sábado, 17 de março de 2007

Manuais escolares: hipocrisia ou estupidez?

Pode parecer um falso dilema, e talvez seja, mas mesmo assim não andará muito longe da verdade. Os responsáveis do ministério da educação dizem-se preocupados com a qualidade dos manuais escolares. E vão até instituir uma certificação de manuais, que terá como resultado os mesmos manuais maus aparecerem agora com carimbos de falsa qualidade. (Pergunta inocente: se temos tanta gente tão capaz para andar a certificar os manuais dos outros, por que razão não escrevem eles manuais de qualidade?) Contudo, um dos factores causais directamente responsável pela falta de qualidade dos manuais é a lei das adopções, instituída pelo ministério da educação.

Para compreender o que se passa é preciso distinguir a falta de qualidade dos manuais escolares da falta de qualidade das escolhas dos professores. No primeiro caso, trata-se de saber que factores estão na origem causal de tantos manuais com falta de qualidade científica e didáctica. No segundo, trata-se de saber por que razão os professores não fazem melhores escolhas, mesmo quando há manuais claramente melhores do que outros no mercado. Na verdade, no caso da filosofia, há uma correlação entre o preço dos manuais e o número de escolas que os adoptaram, mas não uma correlação directa entre a qualidade dos manuais e o número de escolas que os adoptaram. Isto parece indiciar que os professores fazem escolhas baseadas no luxo, nas capas, nas cores, nas apresentações sumptuosas em hotéis de luxo, e não na qualidade intrínseca dos manuais — pois quanto mais caro for o preço de capa de um manual mais capital tem o editor para gastar na sua promoção. Promoção que, surpreendentemente, funciona — mesmo que o produto seja cientificamente mau e didacticamente desastroso. Como é isto possível? Por que razão escolhem os professores os manuais deste modo?

Evidentemente, a resposta fácil é dizer que os professores são incompetentes. Esta resposta levanta outra pergunta curiosa: se são incompetentes, o que dizer das universidades que os formaram? Contudo, esta linha de raciocínio oculta um dos factores causais que melhor explicam as escolhas dos professores: a falta de tempo. A lei dá aos professores quatro semanas para escolher manuais porque os manuais são escolhidos artificiosamente de três em três ou de seis em seis anos. Avaliar manuais exige tempo para os ler e discutir com os colegas. Bastaria anular esta lei e permitir que as escolas adoptassem manuais apenas se sentissem necessidade de mudar de manual para o problema se resolver. Os professores teriam todo o tempo para adoptar manuais. O marketing agressivo de manuais não poderia subsistir. E os manuais teriam tendência para cativar os professores pela qualidade intrínseca e não pelo embrulho brilhante.

Sem a actual lei das adopções, os editores seriam forçados a deixar os professores escolher bem antes de mudar de manuais. O marketing agressivo teria muito menos efeito porque os professores não teriam de escolher um manual entre dezenas, em apenas quatro semanas. Os professores teriam tempo de detectar erros e deficiências nos manuais porque poderiam ir lendo os manuais ao longo do ano lectivo; quando chegasse a Maio, teriam uma boa noção dos manuais disponíveis e só mudariam de manual se tivessem descoberto um melhor. Caso contrário, só para não terem de estar a preencher um formulário, ficariam com o manual do ano transacto. E assim os maus manuais teriam tendência a perder escolas; os bons afirmar-se-iam naturalmente pela sua qualidade científica e didáctica — e não pelo marketing.

Daí que quem se diz preocupado com a qualidade dos manuais escolares mas ao mesmo tempo defende a manutenção da actual lei das adopções ou não pensou cuidadosamente, ou anda a deitar-nos areia para os olhos. E parece-me claro que a certificação é mais uma mão-cheia de aéreo areal.

(Declaração de interesses: sou co-autor de dois manuais escolares de filosofia, para o 10.º e o 11.º anos.)

2 comentários:

lino disse...

Pois é! Eu estive para escrever, como observador externo, uma série de postas sobre o estado do ensino básico e secundário. Li tudo o que o Desidério escreveu (e de outros professores que consegui encontrar), comprei e analisei o "Eduquês", do Nuno Crato, e procurei as páginas das várias Associaçõse de Professores. Só a Associação de Professores de Filosofia se preocupava com os exames externos(nacionais) no fim de cada ciclo do ensino básico e secundário e com o conteúdo dos manuais. Algumas, como a dos Professores de Português, eram mesmo contra os exames nacionais. E sobre os manuais, nenhuma se pronunciava (excepto a APF, claro). Desisti (pelo menos para já), da minha ideia, por ter verificado que a quase totalidade das Associações de Professores se preocupam, nos seus sítios na internete, exclusivamente com questões corporativas.

Desidério Murcho disse...

Caro Lino: um dos problemas mais básicos que temos na educação é que o trabalho duro e real de produzir materiais de qualidade para estudantes e professores não é visto com bons olhos, e é positivamente desprezado. Acontece que a falta de qualidade do nosso ensino não se resolve com medidas mágicas, mais leis, mais computadores, mais Internet, mais CD-ROMs. Resolve-se com o trabalho modesto de professores e educadores que dão aulas, escrevem manuais e livros para professores. Enquanto esse trabalho for desprezado socialmente e pelo ministério da educação, não há esperança. Os exames nacionais de qualidade no final de cada ciclo são um instrumento central para exigir mais de professores e estudantes -- mas este ministério foge a sete pés dos exames. E ao mesmo tempo a ministra diz-se a favor dos valores do estudo e do esforço. Mas sem exames, no estado de balda em que está a escola, nem os estudantes estudam nem os professores se esforçam, porque tudo depende exclusivamente do que acontece na sala de aula -- se o professor de física andar o ano a falar de queijo parmesão, faz avaliação sobre isso, e os alunos são aprovados e ninguém lhe pode dizer nada.

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