quarta-feira, 21 de março de 2007

UM ABADE COSMOPOLITA



A 27 de Março pelas 18h30, é lançado na FNAC Colombo, em Lisboa, o livro "Cidadão do Mundo. Uma biografia científica do Abade Correia da Serra", de Ana Simões, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro, saído na Porto Editora em 2006. Eis a recente recensão que publiquei no "Primeiro de Janeiro".


Se o leitor for à Casa Monticello, na Virgínia, Estados Unidos, que foi residência do presidente norte-americano Thomas Jefferson (1743-1826), não poderá deixar de visitar um quarto que o dono da casa tinha em permanente reserva para acolher um seu grande amigo português. Chama-se o quarto «Abbé Corrêa’s room», sendo o “Abbé Corrêa” o Abade José Correia da Serra, nascido em Serpa em 1751 e falecido nas Caldas da Rainha em 1823.

Jefferson foi um dos autores da Declaração da Independência dos Estados Unidos e o terceiro presidente americano, depois de George Washington e John Adams. Foi um espírito das luzes, um filósofo e um bibliófilo. No ano de 1812, o Abade português seu amigo, um outro espírito das luzes, chegou a Filadélfia, quando era presidente James Madison, o sucessor de Jefferson e também ele um presidente-filósofo. O clérigo e naturalista português tomou posse, em 1816, do lugar de “ministro plenipotenciário do reino de Portugal, Brasil e Algarves junto do governo americano” (hoje diríamos embaixador). Foi uma missão difícil, em primeiro lugar porque a corte portuguesa no Rio de Janeiro teve de enfrentar uma revolta no Pernambuco que tinha o apoio de alguns americanos e em segundo lugar porque o presidente seguinte, James Monroe, menos filósofo do que os anteriores, já não apreciava a conversa erudita de salão em que o Abade era mestre. Em 1820 por altura da Revolução Liberal e dois anos antes da independência do Brasil o embaixador regressava à sua terra natal.

O recente livro das historiadoras de ciência Ana Simões, Maria Paula Diogo e Ana Carneiro intitulado “Cidadão do Mundo. Uma biografia científica do Abade Correia da Serra”, e saído na colecção “História e Filosofia da Ciência” da Porto Editora, lança luz sobre o notável personagem do iluminismo português e mundial. Fazendo jus ao título do livro, Correia da Serra foi um homem das sete partidas do mundo. Partiu ainda criança do seu Alentejo devido provavelmente a perseguição à sua família por parte da Inquisição (a mãe tinha ascendência judia). Em Itália, além de professar ordens religiosas “estrangeirou-se”, recebendo as influências do “estrangeirado” Luís António Verney. Em 1777, aos 26 anos, regressou a Portugal onde, em 1779, ajudou a fundar a Real Academia de Ciências de Lisboa, da qual o Duque de Lafões foi presidente e ele secretário. Depois, em 1795, viu-se obrigado a partir para Londres por ter dado guarida a um naturalista francês (a Inquisição pode também ter a ver com essa fuga: leia-se a confissão dos seus pecados sexuais que o Abade fez à Mesa do Santo Ofício e que está transcrita na nota de rodapé da página 60). De Londres, perseguido pelo embaixador português, Serra fugiu para Paris, onde teve um filho de uma senhora francesa, que seria durante muito tempo seu sobrinho. Renunciando a obedecer a Napoleão, foi a seguir para os Estados Unidos, onde conheceu o apogeu da sua carreira. Regressado a Portugal, voltou a ser secretário da Academia das Ciências. Depois de estadas mais curtas de novo em Londres e Paris, veio a morrer quase ignorado. Nascido e falecido em Portugal, não foi um homem daqui. Conforme escrevem as autoras na conclusão: “Dos seus 72 anos, apenas 26 foram passados em Portugal.” Foi um abade cosmopolita cuja paróquia foi o mundo e, note-se, o mundo mais desenvolvido.

Assim como a ciência em Portugal está hoje a desenvolver-se, a história da ciência também o está. Este livro, saído da pena de algumas das nossas mais produtivas historiadoras de ciência, surgiu na sequência de dois outros livros das mesmas autoras, publicados na mesma editora em 2003, contendo fontes primárias sobre Correia da Serra: “José Francisco Correia da Serra: Investigações Botânicas” e “José Francisco Correia da Serra: Itinerários histórico-naturais” e quase ao mesmo tempo que o livro “D. João Carlos de Bragança - 2º Duque de Lafões”, de Nuno Monteiro e Fernando Costa, publicado pela Inapa. Surgiu na altura em que foi inaugurado o Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, cujo Laboratório Chimico, no Largo Marquês de Pombal, é contemporâneo do Abade. E na altura em que, no Museu de Ciência da Universidade de Lisboa (na Rua da Escola Politécnica, não muito longe da vetusta Academia das Ciências), se efectuou uma discussão pública sobre o património científico português. O interesse pela nossa história da ciência parece que, finalmente, despertou. Já não era sem tempo...

