sábado, 17 de março de 2007

O regresso de Adão

Porque devem ou não ocorrer debates género ‘evolução vs creacionismo’ nas universidades?

Do meu ponto de vista esses debates não devem ocorrer por serem destituídos de qualquer interesse e serem mesmo um mau figurino de debate. É claro que me refiro às universidades na tradição europeia de busca e consolidação de conhecimento.

Há três boas razões para que os cientistas não devam aceitar participar em debates destes.
1. Não se trata de um debate equilibrado, porque do outro lado estão formas mais ou menos exacerbadas de um fanatismo religioso.

2. Tal debate não é sobre ciência, como bem explica Michael Ruse (filósofo da ciência), mas sobre cultura, sobre visões do mundo diametralmente antagónicas, entre o racionalismo e o dogmatismo.

3. Só serve para dar publicidade a um movimento social e político que tenta a todo o custo adquirir um estatuto de respeitabilidade científica que não tem (e por isso o procura junto dos cientistas e académicos).

Por isso, confesso que fico triste por ver alguns intelectuais e cientistas que prezo humana e intelectualmente envolverem-se em debates estéreis e inúteis sobre evolução vs criacionismo, misturados com fanáticos religiosos que vivem presos aos seus dogmas e com os quais não há diálogo possível ou de interesse. O resultado já é conhecido de antemão.

É recorrente o interesse pelas correntes criacionistas que sob vários formatos têm procurado, quase exclusivamente no EUA, contestar a evolução, a teoria evolutiva de Darwin e uma parte essencial da biologia moderna, bem como o seu ensino nas escolas secundárias. Estas correntes têm procurado ainda introduzir nos Curricula uma mistela não científica chamada ‘desenho inteligente’, que mais não é que uma forma literariamente mais elaborada das velhas oposições criacionistas à evidência da evolução orgânica. Muito embora a sua pretensão tenha sido liminarmente recusada em Tribunal Federal, depois de intensas audições, a chegada de Bush à Presidência dos EUA, acompanhado pelo seu núcleo conservador, deu-lhes novo alento.

Comemoram-se em 2009 duzentos anos sobre o nascimento de Darwin, um dos mais importantes cientistas da história da humanidade e, contudo, persiste uma enorme resistência às suas teorias e ao que elas nos permitiram compreender do mundo orgânico em que vivemos e da forma como chegámos ao que somos hoje. Inquéritos realizados nos EUA e na UE revelam que há sectores importantes da população que não partilham a evidência científica da evolução da nossa espécie, preferindo a versão de uma criação especial. Mas, os níveis de respostas acertadas não seriam porventura melhores se a pergunta fosse sobre se os humanos foram ou não contemporâneos dos dinossauros, muito embora nos separem 65 milhões de anos (ou seja, cerca de 500 vezes o tempo que a nossa espécie leva de existência). Este é um problema de literacia científica.

Uma questão diferente é o ataque persistente e insidioso dos movimentos criacionistas à evolução e à explicação científica para a diversidade do mundo orgânico. O jurista Jónatas Machado, entre outros criacionistas de menor visibilidade, tem-se desdobrado em iniciativas e procura de visibilidade para atacar os que designa por evolucionistas, exibindo uma prosápia só equiparável à sua evidente ignorância científica.

Defende JM que os evolucionistas não podem fazer prova da evolução porque se reportam a algo que aconteceu no passado e não pode ser repetida na bancada de experiências. Deste modo a ciência teria que se limitar ao que é experimentável: a formação de um campo electromagnético, a queda de um corpo, uma reacção química, uma manipulação genética. Tal não é verdade. É possível realizar experiências e testar hipóteses científicas mesmo sobre fenómenos ocorridos no passado. Sucede que a biologia evolutiva não é a única área da ciência que tem um carácter histórico, isto é, em que a seta do tempo é muito importante, não sendo possível repetir os mesmos processos para os ‘observar’ de novo. O mesmo se passa com a astronomia, a astrofísica e a história. Estas áreas da ciência com uma forte componente histórica desenvolveram, para o efeito, um conjunto de ferramentas específicas, muito sofisticadas, que permitem por experiências parcelares e indirectas, testar hipóteses e teorias científicas. Mesmo que não possamos viajar no tempo para ver como era o Universo nos primeiros três minutos, conseguimos recriar situações similares nos grandes aceleradores de partículas, que nos permitem testar as nossas hipóteses e modelos. Uma questão central a este assunto é o da forma como se faz prova em ciência, algo que JM evidencia não compreender de todo.

