Seria bom que o Ano Internacional da Física, o centenário do annus mirabilis de Albert Einstein (2005) tivesse servido, pelo menos, para dissipar algumas ideias que, por razões sobre as quais será interessante reflectir, «pegaram» e continuam a ser reproduzidas, por espírito cabotino ou com propósitos nada inocentes, por sucessivos ignorantes das peripécias da vida do grande físico. Um exemplo é a insistência numa suposta afirmação de Einstein segundo a qual a generalidade das pessoas usaria apenas 10% do seu cérebro. Einstein disse de facto isto, mas em resposta, num raro momento de sarcasmo, a um entrevistador particularmente obtuso que se saiu com a seguinte pergunta cretina: “Professor Einstein, porque é que só o senhor compreende a Relatividade?”
O que Einstein pretenderia salientar seria, seguramente, o facto de muitas pessoas – como o entrevistador – usarem pouco a inteligência que têm, e não de modo algum que entendesse haver no cérebro humano qualquer parte ignorada, sede de capacidades e poderes «extra-sensoriais». Infelizmente, a fina ironia perdeu-se e sobreviveu só o mito urbano.
Um outro mito patético mas particularmente perigoso nos dias de hoje é o tão repetido slogan – falso! Falso! FALSO!– de que «Einstein foi mau aluno».
De facto o que se pretende transmitir com essa afirmação, errada, como veremos? Pretender-se-á dizer que os pais, os professores, as escolas, não devem preocupar-se com os meninos que não sabem nada, não estudam nada e dão respostas idiotas a tudo, porque esse comportamento não impedirá que possam ser «génios» como Einstein? Pretender-se-á dizer que ninguém deve reprovar?
Num belo livro, O Cosmos de Einstein, o reputado físico Michio Kaku escreve: «Ao contrário do que conta o mito, Einstein foi bom aluno na escola, mas só era bom nas áreas que lhe interessavam, tais como matemática e ciências. O sistema escolar alemão encorajava os alunos a darem respostas curtas baseadas na memorização – de outra forma, poderiam ser punidos com palmadas dolorosas nos nós dos dedos. O jovem Albert, contudo, falava devagar e hesitantemente, escolhendo as palavras com cuidado. […] Desgastava-se sob um sistema sufocante e autoritário, que esmagava a criatividade e a imaginação […].
Percebe-se a «animosidade» positiva que alguém tão dotado como Einstein sentiria por uma escola que não correspondia à sua curiosidade e qualidades intelectuais e, pelo contrário, lhe impunha o estudo de disciplinas pelas quais não se sentia atraído e o desviavam das matérias e das questões que, já então, o apaixonavam. Compreende-se o constrangimento, o incómodo, que a profundidade com que abordava essas matérias e a atitude, entre o alheamento e a ironia que o distinguia causariam a alguns professores. Nada de muito diferente, aliás, do que lamentavelmente continua a verificar-se hoje com os melhores estudantes em muitas escolas portuguesas.
Continuando a citar Kaku: «O comportamento de Einstein definiu-se cedo. Era sonhador e perdia-se frequentemente nos seus pensamentos ou na leitura […]» Ouçamos Einstein: «Uma maravilha de uma natureza tal experimentei eu aos 4 ou 5 anos, quando o meu pai me mostrou uma agulha de bússola […] ainda me lembro […] que esta experiência provocou em mim uma impressão profunda e duradoura. Tinha de haver algo muito bem escondido por trás das coisas.»
Foi Talmud, um amigo mais velho que frequentava a casa da família, quem ofereceu a Einstein o famoso livro sobre geometria que ele devorava dia e noite. Chamou-lhe o seu «segundo milagre»: «Aos 12 anos de idade experimentei uma segunda maravilha, de uma natureza completamente diferente, num pequeno livro com a geometria plana de Euclides» […]». A matemática, registou a irmã Maja, tornou-se uma fonte de prazer inesgotável para Albert, especialmente se estivessem envolvidos enigmas e mistérios intrigantes, gabando-se de ter descoberto uma prova independente do teorema de Pitágoras sobre os triângulos rectângulos. Mau aluno?
Transcrevemos a seguir a informação autorizada de Abraham Pais (Einstein Viveu Aqui), o mais respeitado biógrafo de Einstein:
Aos 5 anos de idade Einstein recebeu a primeira instrução em casa, através de uma professora. Aos 7 anos entrou para a Volksschule, uma escola pública, onde se saiu muito bem. Em 1886 a mãe escrevia numa carta que o filho era «novamente o primeiro». Em 1888 foi para a escola secundária, para o Gymnasium Luitpold, onde mais uma vez se saiu bem. Quando, em 1894, a família se mudou para Milão, Albert ficou ao cuidado de uma família de Munique para poder continuar os estudos. Num esboço biográfico do irmão, concluído em 1924, Maja recorda que esta existência solitária deprimiu Einstein e tornou-o nervoso. Por isso, meio ano depois abandonou a escola, por iniciativa própria, e juntou-se à família em Itália. Contudo, estava determinado a continuar os preparativos para a admissão à universidade, o que fez estudando sozinho.
