas, mas mapas que têm por missão representar a realidade. E há uma grande diferença entre um mapa de Portugal e um mapa da Terra Média de Tolkien. A relação de identidade que qualquer objecto tem consigo mesmo não é uma fantasia como um mapa de Tolkien. É a natureza intrínseca do próprio objecto.

Anónimo disse...

Sonhos, fantasias... Onde nos leva a metafísica!

Mais a sério. As relações lógicas e numéricas, em sentido preciso, *não* se aplicam aos objectos físicos. O exemplo escolhido é revelador: como definir "maior do que" para objectos físicos? Pela massa? Pelo volume? Pelo número de moléculas?

A sua ideia sobre o que é a Matemática não está correcta. A Matemática opera sobre modelos abstractos, com existência puramente mental (as palavras "sonhos" e "fantasias" enganaram-se de discussão). Não trata da realidade. Dizer o contrário, sim, revela confusão entre modelo e modelado.

Coisa distinta é a de saber como e em que medida (e, para os filósofos, porquê) a Matemática e os seus modelos se ajustam tão bem à realidade. Este é um assunto clássico, analisado por exemplo no célebre, e fascinante, artigo "The Unreasonable Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences", do prémio Nobel Eugene Wigner.

Desidério Murcho disse...

Olá, jf. A posição convencionalista que está a defender é uma posição metafísica entre outras possíveis. Uma das suas dificuldades, precisamente, é saber como explicar a aplicação da matemática à realidade, se a matemática nada tem a ver com a realidade. O realista tem uma explicação muito simples: quando a matemática afirma que 2 mais 2 é quatro isto aplica-se à realidade precisamente porque estamos a falar do que acontece quando temos dois objectos e juntamos mais dois objectos: ficamos com quatro objectos.

É incoerente procurar refutar a metafísica defendendo uma tese metafísica sobre a natureza da matemática.

Unknown disse...

Desta discussão já levo alguma coisa, que é saber que sou um convencionalista.

Alguns esclarecimentos:

1) Não procurei "refutar a metafísica", tentativa que me daria lugar imediato na galeria dos tontos. Procurei apenas esclarecer-me sobre um exemplo (muito físico, muito físico) que foi apresentado com o objectivo de "se ficar com uma ideia do que é a metafísica".

2) A dificuldade de "saber como explicar a aplicação da matemática à realidade" não é minha. Não quero apropriar-me de ideias alheias. Trata-se de uma questão antiga, que tem ocupado grandes cientistas (e imagino que também grandes filósofos). Sugiro de novo o texto de Eugene Wigner.

3) Nunca disse que "a matemática nada tem a ver com a realidade". (Começam a ser esclarecimentos factuais a mais. Estará alguém a intervir nesta conversa fazendo-se passar por mim?) Disse que a Matemática trata de modelos abstractos, representações mentais da realidade. Pensa o Desidério Murcho que os matemáticos trabalham com objectos físicos, contando-os meticulosamente para saber que dois mais dois são quatro?

Miguel G Reis disse...

Excelente discussão!
De facto concordo que não necessitamos de definir as coisas para a elas nos referirmos, mas necessitamos defini-las se desejamos implementar um discurso lógico sobre elas. O problema da discussão, parece-me, está no tipo de lógica usada para modelar a situação:o caro Desidério fala numa situação que implica evolução temporal, enquanto a necessidade (para mim óbvia), do caro jfqueiro, de definir as noções de que se falam, implica uma situação estática. Nomadamente, o problema da discussão está na aceitação prévia do princípio do terceiro excluído que implica a noção de que ''todos os objectos são idênticos a si mesmos''.

Parabéns por um excelente blog.

Abraço
Miguel

Desidério Murcho disse...

Obrigado aos dois pelos comentarios! Vou fazer um novo post para ver se as coisas ficam mais claras.

Anónimo disse...

Bah!!! O idealismo monista... it's all in the mind!... não se perde nessa lógica atomista! ;)

De facto, se a consciência é a ÚNICA realidade, o barco de Teseu é uma mera imagem mental e nada mais. Dizer qual a imagem original, talvez nem tenha significado lógico já que ela se recria a cada vez, e de novo a consciência assim a fez! :)

Um pouco mais seriamente, essa também é a verdadeira questão da identidade do Ser Humano, no exemplo dos transplantes, por exemplo. Mas residirão a consciência ou a mente apenas no cérebro?! Ou ainda, qual o tipo de relação desse órgão físico com a nossa identidade individual?!

Eis toda uma série de questões bem mais interessantes a que teremos de responder... in due time... se puder ser! Anyway, somos também seres eminentemente criadores, deveras novos deuses, por isso (re)escrevemos também as leis da natureza que talvez nem sejam assim tão eternas e imutáveis... ou serão?!

Há mesmo impossíveis lógicos... ou existe um pensamento paralógico?! Irracional, supra-racional... será que tudo é igual?!

Logo... Cons...ciência...

Rui leprechaun

(...não é esse o objecto da Ciência?! :)


PS: Cumscientia = cum (com/junto) + scientia (saber/conhecimento)

E os gregos afinam pelo mesmo diapasão, ora vejamos:

Syneidesis = syn (com/junto) + neidesis (saber/conhecimento)

De facto, o vocábulo latino terá sido formado a partir do grego, tendo Cícero copiado-o de Demócrito.

Anyway... e para além do seu significado literal de "conhecimento com"... quê?!... é muito interessante que o vocábulo "consciência" seja formado pela justaposição de "com + ciência"...

...mais palavras para quê?!... que só quem não quer não vê!!! :)

Anónimo disse...

quem nasceu primeiro? o ovo ou a galinha? q coisa de doido!

Anónimo disse...