O problema da prova científica é complexo, já que as teorias e modelos não são testados directamente, mas através de hipóteses. Podemos exemplificar como podemos provar que a evolução ocorreu. Por exemplo, decorre da teoria da evolução que as espécies que evoluíram em arquipélagos a partir de um antepassado comum, como os tentilhões das Galápagos, devem ser geneticamente mais próximas entre si do que da espécie de que se originaram no continente. Estudos moleculares sobre aquelas espécies confirmaram esta previsão, suportando o princípio da evolução orgânica. Nenhuma outra explicação pode prever este resultado. Ao longo do último século acumularam-se centenas de milhares de evidências que confirmam a evolução e nenhuma que lhe seja contrária! Da anatomia comparada à biogeografia, da biologia do desenvolvimento à genética. A evolução é um facto científico, como a natureza ondulatória da luz ou a formação das montanhas por tectónica de placas continentais.

12 comentários:

José Oliveira disse...

Mesmo com todas as dúvidas e perplexidades que a Teoria da Evolução possa causar aos cientistas, é a melhor explicação que possuímos nesta altura. Ao contrário dos dogmas religiosos, pode ser discutida, pode ser testada. Mesmo se não for a resposta final que procuramos é, pelo menos, a melhor resposta que temos neste momento. Os dogmas no entanto não mudam desde há pelo menos 2000 anos!
Não penso que se possa misturar discussões científicas sérias, com discussões religiosas.

Joana disse...

Assino de cruz o comentário do José Oliveira e o post do prof. Paulo Gama Mota.

A criação deste blog foi providencial! Os fundamentalistas das várias religiões estão a esquecer diferenças e a unir esforços contra a ciência.

É preciso que vozes racionais respeitadas se ergam em defesa da ciência!

Bem hajam todos os autores deste blog e desculpem os restantes se saúdo especialmente os profs. Carlos Fiolhais, Jorge Buescu e Desidério Murcho, uma equipa de peso com obra publicada em defesa da ciência e da razão!

Só falta o prof. Nuno Crato para os maiores divulgadores de ciência e pensamento crítico nacionais estarem reunidos!

homoclinica disse...

Muito bem! Só é pena que a evolução das espécies não tenha sido acompanhada pela evolução das mentalidades. Contrariamente ao que eu imaginava, quando era pequena, apesar de todo o desenvolvimento científico e tecnológico que se tem verificado nos últimos séculos, há sempre uma parcela da população que permanece inculta, retrógada e mentalmente subdesenvolvida. É uma pena! Que o progresso, a vontade de crescer, de saber mais, de aprender a pensar, não chegue a todos. Há sempre um número, que não é pequeno, de gentes que enchem o Campo Pequeno para ouvir o Tony Carreira. Mesmo entre pessoas com algumas obrigações intelectuais circulam teorias exotéricas, absolutamente não científicas, crendices absurdas e irracionais. Com estes não vale a pena discutir. O diálogo é impossível, porque não seguem os mesmos processos racionais. Simplesmente acreditam porque sim.

António Parente disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Mais uma vez assistimos a tentativas de grupos religiosos fundamentalistas que querem impor a todos as alarvidades em que acreditam.