Em Outubro de 1895 Einstein fez, com permissão especial – era dois anos mais novo do que a idade de admissão mínima –, o exame de admissão ao Polytechnikum de Zurique, a partir de 1911 denominado Eidgenössisiche Technische Hochschule (ETH, Instituto Federal de Tecnologia). O exame abrangia matérias científicas (matemática, física e química) e matérias de cultura geral (história literária e política, alemão). Reprovou devido aos maus resultados obtidos nas últimas matérias. Este revés talvez tenha provocado a impressão muito difundida e errónea de que era mau aluno. Na verdade, nunca teve maus resultados em ciência – mas nunca gostou muito da escola.
Seguindo o conselho do director da ETH, Einstein passou o ano seguinte numa escola de Aarau, na Suíça, para terminar a instrução secundária. Em Setembro de 1896 passou no exame final da escola, o que lhe permitia entrar na universidade. Com excepção do francês, as notas eram excelentes em todas as disciplinas, especialmente em matemática, física, canto e música (violino). Em Outubro Einstein inscreveu-se, finalmente, na secção VIA do ETH, que proporcionava um curso de professor de física e matemática do ensino secundário. Era o elemento mais novo de um grupo de cinco que entraram para essa secção com apenas 17 anos.
É conveniente recordar que o ETH de Zurique se encontrava, no início do século XX, entre as cinco melhores instituições do mundo nas áreas das ciências exactas, com um nível científico comparável apenas a Göttingen, Oxford, Cambridge ou à École Polytechnique. As universidades americanas tinham um enorme atraso; ao contrário de hoje, eram os americanos que procuravam a Europa para estudarem ciência, situação que começaria a inverter-se no período entre as guerras.
Neste panorama, o ETH era, como hoje é, uma escola de excelência, da mais seleccionada elite, onde só eram admitidos os melhores estudantes do mundo. Dela saiu o primeiro Nobel da Física, Wilhelm Röntgen (1901). Desde então o ETH produziu mais de duas dezenas de prémios Nobel sobretudo nas áreas da física e da química, como Wolfgang Pauli, Peter Debye ou o próprio Einstein. Um século depois, o ETH continua a ser uma universidade de referência no plano científico – e a produzir prémios Nobel (o último dos quais, Kurt Würtrich, Nobel da Química em 2002).
Foi nesta escola, entre a nata da nata, que Einstein foi admitido para o curso mais exigente, em termos que hoje se descreveriam como aluno autoproposto, dois anos mais cedo do que o normal, sem possuir um percurso escolar formal usual.
Chumbou no exame de admissão, mas obteve um resultado tão excepcional em Matemática e Física que impressionou o reitor, Albin Herzog. Este prometeu admiti-lo no ano seguinte, sem que Albert tivesse de fazer novamente o temido exame.
Aos 16 anos de idade Einstein imaginou algo que desencadeou uma intuição que viria mais tarde a alterar o curso da história da humanidade: imaginou-se a correr ao lado de um feixe de luz e perguntou a si próprio qual seria o aspecto desse feixe.
Como pode alguém familiarizado com os caminhos da ciência considerar estes factos compatíveis com a fábula do "mau aluno" e, piada de salão de gosto duvidoso, ou argumento de concepções pedagógicas facilitistas, propagá-la publicamente?
Mais interessante e relevante do que repetir infundados lugares-comuns seria reflectir seriamente sobre a relação de Einstein com a escola. E mais relevante ainda seria aproveitar a oportunidade para pensar informadamente, objectivamente e não ideologicamente, a própria escola, a nossa escola, que põe em causa o progresso do país.
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8 comentários:
Caro Jorge,
Uma boa posta, como todas as anteriores do blogue. Para quando o seu terceiro livro?
Afixei, hoje, uma informação sobre este autêntico "serviço público".
Aproveito para agradecer ao "De Rerum Natura" a ligação que colocou ao meu humilde espaço na blogosfera nacional.
Excelente post, mas principalmente, excelentes conclusões/sugestões.
Tentemos perspectivar: realmente, para onde vai a educação em Portugal?
Mesquinhezes políticas à parte, a mentalidade "facilitista" de alguma (e sublinho alguma) representação docente lusa actual, que consequências poderá ter?
E a mentalidade de entidades paternais que preferem que os seus filhos comam Morangos (com açucar ou adoçante..."da igual"...) ao invés de estimular um gosto natural e inato pela aprendizagem (vista como alimento do "espírito"), que consequências terá?