O livro faz uma excelente compilação e análise de tudo o que se escreveu antes sobre o Abade. Oferece uma ampla perspectiva sobre os seus trabalhos nas áreas da botânica e da geologia, concluindo que ele não foi propriamente um autor muito produtivo nem um autor de um grande livro de história natural. Mas foi um bom observador e um autor de algumas comunicações inovadoras. E foi, sobretudo, um intermediário e prosélito da ciência. Cruzou-se com os maiores nomes da ciência da sua época como Sir Joseph Banks (o famoso presidente da Royal Society), Georges Cuvier (um dos fundadores da paleontologia) e Jacon Bigelow (um ilustre botânico que foi professor em Harvard), para só referir três nomes maiores da Inglaterra, da França e da América. Ficou conhecido na América como o “Franklin de Portugal”. Em Portugal conviveu ou correspondeu-se, além do Duque de Lafões, o primeiro Presidente da Academia, com Domingos Vandelli, o italiano que foi o primeiro lente de Química na Universidade de Coimbra na Faculdade de Filosofia fundada por Pombal, e com Félix Avelar Brotero, o lente de Botânica coimbrão que foi um dos cientistas portugueses mais notáveis de sempre (na sala de sessões da Academia das Ciências a sua efígie está a”falar” com a de Camões, representando respectivamente as classes de ciências e de letras).

A estada do Abade na América foi particularmente interessante. Antes de ser diplomata, Serra descreveu algumas das então novas paisagens dos Estados Unidos. Embora não tenha chegado a ser professor, foi consultor, através do seu amigo Thomas Jefferson, da então fundada Universidade da Virgínia. Porém, como diplomata, não teve sorte na época que lhe calhou, um período de conflitos no velho, no novo e entre o velho e o novo mundo... Com Jefferson alimentou a utopia de uma nova civilização nas Américas, que ambos queriam mais avançada do que a europeia. A América do Norte ficaria para os Estados Unidos e a América do Sul para Portugal. Numa carta de Jefferson a Correia da Serra, de 24 de Outubro de 1820, ele fala de um sistema em que “(...) a América se separaria dos sistemas da Europa e estabeleceria o seu próprio sistema. As nossas circunstâncias, objectivos e interesses são distintos. Os princípios das nossas políticas também o devem ser. Todas as confusões com esse quarto do globo devem ser evitadas se quisermos que a paz e a justiça sejam as estrelas polares das sociedades americanas”. É curioso como um padre católico se entendia bem com um unitariano como era o político e intelectual americano. Mas eram os dois membros da Maçonaria (nesse tempo ser padre e maçon era, pelos vistos, compatível)...

O livro retrata Portugal no crepúsculo da época das luzes. Mostra como, de repente, no início do século XIX, passou de um país próspero a um país decadente. De facto, esse século foi bem menos luminoso do que o anterior. A Academia das Ciências entrou em decadência tal como o país no seu conjunto. Quando estava quase a irromper o miguelismo um jornal nacional escrevia sobre a Academia: “Temos ciência e saber demais. Do que se padece é de agricultura, de comérico e de indústria” e “a maior parte dos sábios (...) só dão trapaça e incómodo aos povos”. E em 1823 um político invectivava na praça pública as ciências: “que ciências são estas com que tanto se gasta?”. Eduardo, o filho do Abade (de início ilegítimo, mas depois ainda que a custo legitimado), depois da sua longa estada no estrangeiro com o pai, descrevia assim a cidade de Lisboa que encontrou: tem um “palácio da rainha da imundície” e é um “antro de ignorância e superstição alimentada por uma multidão de monges, padres e frades, cujo interesse é manter neste estado a classe baixa”; e rematou “tudo o que a Natureza produziu aqui é bom, tudo aquilo em que os seus habitantes põem as mãos fica estragado.”

Com o declínio do interesse pelas ciências, Portugal passou, num ápice, de um animado centro cosmopolita a uma pequena e lúgubre paróquia. Alguma coisa nos devia ensinar a história das ciências...

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