Desta vez não são fundamentalistas islâmicos são fundamentalistas cristãos. Desta vez é aquele antigo problema da razão contra a fé, ou da Bíblia contra a ciência. Mas o fim é o mesmo, só variam, para já, os métodos.

Naquela coisa na mesquita ismaelita que a Palmira indicou discute-se agora a justiça de Deus (os bárbaros tribunais da Sharia) contra os tribunais "humanos". Como se houvesse discussão possível!

Acho que estes pensamentos retrógados nos mostram bem que existe sim uma justificativa para as atrocidades em nome de Deus que vêm sendo praticadas no mundo.

E os fundamentalistas começam devagarinho, em nome da liberdade religiosa exigem o direito à intolerância de ideias, depois o direito à intolerância de pessoas e depois dá no que dá!

Custa ver gente que tinha obrigação de ser mais inteligente embarcar nestas palhaçadas. Mas como são pessoas honestas intelectualmente não estão habituadas à desonestidade intelectual que caracteriza todos os fundamentalistas. Poucos mas muito barulhentos e que vivem só para isto.

Para a beatada fanática todos os meios são válidos para atingirem os fins que desejam. E esses fins são muito negros.

Não podemos embarcar em discursos pós-modernistas nem nas chantagens e pressões da beatada. Deixá-los espernear que só lhes faz bem ( e poupa no cilício) a ver se aprendem que vivemos em democracia não em teocracia!

Unknown disse...

Caro homoclínica:

Disse que:

O diálogo é impossível, porque não seguem os mesmos processos racionais.

É mais:

O diálogo é impossível, porque não seguem processos racionais.

Fernando Martins disse...

Parabéns pelo Blog, que certamente será uma referência na blogosfera científica nacional.

Permitam-me que discorde de duas coisas:

1. É uma pena a ausência de um Geólogo no Blog (e o Doutor Paulo Gama tem, na UC, vários que lhe podiam dar uma mãozinha neste Blog...).
2. Fazer de conta que o Criacionismo e a ID não estão a atacar em Portugal é o mesmo que copiar o improvável comportamento que alguns pseudonaturalistas atribuiam àsa avestruzes (enterrar a cabeça na areia...). Não resolve nada e fica a Ciência com a fama de absentista. Eu, como A.A. (astrónomo amador, não confundir...) nunca fujo a debates ou a questões sobre Astrologia (aliás no jornal on-line Ciência Hoje ainda há pouco tempo se falava sobre este assunto). DEpois os cientistas que estaram presentes no Colóquio de Lisboa não merecem que outros os ataquem de forma tão forte, pois apenas prestam um serviço a que as Universidades não podem fugir - ensinar os ignorantes e difundir a Ciência.

PS - Publicou-se recentemente um livro sobre o assunto, na óptica do criacionismo - Questionar e Evolução - sabe quem foi o autor do preâmbulo...?

Paulo Gama Mota disse...

‘E Deus parou o Sol’ – a pedido de Josué, no 10º capítulo do Velho Testamento. Apetece-me citar Spencer Tracy (Henry Drummond) no vibrante “Inherit the wind” (1960), ao defender em tribunal, num bastião do Sul dos EUA, o professor B. T. Cates, preso e acusado da heresia de ensinar evolução na escola. Pergunta Drummond ao acusador, que acredita numa leitura literal da Bíblia: então quer dizer que a Terra parou o seu movimento de translação em torno do Sol?

É cair numa armadilha aceitar discutir evolução vs criacionismo, já que se trata de uma questão mais ampla. Aceitamos as evidências da ciência e as explicações que ela fornece sobre o Universo, o seu funcionamento e a sua história e evolução? Aceitamos que a busca racional do conhecimento da realidade que nos circunda é unicamente realizável através de sucessivos testes e confrontos com a realidade, recorrendo a estratégias cada vez mais exigentes e sofisticadas? Ou não?

Não se trata de debater perspectivas científicas. Trata-se de debater sobre racionalismo e racionalidade.