Observo na geração de hoje um total desinteresse (progressivo além do mais), que pode pôr Portugal, nos próximos anos, ainda mais na cauda Europeia/Mundial... E apesar de alguns sentimentos anti-nacionalistas, reconheço que isso me deprime...apesar de tudo, tenho a nacionalidade que tenho, e ostentarei para sempre tal "cruz"... Esteja onde esteja, chegue onde chegue, no meu futuro estarei sempre catalogado como luso...
Em suma, uma questão que gostaria de ver debatida - como parar esta onda progressiva de estupidificação da mentalidade portuguesa? Como estimular todo um povo para a descoberta do conhecimento, como um caminho para algo melhor...?
PS - E isto, porque "estamos" num blog com este teor...que não nos cinjamos à leitura...estimulemos debates...
E mais relevante ainda seria aproveitar a oportunidade para pensar informadamente, objectivamente e não ideologicamente, a própria escola, a nossa escola, que põe em causa o progresso do país.
Não poderia concordar mais...
E já agora.. Não se poderá colocar a mesma questão às universidades portuguesas e a esse personagem destruidor da ciência portuguesa: o professor universitário?
Acabemos com as universidades. Só assim haverá ciência digna do nome.
Em suma, uma questão que gostaria de ver debatida - como parar esta onda progressiva de estupidificação da mentalidade portuguesa? Como estimular todo um povo para a descoberta do conhecimento, como um caminho para algo melhor...?
A via mais interessante é a do extermínio. Mas não creio que desse resultados práticos a longo prazo...
Não há esperança para Portugal.
Resta-nos emigrar.
Caro Lino: muito obrigado. O meu terceiro livro (em português) está no forno e deve estar sair antes do Verão. Procure-o (e a mim, já agora) na Feira do Livro.
Caro V. Infante: como professor e como pai concordo com o que diz, e também tenho os meus momentos de depressão. Mas não existe karma. Se compete a alguém contribuir para mudar as coisas, é a nós.
Aos anónimos a mensagem é um pouco no mesmo sentido: a situação não é risonha, a derivada é negativa, mas
o extermínio não é a solução. Nem sequer a emigração. Se os melhores forem embora, então é que é o fim.
Caro Jorge: (sou o V. Infante) - "Nem sequer a emigração. Se os melhores forem embora, então é que é o fim."
Aqui, lamento discordar...nem de longe me poderia considerar "o melhor", mas, sem falsas modéstias, pelo meu trajecto académico, sei que poderei cumprir alguns sonhos (altos diga-se de passagem), que sempre quis...todavia, jamais em Portugal! Pelo menos, jamais sem uma grande cunha, ou uma grande capacidade de me meter em situações "menos éticas"...
Por isso "emigrei"! E digamos que estou fora de Portugal há menos de um ano...estou a fazer um Master em Madrid, e desde que aqui estou, já recusei 2 excelentes oportunidades de emprego (com valores salariais que em Portugal, na mesma área - jurídica -, nem em 20 anos poderia sonhar!), mas a maior "piada", foi a de neste curtíssimo período de tempo, me terem convidado também para ir fazer um estágio para uma grande instituição da UE (o sonho alto)...e agora que me digam: isto em Portugal poderia acontecer? Eu respondo: NÃO! Terminei a licenciatura há quase 2 anos, e fiquei um ano em Portugal, a enviar CVs, a ir a entrevistas, a esforçar-me por melhorar as minhas capacidades académicas, com mais cursos, mais pór-graduações, etc...de que me valeu? Concretamente: um emprego patético como professor de inglês numa escola privada que me pagaria 333€ mensais! Nem sequer seria na área em que me formei! Ridículo! No mínimo é o que posso dizer do meu país, e das perspectivas de futuro que me dava: Ridículas...
E voltando ao início: reitero que não me considero parte desse grupo intitulado "os melhores", mas, pessoalmente, neste momento vejo um futuro bem mais risonho do que o que via há 1 ano, sem dúvida...
E enquanto à hipotética contribuição que poderei dar profissionalmente para que o meu país berço possa ser um país melhor no futuro, concluo apenas que, estando "aí dentro" não teria as mesmas oportunidades que estou a ter "cá fora", para poder atingir determinadas posições profissionais, que me permitam quem sabe um dia ajudar em qualquer aspecto...
Na escola consideram-se frequentemente bons alunos os robotizados, os embalsamados. Não fazem ondas, não comentam, não criticam, comem o que lhes dão, não vão para lá do que lhes é "ensinado". Em suma, não incomodam nem fazem concorrência ao mestre.
Suponho que quando se diz que Einstein era mau aluno se pretende dizer que não se enquadrava neste paradigma de "bom".
Existe um renomado neueo-psiquiatra que cuida principalmente de crianças, que diagnosticou em uma pre-adolescente, o mau de Einstein, que nada mais é um disturbio neurológico, onde uma parte do cerebro não é constantemente irrigado, sendo assim, a pessoa acaba se dedicando mais ao que interessa ou com que tem mais afinidade, por isso a garota foi denominada com mau de Einstein, só se interessa por matemática e fisica como Einsten.
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