Vejam bem as asneiras que se dizem por aqui:"Uma das disciplinas filosóficas mais enigmáticas é a metafísica. Não se deve confundir a metafísica com espiritismo".
Pois sabiam que ainda há pouco tempo um astro-fisico português que também é espírita,proferiu duas conferências na famosa Universidade de Cambridge? Continuo a dizer que neste blog há pessoas que falam de espiritismo sem saber nada do mesmo.

LUÍS DE ALMEIDA NA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, REINO UNIDO
O Professor Doutor Luís de Almeida, cientista da Agencia Espacial Europeia (ESA), consultor europeu da Agencia Espacial Norte-Americana (NASA), levou o Espiritismo aos meios académicos de Cambridge, UK.
Na respeitada Universidade de Cambridge, que deu ao mundo oitenta e um "Prémios Nobel" e albergou nomes como Sir Isaac Newton, Bertrand Russell, J. J. Thomson, Ernest Rutherford, Niels Bohr, Paul Dirac, Max Born, James Watson, Steven Weinberg e Stephen Hawking entre tantos outros, o cientista português proferiu duas conferências sobre "O que é Espiritismo, e o que não é Espiritismo" e outra sobre "O Papel do Espiritismo na sociedade vigente e a importância do espiritismo na vida de um cientista”.

O evento decorreu no sábado, dia 14 de Julho, às 9H00 e às 14H00 e teve lugar no Instituto de Ciências Matemáticas Isaac Newton, dirigido, actualmente pelo Professor Doutor Stephen Hawking, com o título de professor lucasiano (nome que se dá a uma cátedra outrora ocupada por Isaac Newton).

Foi a primeira vez que um espírita proferiu uma palestra na Universidade de Cambridge, Faculdade de Matemática da Universidade de Cambridge e no Instituto de Ciências Matemáticas Isaac Newton do Reino Unido.

Anónimo disse...

No post «Homeopatetices - A componente mística», deixei comentário acerca da vossa "abordagem" do Espiritismo.

Afonso Pereira

marcia adriana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
marcia adriana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cláudia da Silva Tomazi disse...
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Fábio François Fonseca disse...

Um amigo me pediu um palpite sobre o problema, e como eu tive que escrever alguma coisa, vou publicar aqui, no que possa contribuir, embora eu acho que vocês não vão receber bem minha proposta, que presume que a solução do problema não passa por uma teoria metafísica. Curiosamente, o paradoxo ainda é metafísico, ao meu ver, o que mostraria pelo menos uma limitação deste tipo de abordagem intelectual, se eu estiver certo.

Eu só consigo antever uma solução se estivermos dispostos a aceitar que os critérios de identidade de um objeto espaço temporal são socialmente sustentados nas práticas discursivas em que estes objetos são compreendidos como o que são.

Um esboço de solução seria então o seguinte. Quando tomamos um aglomerado de coisas como uma só coisa é porque este aglomerado desempenha um papel específico nas nossas formas de vida, nos jogos de linguagem em curso. Estas formas de vida se desenrolam no tempo, de modo que esta identidade é sustentada não só com base na substância material mas na continuidade desta função no transcorrer do tempo (e não precisamos aqui de nenhuma postulação mais transcendental do tempo, basta a percepção socialmente referendada que nos orienta no uso de relógios e calendários). É o que nos sugere que alterações na substância do objeto não comprometem a continuidade da sua identidade. Teseu pode dizer que aquele é o mesmo barco, mesmo depois de ter trocado uma tábua, porque compreende aquele aglomerado de coisas, a tábua velha e a nova inclusive, no contexto da sua atividade naval. Quanto ao navio reconstruído a partir das peças dispensadas, ele não é o navio de Teseu porque não surge num contexto espaço-temporal (histórico) como tal, não está no mesmo processo histórico em que Teseu, por exemplo, navegou até morrer.

Uma versão do que estou dizendo é a solução quadri-dimensional deste problema, que sugere que há uma quarta dimensão que reúne amostragens das outras três numa continuidade que assegura a continuidade do navio que Teseu efetivamente está navegando. Esta solução ainda é muito metafísica pra mim, enquanto os termos do problema são existenciais, o barco é de alguém. mas ela serve para versões naturalísticas deste problema, como o do organismo vivo que no espaço de dez anos teve todas as células do corpo substituídas entre mortas e nascentes, ou o problema do teleporte em que o corpo é desconstruído e reconstruído noutro lugar, com outras partículas, o que assegura a identidade é o mesmo processo vital, ou mesmo processo intencional que pretende teletransportar o mesmo objeto.

A intuição contrária ao que estou propondo é que se desmontarmos uma máquina e a remontarmos de novo, estamos prontos a dizer que é a mesma máquina. Mas aí se vê que a continuidade está na intenção das pessoas envolvidas, a saber, desmontar e remontar, o que se reforça se esta intenção não é uma mera hipótese arbitrária para gerar paradoxos, mas uma finalidade concreta, por exemplo, conhecer melhor o funcionamento da máquina, localizar alguma peça defeituosa etc. Acontece que não é o que acontece no caso de Teseu. Não há continuidade intencional entre a reserva e reunião das peças e a reconstrução posterior, pelo menos não como que existe no decorrer dos anos em que Teseu está usando o seu navio como seu. Não se trata do barco de Teseu, mas uma reconstituição a partir dos restos do navio de Teseu. Acho que o decisivo é isto, que as peças foram dispensadas, consideradas impróprias para figurar na continuidade que é proposta e aceita pragmaticamente ao objeto.

UM CRIME OITOCENTISTA

  Artigo meu num recente JL: Um dos crimes mais famosos do século XIX português foi o envenenamento de três crianças, com origem na ingestã...