Um grupo de cientistas, incluindo, entre outros, Jerry Coyne, Peter Atkins, Richard Dawkins, Steve Jones, Lewis Wolpert, Steven Weinberg, James Watson e John Maddox, escreveu uma carta ao editor da Nature, em 19 de Maio de 2005, insurgindo-se contra a sugestão de que os professores deveriam procurar ajudar os seus alunos a reconciliar as explicações científicas sobre evolução (e, em última análise, a origem do Homem), com as suas crenças religiosas. A sua posição é simples: os professores devem ensinar evolução. E nunca devem pedir desculpa por ensinarem ciência.

Quanto a debates com criacionistas, só posso dizer que não desejo contribuir para lhes dar publicidade. E não creio que a Universidade preste qualquer serviço à sociedade ao promovê-los. Não se trata de fugir ao debate, mas o de se perceber que esse não é um debate científico. É um debate sobre racionalismo.

Fernando Martins disse...

"Quanto a debates com criacionistas, só posso dizer que não desejo contribuir para lhes dar publicidade."

Mas, caro Doutor, é o que está a fazer neste Blog, dizendo que não o faz apenas está a pôr-se em causa e fazer pensar que não tem argumentos contra as patranhas criacionistas...

PS - Gostaria de saber o que acha da minha sugestão de ter um Geólogo no Blog...
Já agora, o livro "Questionar e Evolução" tem um preâmbulo escrito por Marcelo Rebelo de Sousa... Se este senhor (que sabe de tudo e sobre tudo opina...) se põe a dissertar sobre esta matéria, porque não um Doutorado em um qualquer ramo de Biologia...? Se o Doutor António Manuel Baptista ataca a pseudociência da Sociologia de BSS (e afins...), porque não atacar o Criacionismo e a ID, mostrando apenas porque não ciência (a navalha de Occam é difícil de explicar...?).

Penso que é arrogância científica deixar os criacionistas a divulgar as suas ideias, sem contrapor um esforço para os boicotar - aconselho a leitura de S. J. Gould sobre este assunto. Sugiro-lhe ainda uma visita ao Blog Geopedrados, no qual participo.

Fernando Martins disse...

Corrijo:

Se o Doutor António Manuel Baptista ataca a pseudociência da Sociologia de BSS (e afins...), porque não atacar o Criacionismo e a ID, mostrando apenas porque não SÃO ciências (a navalha de Occam é difícil de explicar...?).

Rui M disse...

Sinceramente, também acho melhor ideia confrontar os criacionistas que deixa-los espalhar as suas crenças sem qualquer tipo de oposição.
È claro que nenhum dos participantes no colóquio vai mudar de opinião, mas se alguém na assistência acordar para a fraude que é o criacionismo já justifica a existência do colóquio.

Zyriab disse...

O comentário de "rui m" lembrou-me por momentos uma piada antiga, da qual já não me lembro a origem, mas, que me parece defender um pouco a posição de "fernando Martins", que também é a minha sobre os debates "criacionismo vs evolucionismo":
-Nunca tente discutir ideias e argumentar com um idiota, porque como idiota que ele é, nunca vai compreender o seu ponto de vista. Como pessoa inteligente que é, vai perceber isso e tentar contra argumentar com a linguagem de idiota para lhe provar na linguagem dele o quanto errado está. Mas, aí você perde o debate por completo, pois como o idiota já tem muito mais experiência em idiotice do que você, vai sempre conseguir ser mais idiota, e vencer não só o debate, como arrastar para a idiotice alguém que estava no bom caminho.

O mesmo é dizer, que a posição dogmática do criacionismo é em sí autosuficiente. O significado de dogma, só por si, garante que não está aberto a discussão, por isso, não faz sentido debater um dogma contra o que quer que seja. A única forma de lidar com dogmas é a ignorância.
Gozemos com os dogmas aqui, como se está a fazer, mas, deixemos de parte a possibilidade de os debater.

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